27.6.09

533 - O novo martelo dos hereges

Auto-da-fé (1475) de Pedro Berruguete
Fonte: Wikipedia
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O novo martelo dos hereges

Paulo Heuser

Era uma vez um lugar chamado Portus Victoriae Iuliobringensium, durante a Era Romana. Abusando de números romanos, no Século VIII, Afonso III, o Casto, fundou a Abadia dos Corpos Santos do Monastério de Somorrostro. Já no Século XII, Afonso VIII criou lá o aglomerado que deu origem à cidade de Santander, na região espanhola da Cantábria. Não longe dali, no Século XV, nasceu Tomás de Torquemada, que veio a ser conhecido como o Martelo dos Hereges, e tornou-se o inquisidor-mor dos reinos de Castela e Aragão. Finalmente, no Século XIX, alguém teve a idéia de fundar um banco, na Cantábria, com as graças da rainha Isabel II.

Torquemada destacou-se nas lides de combate aos hereges. São-lhe atribuídos 2200 autos-de-fé, as cerimônias públicas de humilhação e penitência dos hereges. O homem trabalhava incansavelmente. Contudo, apesar de implacável, Tomás também sabia ser piedoso. Ele estrangulava os que confessavam as heresias, antes de queimá-los. Como ele trabalhou bem demais, digamos assim, acabou perdendo parte do seu poder, devido à intervenção do Papa Alexandre VI.

Números romanos à parte, até aqui, há história. A partir daqui, especulação. Uma antiga lenda cantábrica fala de uma descoberta arqueológica, feita no Real Monastério de Santo Tomás, em Ávila, local onde Torquemada passou seus últimos dias. Sob um degrau da escada que sobe ao coro, junto ao Claustro do Silêncio, foram encontrados escritos, atribuídos a Torquemada, que levariam à construção de uma fabulosa máquina de tortura de hereges. Na época da descoberta não havia tecnologia para implementá-la, o que somente veio a ocorrer no Século XXI. O Banco da Cantábria aplicou esse artefato no seu relacionamento com os potenciais clientes, hereges ou não, numa estranha, pavorosa e inovadora estratégia de marketing. O Martelo Automático dos Hereges liga aleatoriamente para números telefônicos. A novidade está aí. Quando alguém atende, nada falam. Fica apenas o silêncio. Os hereges, ou não, recebem muitas chamadas, dia e noite. As mais torturantes são as de sábado pela manhã, bem cedinho. O sujeito está lá, aquecido na cama, pretendendo varar a manhã nublada no aconchego, e o telefone toca. É o Martelo Automático dos Hereges. Nada há a fazer, senão esperar pela conclusão do auto-de-fé automático. Os antigos duravam dois anos, o que não traz muito alento.

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14.1.09

499,998 - D'aquém e d'além



Foto: Wikipedia
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D’aquém e d’além

Por Paulo Heuser


Eu andava meio chateado. Agora, ando muito. Alguém ligava para o meu telefone, várias vezes por dia, e nada falava, quando eu atendia. Era de um número de São Paulo que se repetia em variantes crescentes. Começava pelo final 40, seguia pelo 41, até o 45. Todos os dias, impiedosamente. Coisa de serial caller – telefonador serial. Cheguei a retornar a ligação, em vão, pois recebi a informação de que aqueles números não existiam. A tecnologia é algo extraordinário! Ligavam-me do além, certamente.

Hoje, a coisa se repetiu. O relógio batia as 12h30, quando o número inexistente me ligou novamente. Porém, desta vez, veio uma voz, através dos fios Wi-Fi:

- Alô! Sr. Erasmo?

- Não.

- Não?

- Não.

- Sr. Erasmo, meu nome é Patrícia e falo em nome da seguradora Brucuthu-Charolês. Nós temos a satisfação de lhe comunicar que criamos um convênio com o seu plano de saúde, que gentilmente nos forneceu o seu cadastro.

- Como? Eles forneceram o meu cadastro?

- Sim, gentilmente.

- Como, fizeram isso sem minha autorização?

- Bem, isso é um problema entre eles e o senhor!

- Bem, considerando que eu não me chamo Erasmo, tudo bem.

- Sr. Erasmo, se o cadastro gentilmente fornecido diz que o senhor é o Sr. Erasmo, o senhor é.

