31.8.06

Johann Foi à Zona, João Se Danou.

Johann Foi à Zona, João Se Danou.

Por Paulo Heuser

A notícia do provável fechamento de uma fábrica de Volkswagen, em São Bernardo do Campo, e a conseqüente demissão de milhares de metalúrgicos, foram tragédias anunciadas. Faz quase três anos, quando foi assinado acordo entre a montadora e o Sindicato dos Metalúrgicos. Se a montadora se comprometeu a não demitir por três anos, seria de se esperar que começasse a demitir, após o término do prazo. Como demitiu os executivos envolvidos em um escândalo sexual, na matriz, em Wolfsburg, na Alemanha, onde teriam pago festas com prostitutas. Talvez para aumentar a potência dos seus automóveis, teriam distribuído aquele comprimido azul, através do plano médico.

A crescente automação dos processos de produção apenas retira postos de trabalho, com exceção das prostitutas, pelo visto. No episódio de São Bernardo falharam governos e sindicato. Há quem culpe os operários por não ter procurado outro emprego nesse meio tempo. Ora, qual é o metalúrgico de meia idade que procura um emprego, no mercado saturado que aí está, provavelmente vindo a perceber salário menor? O salário garante o presente. O futuro vem amanhã. Indesculpável é o fato de governos e sindicado não terem se adiantado na procura de alguma solução, mesmo que parcial. Parido o rebento, de nada adianta tentar anular a concepção.
Hoje vivemos a ressaca da globalização. Comprovamos na prática que o capital não tem pátria nem respeita fronteiras. Há apenas o mercado, o grande mercado.

Plantas industriais se tornaram algo como commodities, com prazo de validade. As empresas globalizadas não enxergam bandeiras, o que vale é o lucro. O que é perfeitamente natural, pois elas são propriedade dos acionistas que lá investiram seu dinheiro, para obter lucro. A maior parte da poupança dos aposentados norte-americanos está investida nessas empresas.

O Sr. John Doe não quer saber se alguém ficará desconfortável ao ser demitido, no Brasil ou na Argentina, quando a Acme Corp. fechar as portas da fábrica, para transferi-la para a China. John Doe ficará preocupado quando os lucros caírem. Quando estes caem, cai o presidente da Acme que leva de roldão os executivos que ganham grandes fortunas. Estes fazem o planejamento de longo prazo, coisa aparentemente desconhecida por aqui, especialmente pelos governos.

O Sr. Johann Von Wolfsburg sabe exatamente quanto tempo poderá durar seu casamento com o Terceiro Mundo, quando sorridente corta a fita inaugural de uma nova planta industrial. Se algo prejudicar a rentabilidade no meio tempo, fecha-se antes. Dificilmente depois, já que os bens de capital tornam-se obsoletos. A construção de uma nova planta pode ser mais interessante em outro local, pelos incentivos fiscais. O passivo trabalhista não corre atrás. Nova planta, novo país, novos empregados, em menor número desta vez.

Se a diretoria trabalhar bem, o corretor de ações do Sr. John Doe ficara feliz e manterá sua aposentadoria investida nas ações da Acme. Enquanto a Acme funcionar, a economia local é beneficiada, pelo surgimento de empregos diretos e indiretos. A renúncia fiscal, sempre controversa, é difícil de ser ponderada. Uns juram que vale a pena enquanto outros vociferam contra. Coisas de governo que estouram no fundilho das calças do contribuinte.

Findo o prazo dos benefícios fiscais, a planta tornada obsoleta, a Acme muda-se para outro país, deixando aqui as viúvas diretas e indiretas. Falar em mudança está errado. Apenas fecham em algum lugar e abrem uma planta nova em outro. Os sistemistas correm atrás da máquina. Tudo novo. Por mais dez anos? Se a conjuntura for favorável. Mudanças na política cambial podem precipitar as coisas. Afinal, o Sr. John Doe não é muito paciente, trata-se do seu dinheiro. E o Sr. Johann Von Wolfsburg gasta muito com orgias.

