Avatares do mundo real
Avatares do mundo real
Por Paulo Heuser
Kátia comandou nova ligação no sistema de telemarketing. Empreguinho bom esse. Ficava sentada frente ao computador e deixava que ligasse para um dos novos clientes, tão novos que nem eles próprios faziam idéia do vínculo que se estabeleceria, na relação predador/vitima, ou provedor/cliente. Estabelecida a conexão, ela entraria em cena. Orgulhava-se de deixar poucos escaparem. Seu nome estava no painel dos bem-sucedidos do mês, há oito meses. Batia levemente com a caneta nos dentes, enquanto pensava no próximo. Seria homem, mulher, nem um, nem outro? Jovem, velho, crédulo, desconfiado?
Tuuut, tuuut, tuuut, click. Silêncio…
Com essa Katia não contava. Esperava um alô, um pronto ou pelo menos um gemido. Silêncio não era bom sinal. Um dia pegara um que apenas fungava.
- Alô! – ela tentou.
- Ommmmmmm... – ?
- Alô, há alguém aí? – ela tentou novamente.
- Ommmmmmm... – duplo “?”.
Seria a criança da casa colocando um boneco para mugir no fone? Ela já ia desligar e tentar outro número, quando ouviu uma estranha voz:
- Simmmmmmm?
- Desculpe-me, senhor. Estava ouvindo um ruído, deve estar acontecendo defeito na linha.
- Era um mantra.
- É o seu filho? – ela gostava de entrar na intimidade das vítimas. Facilitava as vendas.
- Não, é uma sílaba religiosa do Om mani padme hum.
- Percebo! – disse ela, alegremente, sem nada perceber.
- Com quem eu estaria falando? – ela seguiu.
- Sou Kalki, o décimo avatar de Vishnu!
- Percebo, Senhor Cáqui?
- Não, é Kalki, ká-a-ele-ká-i!
- Percebo, Senhor Kalki.
- Ommmmmmm...
O zumbido começou novamente. Kátia começou a ficar preocupada. Clientes muito esquisitos faziam-na perder muito tempo. Era apenas uma comissão, ao invés de cinco ou seis, em uma hora. Mas, gostava de desafios, e esse era um deles.
- Com o que o senhor estaria trabalhando?
- Sou espadachim.
- Percebo, o senhor está trabalhando em um circo...
- Não, sou o último avatar de Vishnu, o Preservador, o que ainda estava por vir, o espadachim sobre o cavalo, seguindo Sidarta Gautama!
- Ah, o senhor trabalha naquela construtora, aquela daquele negócio do governo...
- Ommmmmmm...
- Bem, Senhor Kalki, o senhor estará recebendo, em sua casa, inteiramente sem despesas, o nosso cartão. O senhor estará ligando para nossa central de relacionamento, fazendo o desbloqueio e já estará usufruindo dele.
- Ommmmmmm...
- O senhor estaria tendo alguma dúvida, senhor Kalki?
- Na verdade, tenho. Qual é o seu endereço?
- Bem, senhor Kalki. Essa informação é confidencial. Eu nem me chamo Kátia, na verdade. O senhor entende desse negócio de avatar, não é? Sou um avatar da empresa, assim como o senhor é um avatar do tal de, como é mesmo?
- Vishnu, o Preservador!
- Isso, mas por que o senhor gostaria de saber meu endereço? – disse ela, adivinhando a resposta. Ouvindo sua voz, ninguém conseguiria associá-la à aparência real. Divertia-se com isso.
- Minha missão na Terra é governar um novo mundo, após eliminar este. Não sabia por onde começar, mas agora, já sei!
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Marcadores: Avatar, Kalki, telemarketing, Vishnu
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