- Não sou!

- O senhor apenas pensa que não é. Recomendamos-lhe uma releitura da sua certidão de nascimento, pois o cadastro do plano de saúde não falha.

- Não sou, não sou e não sou!

- Sr. Erasmo, temos a satisfação de lhe comunicar que o seu plano de saúde e a Brucuthu-Charolês uniram suas forças para criarem o plano D’aquém-D’além. O senhor e os seus passarão a contar com o nosso apoio, aqui e lá.

- Lá?

- Sim, Sr. Erasmo, o senhor sabe... no caso de passagem.

- Passagem aérea? É seguro de viagem?

- Não exatamente, Sr. Erasmo, é a passagem para o outro lado, sabe como é, não sabe?

- Não.

- Não, como?

- Apenas não. Não, simples e negativo.

- Percebo, Sr. Erasmo, o senhor gosta de falar através metáforas inversas.

- Não.

- Percebo, Sr. Erasmo. Se o senhor for um dos primeiros mil clientes do novo plano, estaremos lhe assegurando a opção Ida Mais Platinum.

- O que é isso?

- É o nosso exclusivo e sofisticadíssimo plano de passagem superior. Nada se compara a ele. Somos os únicos a fornecer drinque de boas vindas na chegada ao outro lado.

- Chegada?

- O senhor percebe, do outro lado...

- Como é que vocês podem assegurar algo que nem sabem se existe?

- Pela satisfação de cem por cento dos nossos clientes Ida Mais Platinum. Nenhum deles reclamou!

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20.9.08

465 - Foi no 20 de setembro



Carga da cavalaria Farroupilha. Guilherme Litran
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Foi no 20 de setembro

Por Paulo Heuser

Triiim...

- Alô!

- Bom dia! Eu estaria falando com quem?

- Boa pergunta...

- Seria o Senhor Paulo?

- Quem poderia saber... Vou perguntar ao vizinho... Um momento, por favor. - (pausa) – Alô, sim, o vizinho disse que é ele.

- O Senhor Paulo seria o vizinho?

- Não, ele disse que é o contrário.

- Como eu faria para falar com o Senhor Paulo?

- Já está falando com ele...

- Oh, desculpe, houve um mal entendido.

- Não entendi!

- Bem, o senhor é o Senhor Paulo, é verdade?

- É o que o vizinho diz, e eu acredito piamente nele, pois é candidato a presidente do conselho do condomínio.

- Percebo, Senhor Paulo. Eu poderia falar um minuto com o senhor?

- Bem, já estamos falando há mais do que isso...

- Certo, Senhor Paulo, serei direta, então. O Senhor é cliente do nosso cartão Monocard, não é?

- Se vocês que são donos do cartão não sabem, eu saberei?

- Certo, nós sabemos.

- Que bom! Podemos nos despedir satisfeitos, pois chegamos à unanimidade.

- Senhor Paulo, eu gostaria de lhe falar das vantagens de ser um cliente Monocard.

- Infelizmente, hoje não será possível!

- Entendo, senhor, mas eu não poderia falar-lhe por um minuto?

- Para dizer a verdade, não. Não estou aberto, nem aos domingos, nem aos feriados.

- Mas, Senhor Paulo, hoje é sábado...

- Pode até ser, mas não é um sábado como outro qualquer, hoje é 20 de setembro!

- Certo, senhor. A data confere.

- Então, até logo...

- O que há de especial no 20 de setembro? Para nós, todo dia é dia para se usar o Monocard!

- Ora, o 20 de setembro é o dia em que todos mergulham na fumaceira e andam a cavalo.

- Por quê?

- Porque nesse dia, faz muitos anos, um vendedor de serviços de cartão de crédito ligou, na manhã de um sábado, para um cliente esfarrapo.

- Percebo, Senhor Paulo, mas o senhor já conhece as vantagens de ser um cliente Monocard?

Então se iniciou uma sangrenta guerra que durou mais de dez longos anos.