O fechamento de uma fábrica representa uma grande ruptura na economia local, súbita, mas previsível. Não adianta o Sr. João da Silva fingir que nada vê. O Sr. John Doe está controlando o resultado da aplicação das suas economias. E o Sr. Fung Li Ping está ansioso para empregar mais escravos no seu complexo fábrica-dormitório-senzala na China. O gigante acorda finalmente Acorda para o grande mercado, com muita fome.

Definitivamente, o capital do Sr. John Doe não tem pátria. Os escravos da senzala do Sr. Fung Li Ping, as prostitutas do Sr. Johann e o emprego do Sr. João da Silva têm.

O Sr. Johann Von Wolfsburg poderia se divertir, com o seu próprio capital, na Reeperbahn, rua-prostíbulo do bairro St. Pauli, de Hamburgo, Alemanha.

Aquilo sim é uma zona sem fronteiras.

E-mail: prheuser@gmail.com

30.8.06

Das Crônicas Raimundianas V - Arroz e Feijão

Das Crônicas Raimundianas V - Feijão e Arroz

Por Paulo Heuser

Raimundo Alterego e sua família viram a prosperidade chegar. Junto com uns quilos a mais. As antigas refeições em família foram trocadas por lautos almoços, jantares e ceias. Até o singelo café da manhã com uma fatia de pão com geléia foi trocado por croissans com recheio. A preocupação do Raimundo aumentou quando observou que a despensa estava repleta de produtos diet, light, e coisas do gênero. Não demorou para convocar uma reunião de família.

Compareceram o Velho (o sogro), Zé Tongo, a irmã do Zé, o Japa que, até onde sabia, nem parente era, e o resto do pessoal de casa. Raimundo havia mandado colocar as cadeiras viradas para um imenso espelho que colocara na sala. Deu resultado imediato, o pessoal foi chegando e olhava com desconforto para o espelho.

Ouviram atentos enquanto Raimundo manifestava sua preocupação com a saúde da família e, por que não dizer, dos empregados da Cotra – holding do grupo – em geral. Sugeriu que todos, alternadamente, se internassem num spa para deixa alguns quilos para trás. Foi nesse momento que o Velho pareceu acordar, perdido nos seus pensamentos, como de costume, e disse que um spa de nada adiantaria, a médio e longo prazos. Indagou quem era a única pessoa da sala que não adquirira sobrepeso. A irmã do Zé Tongo. Curioso, pensou Raimundo, até hoje não sei o nome dela. Realmente, ela estava mais do que em forma, podendo sempre usar aquelas roupas colantes de ginástica. Por quê? Porque era recreacionista de jardim-de-infância e de altos executivos. Estava sempre correndo, pulando e ensinando a prender o rabo no burro. Brincar de cabra cega com os executivos exigia bom preparo físico, para impedir que entrassem de cabeça nas paredes.

Num evento de motivação de equipes, ensinara uma brincadeira idiota para uma equipe de funcionários que apresentava problemas de integração. Cada membro da equipe tinha de correr de costas, o mais rápido que pudesse, em direção à parede, de olhos vendados. O resto da equipe tinha de salvá-lo antes da colisão. Tudo correu às mil maravilhas, até que o gerente da equipe tomou todo impulso possível e veio com tudo em direção à parede. Quando a cabeça dele rachou, parte da equipe havia ido tomar café. Os outros, reunidos no pátio, assoviavam enquanto examinavam as unhas. Até hoje a cabeça daquele gerente apresenta uma região achatada na parte posterior.

Desde então, a irmã do Zé está sempre preparada para salvar gerentes em treinamento motivacional. O que mais impressionou a irmã do Zé foi a fé desse pessoal. Tem de ter muita fé para se jogar de costas, com os olhos vendados, em direção a uma parede, sabendo que aqueles que vão salvá-lo são os mesmos que sonham com a sua posição no organograma. Orgasnograma neste caso.

Seja como for, o Velho percebeu que o exercício inerente à atividade de salva-vidas de executivos era o que mantinha a irmã do Zé na linha. O Velho pediu que ela narrasse suas experiências de entretenimento empresarial.

