16.7.07

O presente de Elizabeto

Foto: Rui Rezende - www.fotosdachapada.com



O presente de Elizabeto

Por Paulo Heuser


Eleutério deu duro na roça, de sol a sol. Chamá-lo de agricultor implicava certo otimismo. Garimpeiro, talvez. A cultura de qualquer coisa era dura, naquele solo árido do Nordeste. A terra se assemelhava à argila cozida, seca e quebradiça. Eleutério só perseverou por causa dos filhos. Nove bocas abertas esperando pelo alimento que, por vezes, não vinha. Ele passou muitas noites acordado, tentando tapar os ouvidos para aquele choro de fome, choro de miséria. Foi esse chorou que o motivou a garimpar plantas naquela região inóspita. Não foi em vão. Dos nove, sete vingaram. Dois se foram, tragados pelo redemoinho da miséria.

Dos sete filhos do Eleutério que vingaram, o Elizabeto foi o que lhe deu mais orgulho. Ele era a prova viva de que a garimpagem de plantas havia valido a pena. Eleutério estudou em Anagualândia, desde os sete anos, graças à intervenção divina, ou dos representantes Dele na Terra. Adotado pelo colégio religioso, Elizabeto viu-se frente a frente com as maravilhas da cultura e da ciência. O mundo abriu-se para ele, após o mestrado em Antropologia. Ele tentou explicar ao pai o que estudava, através das cartas que enviava a Carontelândia, mas era muito difícil fazê-lo entender, por se tratar de coisa abstrata. Eleutério conhecia apenas o mundo real, onde o sol nascia e se punha, sem dar margem a abstrações. Parte dos primeiros salários de professor foi investida em uma poupança para que o filho realizasse um dos sonhos do pai: comprar uma cabra. A cada carta recebida, e lida pelo padre, Eleutério teve mais certeza do acerto. Após uma delas, encheu-se de um misto de medo e orgulho. Medo porque Elizabeto viajaria para o outro lado do mar, orgulho porque Elizabeto fora o escolhido para fazer doutorado, patrocinado pelos Invasores Sem Fronteiras, Ong européia. Elizabeto seria doutor!

As cartas minguaram, enquanto a saudade cresceu. Elizabeto andava muito ocupado nos estudos. Passados três meses, veio uma carta dizendo que ele fora contratado por uma grande companhia que tinha interesses de investimento no Brasil. Assim, Elizabeto ficaria morando na Europa. Eleutério não sabia se ficava feliz pelo sucesso do filho, ou triste por não tornar a vê-lo tão cedo. No seu estado de saúde, carcomido pela miséria, talvez nunca voltasse a vê-lo, de qualquer forma. Ledo engano. Na carta seguinte veio algo mais: bilhetes de passagens aéreas para que Eleutério e Raimunda Nonata, sua mulher, fossem visitar o amado filho. Eleutério custou a entender que aqueles pedaços de papel lhes permitiriam ver um novo mundo: o Velho Mundo. O padre teve de lhes explicar que precisariam de passaportes e malas, coisas que desconheciam, pois nunca haviam viajado. Nasceram em Carontelândia e lá morreriam, sem nunca haver saído, caso o filho não os tirasse dali, mesmo que por apenas alguns dias. Junto com a passagem veio um cheque, que lhes permitiu cobrir as despesas para a viagem.

Três semanas depois, Eleutério e Raimunda Nonata deixaram o País, rumo à Europa. Fariam conexão em Madri, antes de chegarem ao seu destino final. Levaram as malas surradas, emprestadas pelo padre, e uma caixa de papelão contendo a grande surpresa para o filho. Levaram algo que ele muito apreciava: frutas-do-conde. Ao retirar a bagagem em Madri, após muita confusão, Eleutério resolveu levar a caixa das frutas-do-conde como bagagem de mão, já que ela parecia maltratada pelo manuseio como bagagem despachada. Tudo ia às mil maravilhas, até que passaram pelo raio-X dos pertences de mão. Para o pai do Elizabeto, 11 de Setembro era dia de São Jacinto e 11 de março, dia de São Eulógio. Atocha seria algo para se queimar, alumiando o caminho. Talvez por isso o nervoso Eleutério respondeu equivocadamente à pergunta feita pelo apavorado oficial que operava o aparelho, indagando sobre o que diabos havia naquela caixa. Assustado com todo aquele aparato, e desconhecendo a língua, o pobre homem gritou o nome do destino da viagem: Granada!

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