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8.9.08

457 - 2391-0010



Fonte: Wikipedia
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2391-0010

Por Paulo Heuser


Ah, como esperei por esta manhã de sábado! Ansiava por uma hora a mais de sono, que fosse. Apenas uma hora a mais. O maldito resfriado veio forte, e com esse clima nada melhor do que curtir a cama. Nestes dias a cama se parece com o paraíso, principalmente quando a chuva bate na janela. Então o maldito telefone tocou. Quem ligaria a essa hora da manhã? Seriam más notícias ou engano. Ninguém me acordaria a essa hora se não tivesse um assunto muito importante a tratar. Era uma máquina.

Uma máquina me ligou! Já sou obrigado a falar com máquinas quando utilizo os serviços dos maravilhosos SACs, Call Centers ou seja lá que nomes lhes dão. Porém, desde que o Lula ligou, na eleição anterior, nenhuma outra máquina me ligou. Desta vez não foi o Presidente pedindo votos. Foi a 2391-0010. A máquina de voz feminina não queria comprar votos. Ela queria me vender novas amizades pelo preço de uma ligação local. Acordei, a contragosto.

O Lula eu ainda posso xingar, ligando para alguma ouvidoria. Posso alegar que nunca ninguém antes neste País me ligou tão cedo para pedir voto. Mas, contra uma máquina anônima, o que posso fazer? Ela não tem nome nem endereço. Tenho o número do telefone dela – 2391-0010 -, o que em nada me ajudaria, pois seu eu ligasse para ela, cairia na armadilha. É exatamente o que ela queria que eu fizesse. Faria novos amigos, seu eu ligasse? Amigos baratos, sem dúvida, pois custam o mesmo que custa uma ligação local. Novos amigos em promoção, portanto.

Já que eu estava acordado, resolvi tentar encontrar o dono da máquina. Foi então que descobri que o Tio Google não estava nem aí. Culpa do meu acesso Internet que apresentava forte soluço, fazendo eco a minha tosse. De nada adiantou segurar a tosse, pois o soluço continuava. Fazer o quê! Disquei para o SAC do provedor e segui o menu apresentado pela... pela... máquina! Outra máquina, esta muito simpática.

- Disque 1 para problema de sinal da Internet... Disque 2 para problema com o sinal da TV... Disque 3 para problema com o telefone... (esta é curiosa, discar como?)... Disque 4 para problema com mais de um dos anteriores... Disque 5 para problema com todos os anteriores... Disque 6 se você é deficiente auditivo... Disque 7 se você esqueceu o que eu falei antes... Disque 8 para ouvir musiquinha... Disque 9 para falar com alguém, após ouvir a musiquinha, é claro.

Teclei 1 e descobri que outra máquina me atenderia. Essa bem mais informal que a anterior, pois veio falando direto na íntima demais segunda pessoa do singular. Íntima demais para uma máquina. Foi também uma máquina esperta, pois captou logo o problema. Ela intercalou alguns “entendo” no diálogo (?). A coisa terminou por aí. As ligações foram interrompidas pelo tu-tu-tu-tu. Fiquei sem atendimento, mas não fiquei sem Internet. Tenho uma vizinha muito prestativa. Ela empresta xícaras de açúcar, farinha, ovos e sinal de Internet sem fio.

Vida moderna é assim, não sei o nome dela, apenas o sobrenome. Algo como dlink.

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24.6.08

417 - Segunda via


Foto: Relojoaria.com
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Segunda via

Por Paulo Heuser


Noutro dia eu estava espiando um relógio de pulso, numa vitrine, pois percebi nele uma característica curiosa. Além de exibir o dia do mês, exibia também o anterior e o posterior. Fiquei pensando na utilidade daquilo. O dia do mês é uma informação completa, por si só, a não ser que o comprador do relógio seja um recém- libertado pelas Farc, e ignore o mês e o ano nos quais se encontra. Sei que muitos relógios sofisticados exibem informações utilíssimas, como o século, as marés do Mar Morto, as fases das luas de Urano, coisas fundamentais para qualquer ser urbano socialmente bem colocado. Ali parado, com cara de idiota, acabei chamando a atenção de duas vendedoras, que logo me cercaram.

- Pois não, senhor. Percebemos que o senhor se interessou pelo relógio!

- É verdade. Confesso que não entendi por que ele exibe três dias, em vez de apenas um, como os demais.

- Ah! – exclamou uma das vendedoras – O senhor reparou nessa característica única desse relógio.

- Sim, não há como não reparar.

- É fascinante, não é? – disse ela, orgulhosa.