Só ela sabia o que é segurar um gerente de uma multinacional dinamarquesa. Depois desses eventos traumatizantes, optou pelas coisas menos radicais, como fazê-los andar de olhos vendados numa sala escura sem que se choquem uns com os outros. Curiosamente, os gerentes sempre saem de lá com um olho roxo. Aprendeu rápido a ficar fora da sala, enquanto eles completam sua missão. No escuro, olho não tem dono.

Optou também por atividades lúdico-psicocognitivas, desenvolvidas através de exercícios cênicos de desenvolvimento corporal cognitivo, também conhecidos como teatrinho. No jardim de infância essas atividades não são tão interessantes, pois as crianças ainda têm senso de ridículo e se autocensuram. Com os executivos é muito mais interessante. No afã de superar os pares, fazem qualquer coisa, por mais ridícula que seja.

Enquanto ela falava, Raimundo lembrou-se de um curso desses, quando manifestou ao instrutor seu constrangimento, dizendo que estava se sentindo ridículo por ter de corcovear, relinchar e rolar pelo chão. O indignado treinador disse que não bastava sentir-se ridículo, ele havia de ser realmente ridículo. Fez uma cara de quem havia perdido seu tempo com um retrógrado incorrigível. Outra cena hilária – na visão do Raimundo – fora a de um sujeito que assumira uma posição de carateca contorcionista e emitira um som agudo e sibilante, digno do lagarto de Inimigo Meu. Segundo ele, teria imitado uma árvore, holísticamente.

Talvez a coisa mais incrível que a irmã do Zé inventara foi uma sessão de relaxamento regressivo, onde os executivos foram sugestionados para relaxar partes do corpo, após alguns minutos de concentração com os olhos fechados. Começara sugerindo que relaxassem as partes usuais, mãos, braços, pernas, etc. Como a coisa estava indo bem, resolveu ousar um pouco mais nas sugestões, incluindo escroto, esfíncteres e olhos. Num rompante de entusiasmo zen, sugeriu que relaxassem os sistemas nervosos simpático e parassimpático. Resolveu não repetir a técnica, pois foi necessário chamar o pessoal da limpeza e uma ambulância para aquele gerente que conseguiu relaxar simultaneamente o simpático e o parassimpático.

Finalizando, a irmã do Zé recomendou que o pessoal da Cotra fizesse um programa de exercícios físicos aliado ao regime alimentar. Ela não gostava de academias, preferia o exercício ao ar livre. Comentou que a obesidade e a falta de condicionamento eram quase inexistentes nas zonas rurais.

Foi aí que caiu a ficha do Velho. Levantou de sopetão e gritou: - Vamos para a colônia! Ninguém entendeu no momento, mas ele explicou. No passado não eram obesos porque comiam comida decente e pegavam pesado na roça. Hoje se alimentavam apenas de alimentos processados e levavam vida sedentária.

Raimundo achou que a idéia do velho era bem sensata. Retirariam toda aquela porcaria química da alimentação e passariam a exercitar-se ao ar livre. Encontrando um spa do tipo fazenda, poderiam internar o resto dos funcionários, de tempos em tempos. Já estava encarregando o Zé Tongo de encontrar um lugar quando o Velho interrompeu, alegando que um spa tinha vícios de origem. Tinha de ser algo realmente rústico, com banho de chaleira e cabungo.

Captou a idéia e pensou além. Poderiam transformar o problema familiar num negócio. Comprariam um sítio com a infra-estrutura rústica, acrescentando apenas os alojamentos necessários, mantendo sempre a rusticidade original. Se alguém paga uma fortuna para internar-se num spa, onde come grama e grãos de alpiste light, e veste-se como enfermo, o que não fariam para viver alguns dias de vida natural? Expôs a idéia e teve apoio. O Japa, transformado em RP – Relações Públicas -, contrataria alguns atores e atrizes famosos para divulgar que passaram alguns dias ali. Contratariam a revista Carrancas para divulgar fotos do local com aquelas notícias do tipo Ermelindinha Abrafazão passa temporada no agro-spa.

