7.8.07

Segunda vida

Foto: Paulo Heuser


Segunda Vida

Por Paulo Heuser


O gato tem sete vidas, nós, apenas uma. Melhor aproveitá-la, portanto. Quem não desejaria ter uma segunda vida? Seria a oportunidade de não pagar mico, como naquela vez em que entalei o dedo no gargalo da garrafa de coca-cola, na casa da menina que ia visitar pela primeira vez. Lembra-se daquela frase dita na hora errada, no lugar errado? Tudo poderia se corrigir, na segunda vida. Aquela pisada desastrada no pé da mãe da menina, no baile de quinze? Coisa de primeira vida.

Alguém criou o jogo Second Life, onde os jogadores simulam uma segunda vida, virtual. Uma vida em 3D – três dimensões (altura, comprimento e largura), para os menos, ou nunca, iniciados, como eu. Os jogadores escolhem um avatar, representação gráfica deles na segunda vida. A segunda vida simula o mundo real, no limite permitido pela virtualidade, ou seja, vale tudo. O caso de Márcio e Claudia é bem ilustrativo.

Márcio é o protótipo do felizardo bem sucedido. Pudera, bem nascido, tanto em berço como em DNA, é o tipo que toda mulher bem ou mal-nascida sonhava. Loiro, de olhos verdes, com 1,87 m de altura, bem-sarado, Márcio, se não bastasse, sempre foi prodígio nos esportes e nos estudos. Antes da formatura, já recebeu convite do cirurgião plástico Pitanga, para atuar como aprendiz de mago do bisturi estético. Em pouco tempo, Márcio se tornou um homem bonito, bem-educado e rico, tudo que já era. Esse excesso de atributos provocou alguns contratempos. Várias candidatas a sogras apaixonaram-se perdidamente pelo candidato a genro. Protagonizou versão anos zero-zero de Mrs. Robinson, filme da década de 70, onde uma sogra safada se apaixona pelo pimpolho que deseja sua filha.

Claudia nasceu com o derrière virado para o satélite natural da Terra. Misto de Sharon Stone e Isabella Rossellini, 25 anos atrás, herdeira de um império de estaleiros, ela se destacava em qualquer coisa, inclusive no xadrez. A moça derrotou o Azul Profundo, computador de muitos milhões de dólares, aplicando-lhe um Pastor, logo de início. O Gambito de Dama passou a se chamar Gambito de Musa, a partir daquele dia. Para não dizer que havia defeitos, a diva se dedicava intensamente ao voluntariado, limpando tatu de órfãos ranhentos, entre uma e outra ida a Cap Ferrat. A estrela de Claudia apresentava magnitude que a faria brilhar em qualquer canto da galáxia. Ofuscava tudo e todos ao redor. Menos Márcio, que brilhava em igual magnitude. Duas supernovas explodindo simultaneamente.

Quis o destino, como sempre acontece, que Claudia e Márcio se encontrassem. É sempre assim. Rico não namora pobre, a não ser nas novelas das seis e das oito. Botaram o olho verde, um no outro, durante a festa beneficente da lagosta. Conversaram, cavalgaram juntos, jogaram gamão, participaram do pôr-do-sol, como personagens principais, caminhando pela paradisíaca praia deserta de Barbuda (a ilha caribenha, não a mulher do circo!). O disco do sol mergulhava no mar, enchendo todo o cenário de tons de fogo vermelho, quando trocaram o primeiro beijo, abraçados apaixonadamente. Isso tudo na segunda vida, é claro. Na primeira, Márcio, o Bola, 1,61 m de altura e 85 kg, técnico em instalações sanitárias cloacais, encontra-se com Claudia, a diabo-em-conserva, como os colegas de repartição a apelidaram, carinhosamente. Chamavam-na também de Rainha Vitória, em homenagem a sua incomum aparência física. Encontraram-se, após meses de jogos na Second Life. Encontram-se na barranca do Tietê, com o Sol se pondo em meio à névoa seca da poluição. Botaram os olhos descoloridos, um no outro, e exclamaram, ao mesmo tempo: - Putz, que vida desgraçada esta First Life!
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