- Não deixa de ser, em tese. Mas, qual é a utilidade disso?

- Ora, senhor. Essa exclusividade permite que o senhor saiba quando foi ontem, quando é hoje e quando será manhã!

- Assombroso! Mas, não bastaria que eu somasse ou subtraísse um da data de hoje?

- Oh, é claro, mas o senhor poderia errar! E no dia 31, o que o senhor faria? Diria que o dia seguinte seria o 32?

Sorri, agradeci, e saí de lá. Constatei que nem sempre falamos a mesma língua daqueles que falam a nossa língua. Notei também que a lógica das vendas tem parecido um tanto ilógica. Fiz um teste com um operador de telemarketing que não aceitava não como resposta à proposta de contratação do serviço que a empresa dele tentava me empurrar. Em resposta à terceira ou quarta pergunta sobre os motivos que me levavam a não aceitar a proposta, escancarei:

- Porque essa empresa não presta. Nada do que ela produz pode me interessar!

- Sim, mas então o senhor não estaria interessado no plano básico, mais em conta?

- Não!!!

- Qual seria a razão?

Fiquei sem razão. Não sabia mais o que pensar. Nada do eu pensasse seria compatível com os neurônios daquele ser, não-humano, pelo visto.

Hoje cheguei a uma daquelas empresas que identificam todos os visitantes, compreensivelmente. Eles cadastram todos os visitantes, por ocasião da primeira visita. Depois, basta apresentar o documento, cujo número é digitado pela recepcionista. Acostumado com o acesso instantâneo, fui surpreendido pela luz vermelha. Eu fui barrado. Após digitar algumas coisas, e olhar para a tela do comutador, espichando o pescoço, a recepcionista sorridente informou a razão:

- Ah, já entendi! O senhor apresentou a segunda via do documento, que não está cadastrada! Apenas a via original pode lhe dar acesso.

Pensei, por um momento, e resolvi seguir a lógica que ela seguia:

- Já sei! Voltarei para casa e mandarei minha segunda via, no meu lugar! Segunda via com segunda via pode, não pode?

Ela continuou sorrindo, pareceu apenas um pouco indecisa, mas falou:

- Bem, acho que vai funcionar...

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22.5.08

402 - O telefone secreto

Foto: Wikipedia
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O telefone secreto

Por Paulo Heuser


Eu adquiri o hábito de não receber ligações telefônicas cuja origem não seja identificável. Boa coisa não pode ser. Provavelmente será um golpe do falso seqüestro, ou alguém querendo me vender algo que eu não quero comprar. Números originados em São Paulo, ou arredores, ou os terminados com dois zeros, também são altamente suspeitos.

Na semana passada, o pessoal da tele-tortura esteve especialmente ativo. Recebi ofertas de terrenos no Condomínio Alto Xingu, no próprio. Ligou também alguém que venderia um plano funerário Pague & Morra, e todo aquele pessoal que vende cartões de crédito e TV a cabo que já tenho. Nunca entendi por que querem me vender algo que já comprei. É uma pena que o aparelho telefônico só consegue armazenar mil números de telefone. Eu costumava associar os números com o nome da bomba que queriam me vender. Assim, quando o telefone tocava, já aparecia uma indicação do tipo serial caller #1, e assim por diante. Porém, o telefone só armazena 100 números na agenda. Por isso, alguns me pegam desprevenido. Aparece aquele número inocente, no visor do telefone, como se fosse da manicura do cachorro. Durante toda a semana, recebi recados de que a Elvira havia me ligado, três ou quatro vezes por dia. Quem diabos seria a Elvira? A vendedora dos jazigos climatizados? O enigma perdurou até o sábado.

Passava muito pouco das oito, quando o telefone fixo tocou. Era a Elvira. Ela falava em nome do cartão Card, que me levaria à festa do peão boiadeiro. Eu ganharia um ingresso para o rodeio, caso aceitasse a oferta. E mais, poderia pagar o ingresso grátis em 10 vezes sem acréscimo. Fui curto e grosso, agradecendo, mas recusando. Afinal, de rodeio, já havia o palhaço que acordara cedo para receber a ligação. Quando eu peguei novamente no sono, eis que o telefone soou novamente. Não aquele telefone fixo. Era o outro, o telefone secreto cujo número nem eu mesmo sei. Sobressaltado, atendi de pronto, pois deveria se tratar de uma emergência. Era a Elvira, novamente. Fiquei tão assustado, que nem pensei em lhe perguntar sobre quem lhe fornecera meu número ultra-secreto. No acesso de raiva, que se seguiu, coloquei o telefone defronte à TV, para que a Elvira ficasse ouvindo a propaganda da academia de ginástica portátil que faz as vezes de tábua de passar roupa, ralador de queijo e andaime para troca de lâmpadas de teto.