Criaram uma equipe integrada pelo Velho, Zé Tongo e a irmã, para procurar um local. A irmã do Zé conversara longamente com médicos, profissionais do esporte, nutricionistas e dois colonos, um alemão, outro italiano. Se havia alguém que entendesse de colônia eram estes dois. Traçado o perfil do local, foram a campo. Acabaram encontrando um sítio na subida da serra, com um morro enorme, açude, pomares, chiqueiro e lavoura variada. Os colonos solicitaram alguns equipamentos adicionais, como pipas, um alambique e autoclave.

Após longo estudo, resolveram entregar a administração do local aos colonos e suas famílias. Ninguém entendia mais daquilo. A irmã do Zé permaneceria no planejamento das atividades e o Zé Tongo na logística. Sempre poderia faltar esterco ou algum outro insumo para manter o conforto dos hóspedes.

Raimundo e sua família foram os primeiros hóspedes da CotraVida, primeira fazenda- spa autêntica do País. Ficaram durante um mês. Todos saíram de lá com menos peso e bem mais condicionados fisicamente, além de apresentarem a cor de quem andou levando a vida ao ar livre.

A irmã do Zé aproveitou para fazer alguns ajustes, como a inclusão de papel higiênico, em substituição à palha e ao sabugo de milho. Pequenos confortos eram admissíveis. Rústico, mas levemente civilizado.

Na semana seguinte a CotraVida começou a receber os primeiros hóspedes pagos. A matéria paga na Carrancas fora decisiva. As fotos da Ermelindinha Abrafazão em meio àquela natureza maravilhosa encantaram socialites e seus maridos. Ela assinou um contrato de sigilo por três meses. Nada poderia comentar além do que saiu na Carrancas.

O primeiro contato dos estressados hóspedes foi meio traumático. Os colonos Helmut e Peppe receberam-nos na porteira, cedo pela manhã. O café da manhã foi servido um pouco mais tarde, pois o pessoal nunca havia ordenhado uma vaca, e as amigas da Ermelindinha Abrafazão não haviam levado luvas cirúrgicas. Como era o primeiro dia da turma, Edeltraut e Odete – casadas com o Peppe e Helmut - prepararam o pão. A partir do dia seguinte foi feito pelos hóspedes.

Da turma mista de 30, sobraram 16 após três dias. Todas mulheres. Nenhuma desistira. Conversando daqui e dali, Odete descobriu a razão da tenacidade feminina. Se Ermelindinha Abrafazão pôde agüentar, elas também agüentariam. Na primeira noite ninguém dormiu. As dores musculares eram tantas que o simples movimento da inspiração causava gemidos.

Nenequita Abud-Popokelvys, chegada from Paris, tentou arrumar um telefone para encomendar uma equipe de serviçais. Edeltraut deu um jeito de dissuadi-la, mostrando o contrato que proibia a entrada de serviçais. Como consolo, deixou que tomasse vinho à vontade. Esqueceu de lhe dizer que o vinho estava no topo do morro e poderia apanhar apenas um copo por subida. Na segunda noite contaram quatro subidas da Nenequita. Depois desmaiou. Nem sentiu os pernilongos do riacho, na subida.

Duro mesmo era sovar o pão, cedo na madrugada. Felizes daquelas que iam ordenhar as vacas. Esqueceram-se das luvas. Aí pelo quarto dia, as dores começaram a dar lugar ao cansaço. Era deitar e dormir. Ninguém mais se lembrava de dores localizadas. Só havia aquela generalizada.

Após uma semana, Nenequita Abud-Popokelvys foi para cama com as galinhas e acordou com o galo. Não no sentido figurado, bem entendido. No sábado, Edeltraut e Odete organizaram uma festa de uma semana de sobrevivência. As hóspedes poderiam fugir dentro de mais uma semana, sem se mixar para a Ermelindinha Abrafazão. O que aconteceria com esta se as demais descobrissem que passara apenas duas horas lá, tempo suficiente para a gravação da matéria de Carrancas? E recebera repelente! Edeltraut ficou com pena das meninas, acabou ensinando como fazer um repelente orgânico de pernilongos e borrachudos à base de urina de porco com lama do açude.

