A vida no intervalo
A vida no intervalo
Por Paulo Heuser
Não tenho sorte com algumas coisas. Com as caixas de leite, por exemplo. Sempre faço uma sujeira danada ao abri-las. Já tentei usar facas, tesouras, bisturis e cortadores de pizza. Não adianta, sempre derramo leite. Ainda bem que voltaram às garrafas. Lacre chatinho aquele de alumínio, não? Porém, bem melhor que a maldita caixa inexpugnável. Dou-me mal de verdade defronte a TV. Sento-me, pego os controles remotos e começo a pressionar aquela seqüência de teclas, até que apareça alguma imagem útil. Cento e poucos canais e somente os que não me interessam apresentam algum programa. Os outros, os que poderiam me interessar, apresentam chamadas de programação ou créditos de filmes que terminaram naquele momento. No exato momento em que me sentei para ver alguma coisa. Sempre, não há exceção. Naquele momento há apenas cultos, missas, pajelanças, descarregos, sessões legislativas, ofertas de câmeras fotográficas e programas sobre gatas do Sião no cio. Bem, há também uma emocionante partida de futebol entre o Khankendi, do Azerbaijão, e o Cordofão do Norte (o do Sul não veio), do Sudão.
Paciência, entre o bispo, o deputado e o Cordofão, fico com o último. Dá para rir dos nomes dos jogadores. Bem coisa de ignorante. Quem manda não estudar... aquilo que eles falam lá. Enquanto bola e cabeças rolam no campo, tento entender por que infeliz razão sempre ligo a TV na hora dos créditos do filme que eu gostaria de assistir. Dos próximos, quero distância. Lassie, Noviça Rebelde, Free Willy, Guerra nas Estrelas, Batman, sempre os mesmos. Por que não escalonam o início das sessões de forma que infelizes como eu consigam pegar o início de algum filme? Na nova tentativa de achar alguma coisa passo pela propaganda da câmera digital que tira fotos embaixo d’água, dentro do vulcão e até na geladeira. Fico preocupado, pois se eu não ligar nos próximos 10 minutos, as linhas vão congestionar. E eu perderei a condição especial sem holerite, sem entrada, sem pagamentos e já vem com as fotos batidas - é só mostrá-las.
Nova zapeada e já assisto ao depoimento de uma testemunha na CPI do Escândalo Genérico, na TV de graça dos legisladores. Começou há tanto tempo que ninguém mais se lembra do assunto. Acabaram entrevistando o novo garçom, confundido com um depoente. No canal ao lado, trocaram as imagens da cirurgia de hemorróidas pela de implante de dentes. Sim, televisão também é saúde, começando pela saída, terminando na entrada. Céus, o que eu não daria por um aparelho de plasma de 43 polegadas! Que espetáculo esse. Melhor do que foto de maço de cigarros!
Devo estar sincronizado com os intervalos dos programas de TV por assinatura. Três cliques acima, ou abaixo, o apresentador que é dono do prefeito lhe dá 15 minutos para tratar de alguma emergência com a defesa civil. Só quinze. Depois, deve retornar, ao vivo. Ordens são ordens. O show não pode parar. Tudo fede a pipoca, pois estamos no intervalo. Pelo menos aqui temos algum controle. Podemos zapear, mesmo que seja para ver Timão e Pumba ou os Piggley Winks, melhores opções no momento.
Às vezes tenho a impressão de que vivemos num grande intervalo, sem programas decentes. Perdemos o filme anterior e nunca assistimos ao próximo. Lemos créditos, empanturrados de pipocas. Será a hora da mudança na grade de programação, através daqueles botões do grande controle remoto? Claro, sempre poderemos conferir o resultado do clássico Khankendi x Cordofão (o do Norte, pois o do Sul não veio).
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