Satisfeito com meu sadismo, fui à cozinha. Quando abri a geladeira, percebi que a voz do vendedor da academia 4Fit havia mudado. Ele parecia conversar com alguém. Foi então que eu percebi que a Elvira lhe vendera um cartão.


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7.2.08

O inalcançável IA32769.098/768-9

Foto: Paulo Heuser

O inalcançável IA32769.098/768-9

Por Paulo Heuser


Diego sentia-se feliz por ter conseguido aquele emprego. Os cinco anos do curso de Marketing, mais os seis anos de Mestrado e Doutorado em Psicologia afinal renderam-lhe os merecidos frutos. Seu pai investiu 132 mil reais na sua educação superior, mas valeu a pena. Conseguiu em emprego que paga setecentos mangos, mais vales transporte e alimentação. Coisa rara.

A segunda-feira começou como outro dia qualquer. Diego serviu-se de café com catchupe e rosquinhas fritas e partiu para a labuta. Colocou os fones e mandou ver. Nada, nem mesmo os 11 anos de educação formal o haviam preparado para o que se seguiu nos próximos três dias. O nome do pesadelo era Indivíduo-Alvo 32769.098/768-9, ou IA32769.098/768-9, para os íntimos. Diego mastigava a rosquinha frita fria quando o sistema contatou IA32769.098/768-9. Pelo canto do olho pode verificar que o IA seria alvo da nova campanha para venda de seguro de viagem para excursões ao centro do Sol. É, aquele mesmo, o Astro Rei. Diego sentia-se particularmente orgulhoso em trabalhar para o Cartel, única organização no planeta, quiçá no Sistema Solar, a vender esse tipo de seguro. Seguro é um negócio complicado. Se você não fizer um, já sabe, algo de ruim vai lhe acontecer. Portanto, melhor fazê-lo. Este foi o argumento que Diego sempre utilizou para convencer seus clientes.

O primeiro alerta surgiu na própria segunda-feira. Algo momentâneo, transiente, pensou Diego. O IA32769.098/768-9 estava fora da rede, por alguma razão incompreensível. Algo transiente, sem dúvida. A situação permaneceu inalterada pelo resto do dia. Na terça-feira a coisa se complicou. Diego nunca enfrentara uma situação como aquela. IA32769.098/768-9 estava em local incerto e não sabido. Algo inusitado, sem dúvida. Diego não conseguiu almoçar naquela terça-feira. Olhava para a rosquinha e via o ID do IA32769.098/768-9 piscando, em vermelho, na tela. Baixou propositadamente a luminosidade do vídeo, para que ninguém ao redor percebesse. Diego trabalho até tarde na noite da terça-feira. Tentou, em vão, estabelecer contato com IA32769.098/768-9. Lá se vai minha promoção, pensou ele.
Diego não dormiu, de terça-feira para quarta. Via o ID de IA32769.098/768-9 por onde passava. Na geladeira, no espelho do banheiro e no teto do dormitório. Não agüentando mais aquela agonia, Diego prometeu a si mesmo procurar o chefe, logo que chegasse ao batente, para confessar seu primeiro fracasso profissional. Não conseguira sequer entrar em rede com o IA32769.098/768-9.

Passava pouco das oito, quando Diego entrou na sala do Chefe.

- Bom dia, meu rapaz. O que deseja?

- Chefe, serei sincero! Não consigo estabelecer contato com um alvo, IA32769.098/768-9. Estou tentado desde segunda-feira pela manhã e nada! O alvo parece estar fora do ar propositadamente. Diego engoliu em seco, ao levantar tal hipótese.

- Como? – gritou o Chefe – Quem faria tal coisa?

Diego encolheu-se visivelmente, antes de continuar:

- Bem, senhor. É o que parece.