Falando no açude, Helmut e Peppe organizaram um pesque e coma. Para variar o cardápio de feijão com arroz, carne de panela e salada verde, abriram a opção do peixe com polenta no almoço, desde que este fosse pescado, limpo e preparado, pelas hóspedes. As meninas logo descobriram que o preparo da polenta era um excelente exercício para os braços. Odete deu a receita e ensinou a cantar La Bella Polenta.

Milinha Fortuna Stevenson quase teve um ataque histérico quando descobriu que aquele crème delicioso que passavam no pão, todas manhãs, era a genuína banha de porco. Ela ofereceu-se para cozinhar. Era mais fácil do que a lida da roça. Estava surpresa com o cardápio. Nunca imaginara que os pobres comiam algo tão delicioso como aquele bastantão. Na verdade, não se recordava da última vez que comera feijão, antes da vinda. Outras delicatessen, como o milho verde na brasa, também a surpreenderam.

Numa noite chuvosa, à luz do lampião, Milinha e Nenequita observaram Edeltraut e Odete trançando a palha para fazer um balaio. À pergunta se conseguiriam fabricar uma bolsa de palha, responderam que sim. Foi o bastante para que socialites colocassem a cabeça a funcionar e montassem a grife Odette Edeltrautt – fica chique acrescentar consoantes -, de bolsas rústicas. O Conselho da CotraVida concordou, desde que as bolsas fossem vendidas apenas no sítio, apenas uma unidade por hóspede. Haviam de ser feitas pelas próprias hóspedes. Odete e Edeltraut entrariam apenas com a etiqueta, bordada à mão. Na verdade, bordavam à máquina, mas a lenda tinha de ser mantida.

Milinha e Nenequita ainda tentam convencer Raimundo a permitir a abertura de uma loja na Via Condotti, Piazza di Spagna em Roma, para vender as bolsas. Na Rua 25 de Março, em São Paulo, Via Condotti das bellas locais, as imitações afloram dos atacados chineses. Seriam perfeitas, não fosse a ausência daquele odor peculiar, não sei se esta é a melhor palavra para descrevê-lo.

Findas duas semanas, Milinha, Nenequita e suas amigas voltaram para casa. Eram outras mulheres. Hedonisa Tamburimdegay surpreendeu a todos e a todas quando resolveu ficar mais uma semana. Descobrira que a flacidez estava sumindo. Suas pernas estavam vistosamente diferentes, depois das escaladas noturnas para buscar o vinho do Peppe. Este lhe confidenciou que na semana seguinte começariam a esmagar a uva da safra, para fabricar o beajolais mais nouveau do planeta. Subindo o morro diariamente, amassando uvas com os pés, ficaria com as coxas nouveau também.

Percebeu também que esquecera o telefone do analista. Mas aprendera a encher morcela. Branca e preta! A lipoaspiração para livrá-la daquele culotezinho irritante foi para o brejo, o do sítio. As máscaras de pepinos recém-colhidos faziam outro efeito. Aliás, tudo ali parecia diferente. Esquecera também o Bebeto Frota Rançoso, quinto e atual marido. Suas amigas foram-se em meio aos planos para organizarem um campeonato beneficente de arremesso de sabugos, na próxima temporada. A renda reverteria para a igreja da vila.

Todas voltaram no mês seguinte para o I Open de Arremesso de Sabugo da CotraVida. E não voltaram sós. Até o Bebeto Frota Rançoso veio, from não sei onde, para ver o que sua mulher andava aprontando.

Quando viram o novo look da Hedonisa, o livro de reservas da CotraVida estourou. Carrancas montou uma edição especial para cobrir o Open. As fotos do pessoal se refestelando em meio aos pratos de arroz e feijão, regados ao beajolais mais nouveau do planeta, correram mundo.

Para os rapazes, Helmut montou o alambique, encarregando-os do processo produtivo, desde a colheita da cana até o envase. A ânsia em provar o néctar fez uma cachaça de doze horas de envelhecimento em barris de carvalho. Após o trabalho, parecia melhor do que um Camus Jubilee da casa Möet Hennessy. O Empório Valentão tentara conseguir algumas caixas do néctar. O Conselho da CotraVida decidira que a produção ficaria no sítio, podendo ser consumida apenas ali. O excedente da produção de vinho foi mandado para o padre Antonello da paróquia da vila. Nunca foi vista tal fila para comungar, dava voltas na igreja.

Helmut conseguira montar uma microcervejaria caseira, a CotraBier, onde os maridos se divertiam nos processos artesanais de produção. Em homenagem ao Helmut, e para rivalizar com a cerveja inglesa Spitfire, resolveram chamar o precioso produto de Messerschmitt. A ressaca era compatível com o efeito do ataque de um destes.

Bem que Hedonisa Tamburimdegay tentou se adaptar à vida fora do sítio. Após três meses fora, retornou. O culote ameaçou voltar, bem como a flacidez que nenhuma academia conseguia resolver. Ela conseguiu convencer Raimundo e o Conselho a comprar as terras ao redor, para lançar o CotraVille, condomínio anexo ao sítio. O Conselho concordou, já que os hóspedes insistiam em ficar, tornando a fila eterna. Da última vez que falei com o Raimundo, andavam com mil lotes vendidos.

Hedonisa Tamburimdegay se adaptara a quase tudo no retorno à civilização. Trocara o Bebeto Frota Rançoso pelo Cacaio Lustoza Ferraz, sexto e atual marido, campeão brasileiro e sul-americano de arremesso de sabugo olímpico.

Só não se adaptou à falta daquele feijão com arroz.


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29.8.06

Quarenta Histórias

Quarenta Histórias

Por Paulo Heuser

Em tempo de formaturas, temos a tendência de considerá-las todas muito semelhantes, a mesma combinação de togas, músicas tema, autoridades, homenageados, famílias, formandos, hinos e protocolos. Assisti ontem à cerimônia da Faculdade de Odontologia da Ufrgs.

Afora autoridades, homenageados e funcionários, todo mundo estava lá para homenagear algum formando em especial. Acabei me distraindo um pouco com os personagens outros, que estavam trabalhando na cerimônia, enquanto aguardava a vez da formanda motivo da minha presença.

Operadores de câmeras e fotógrafos vestiam preto para não chamar a atenção sobre si. Impossível não perceber a presença de um operador de cabo (um cabista?) que auxiliava o operador da câmera de vídeo. Sua função era a de evitar que o cabo se enrolasse ou que o operador da câmera tropeçasse nele. O rapazinho corria atrás do chefe tentando prever a direção que este tomaria, feito reboque desorientado.

A cena me lembrou de um amigo, já falecido, que comprou uma velha motocicleta alemã da marca Zündapp necessitando de algumas pecinhas, como uma caixa de câmbio. Contou com a ajuda de um amigo para rebocá-la até em casa, usando para tanto uma Lambreta e uma corda. Numa esquina se desentenderam quanto a direção a ser tomada. Um foi para a esquerda, o outro foi reto.

Voltando a cerimônia, percebi o que diferencia as formaturas, umas das outras. A primeira diferença está nos discursos. Foram 40 discursos de 40 formandos. Em cada um, uma história de vida. Algumas semelhantes, nenhuma igual às outras. Em todas uma sensação de vitória pela conquista do diploma.

Os discursos proferidos pelos formandos têm a mesma estrutura básica. Iniciam pelos agradecimentos à família, namorados, à faculdade, etc. Mesmo aí ocorrem variantes importantes.

Em pelo menos quatro discursos, além dos agradecimentos usuais, agradecimentos aos pacientes, figurantes anônimos no processo da conquista do diploma. Fiquei imaginando a situação dos familiares no pós-diplomação: "E aí paizão! Vamos treinar? Agora não precisas mais daquele dentista". Quem é pai participa, não é?