- Que nojo! – o Chefe fazia cara de nojo, realmente.

Após passar os olhos pelos relatórios do computador da central, o Chefe deixou-se cair na poltrona imaginando como justificaria tal coisa ao Grande Chefe a Bordo.

Bem, na verdade, eu sou IA32769.098/768-9, sem sabê-lo. Fui veranear alguns dias numa praia onde o celular ficou maravilhosamente mudo. Transformou-se, com num passe de mágica, numa pequena caixinha de plástico, completamente inútil. IA32769.098/768-9 foi feliz, por alguns dias, talvez sem percebê-lo.

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20.7.07

Avatares do mundo real


Avatares do mundo real

Por Paulo Heuser


Kátia comandou nova ligação no sistema de telemarketing. Empreguinho bom esse. Ficava sentada frente ao computador e deixava que ligasse para um dos novos clientes, tão novos que nem eles próprios faziam idéia do vínculo que se estabeleceria, na relação predador/vitima, ou provedor/cliente. Estabelecida a conexão, ela entraria em cena. Orgulhava-se de deixar poucos escaparem. Seu nome estava no painel dos bem-sucedidos do mês, há oito meses. Batia levemente com a caneta nos dentes, enquanto pensava no próximo. Seria homem, mulher, nem um, nem outro? Jovem, velho, crédulo, desconfiado?

Tuuut, tuuut, tuuut, click. Silêncio…

Com essa Katia não contava. Esperava um alô, um pronto ou pelo menos um gemido. Silêncio não era bom sinal. Um dia pegara um que apenas fungava.

- Alô! – ela tentou.

- Ommmmmmm... – ?

- Alô, há alguém aí? – ela tentou novamente.

- Ommmmmmm... – duplo “?”.

Seria a criança da casa colocando um boneco para mugir no fone? Ela já ia desligar e tentar outro número, quando ouviu uma estranha voz:

- Simmmmmmm?

- Desculpe-me, senhor. Estava ouvindo um ruído, deve estar acontecendo defeito na linha.

- Era um mantra.

- É o seu filho? – ela gostava de entrar na intimidade das vítimas. Facilitava as vendas.

- Não, é uma sílaba religiosa do Om mani padme hum.

- Percebo! – disse ela, alegremente, sem nada perceber.

- Com quem eu estaria falando? – ela seguiu.

- Sou Kalki, o décimo avatar de Vishnu!

- Percebo, Senhor Cáqui?

- Não, é Kalki, ká-a-ele-ká-i!

- Percebo, Senhor Kalki.

- Ommmmmmm...

O zumbido começou novamente. Kátia começou a ficar preocupada. Clientes muito esquisitos faziam-na perder muito tempo. Era apenas uma comissão, ao invés de cinco ou seis, em uma hora. Mas, gostava de desafios, e esse era um deles.

- Com o que o senhor estaria trabalhando?

- Sou espadachim.

- Percebo, o senhor está trabalhando em um circo...

- Não, sou o último avatar de Vishnu, o Preservador, o que ainda estava por vir, o espadachim sobre o cavalo, seguindo Sidarta Gautama!

- Ah, o senhor trabalha naquela construtora, aquela daquele negócio do governo...

- Ommmmmmm...

- Bem, Senhor Kalki, o senhor estará recebendo, em sua casa, inteiramente sem despesas, o nosso cartão. O senhor estará ligando para nossa central de relacionamento, fazendo o desbloqueio e já estará usufruindo dele.

- Ommmmmmm...

- O senhor estaria tendo alguma dúvida, senhor Kalki?

- Na verdade, tenho. Qual é o seu endereço?

- Bem, senhor Kalki. Essa informação é confidencial. Eu nem me chamo Kátia, na verdade. O senhor entende desse negócio de avatar, não é? Sou um avatar da empresa, assim como o senhor é um avatar do tal de, como é mesmo?

- Vishnu, o Preservador!

- Isso, mas por que o senhor gostaria de saber meu endereço? – disse ela, adivinhando a resposta. Ouvindo sua voz, ninguém conseguiria associá-la à aparência real. Divertia-se com isso.

- Minha missão na Terra é governar um novo mundo, após eliminar este. Não sabia por onde começar, mas agora, já sei!




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