Dos discursos, o que chamou mais a atenção, e levou às lágrimas tanto a própria formanda como a platéia, foi o proferido por uma menina que agradeceu à família, declarando, emocionada, ser a décima filha de um casal de pequenos agricultores. Dez filhos graduados. Com a voz embargada pela emoção, afirmou que o Brasil seria um país muito diferente se todas famílias fossem como a dela. Ganhou a noite. E o futuro.

A outra grande diferença desta formatura foi a qualidade dos sorrisos. Quarenta sorrisos perfeitos e alvíssimos, feito 40 teclados novos em folha.

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28.8.06

O Herdeiro dos Infernos e O Inferno Astral

O Herdeiro dos Infernos e o Inferno Astral

Por Paulo Heuser

Quem nomeou Plutão, em 1930, já deveria imaginar seu destino. Plutão foi a versão romana do deus grego Hades, o Herdeiro dos Infernos. Sua maior lua, Caronte, foi batizada com o nome do barqueiro que levava os mortos até Hades.

Entre os astrônomos, Plutão já era a bola da vez há muito. Apresenta características físicas muito diferentes das apresentadas pelos outros planetas verdadeiros. Sua órbita está fora do plano da eclíptica – plano imaginário onde se encontram as órbitas dos demais planetas. Sua densidade é o dobro daquela esperada para os planetas além de Marte, os jovianos – Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, gigantes gasosos. Plutão apresenta algumas das características dos planetas telúricos – Mercúrio, Vênus, Terra e Marte, como superfície sólida. A órbita de Plutão apresenta grande excentricidade – não é circular -, diferente das dos demais planetas.

Pelas suas características de órbita solar e constituição física, Plutão se encaixa melhor como um dos objetos do Cinturão de Kuiper, coleção de objetos menores com órbita transnetuniana.

Como conseqüência da nova classificação de Plutão, um planeta anão, os livros de Geografia e Ciências terão de ser alterados, bem como a memória dos pupilos. Aí está uma questão certa para os próximos exames vestibulares. Se for o seu caso, aposte suas fichas em Plutão.

A notícia não repercutiu muito bem entre os astrólogos. Os astrônomos têm a mania de perseguí-los. Desde a criação da UAI – União Astronômica Internacional -, em 1922, tentam bagunçar o trabalho dos astrólogos. Estes dizem que a reclassificação de Plutão em nada mudará a vida das pessoas. Acredito piamente. Outros podem não acreditar tanto assim. Imagine se lhe disserem que passará a ser regido por um planeta rebaixado. Pode afetar a autoconfiança, não pode?

O golpe provocado na Astrologia pelo rebaixamento de Plutão é bem menor do que o decorrente da alteração feita pela UAI no Zodíaco, em 1925. Esta foi pouco divulgada, pelo visto. Desde então, há 13 signos zodiacais, devido ao movimento de precessão dos equinócios da Terra. Imagino ter provocado duas questões: o que diabos é precessão dos equinócios? Qual é o 13º signo? Precessão dos equinócios é um movimento do eixo de rotação da Terra, semelhante à oscilação do eixo de um pião girando, cuja explicação é longa demais. O efeito notável é a mudança do que vemos no céu, ao longo dos tempos.

O céu que vemos hoje não é o mesmo que Aristóteles viu quando definiu as constelações zodiacais. Hoje vemos 13 grandes constelações dominantes. A novidade (em 1925), para muitos, ignorada pela Astrologia, é Ofiúco – Ophiuchus ou Caçador de Serpentes. Talvez a ignoraram pelo nome estranho, feio. Você pensa que é sagitariano e alguém lhe chama de ofiucano. Você devolve de pronto: - Bem como a senhora sua mãe!

Já sei, você está morrendo de medo de ser um ofiucano, não é? Pois bem, se você nasceu entre 30 de novembro e 17 de dezembro, está contemplado. Ofiúco fica entre as constelações de Escorpião e Sagitário. Até estudar Astronomia eu acreditava ser um capricorniano. Descobri ser sagitariano. Fiquei profundamente abalado. Você já pensou que pode estar no signo errado? Confira em http://astro.if.ufrgs.br/const.htm .

Se a reclassificação de Plutão não afetou muita gente, imagine o que pode fazer o 13º signo zodiacal. Há quem corte o cabelo, escolha marido ou mulher, dê nome aos filhos, escolha a data de concepção deles, com base no Zodíaco. Se você está entre eles, pode estar dormindo ao lado da pessoa errada! Com quem será que Ofiúco é compatível?

Tenho cá minha opinião pessoal sobre a reclassificação de Plutão. Creio que Nike e Adidas não chegaram a um acordo com a Fifa – Federação Interplanetária de Futebol Amador.

E-mail: prheuser@gmail.com

27.8.06

Cadê o Meu Sorvete?

Cadê o Meu Sorvete?

Por Paulo Heuser

Adoro sorvete, desde criança. Tentei encontrar a origem do sorvete. A maioria dos relatos aponta para a China, há três mil anos. Fiquei imaginando como fabricavam o gelo. O idiota aqui não sabia que traziam neve das montanhas e a misturavam com sucos de frutas e mel. Outras versões informam que misturavam leite(?) de arroz.

Na minha cidade natal não havia neve. Creio que compraram um iceberg. Os picolés cilíndricos tinham cores fantásticas quando comprados. Bastava uma sugada e restava apenas um bloco de gelo espetado no palito. Chupá-los exigia técnica. Devíamos apreciá-los lentamente, para não sugar todo o capilé de uma só vez. Por outro lado, suficientemente rápido para evitar que derretessem antes.

Os picolés eram tão baratos que dávamos várias voltas na quadra do bar que os vendia, no dia da mesada. Em cada volta se ia um picolé de capilé. Chegávamos em casa com os beiços e a língua multicolores. Bem como a camiseta. O mais interessante nesses picolés era o sabor padronizado. De olhos fechados todos sabores tinham exatamente o mesmo sabor, variava a cor. A cor intensa tornava o de framboesa o mais atraente.

Os sorvetes cremosos eram bem mais caros. O de 500 (Cruzeiros?) - era imenso. Matava toda mesada numa tacada só. Melhor não exagerar, um de 250 já bastava. Numa volta do colégio, nos tempos do primário – atual fundamental -, um caminhão perdeu uma enorme caixa de papelão. O caminhão seguiu seu caminho em meio aos buracos e a poeira. A pirralhada ficou muda olhando para aquela caixa misteriosa, durante uns dois segundos. Logo descobrimos o que a caixa continha: casquinhas de sorvete, centenas delas. Foi o primeiro festival do sorvete sem sorvete. Todos ficaram empanturrados com casquinhas de sorvete. Naquele dia sobrou muito almoço. E muita mochila cheia.

O sorvete começou a aparecer entre as sobremesas dos bufês de almoço no Centro faz alguns anos. Tortas de sorvete maravilhosas, com calda de caramelo. Havia um restaurante na Sete de Setembro que tinha a melhor. Comia uma folha de alface e um tomate cereja para deixar lugar para a torta de sorvete, repetida. O restaurante fechou, mas a moda da torta de sorvete se espalhou pelo Centro.

Como a humanidade não para de evoluir, seus produtos não param de regredir. Minimizando custos, inventaram um sorvete que tem cara de sorvete, cor de sorvete, mas não é sorvete nem tem gosto de sorvete, assim creio. De longe engana bem. Até o momento de servir. É leve, mole e estica, se parece com, com... gosma. Não tive coragem de prová-la. Se tiver o sabor compatível com a consistência e a aparência, com certeza terá sabor de isopor gosmento. Também não é gelada, gosma morna mesmo. Espertamente, removeram a plaquinha que antes indicava ser sorvete.

A combinação gosma - casquinhas do caminhão cambaleante formaria um conjunto bem harmônico, já que a casquinha clássica tem gosto de isopor sólido. Imagino que a comida dos astronautas deva ser mais ou menos assim. Schluuuurp (Chluuuurp alemão), numa sugada foi tudo. Depois o infeliz descobre o que comeu, lendo na embalagem: Crème Glacée du Styrofoam – sorvete de isopor.

Já há restaurantes que estão servindo gosma em dois ou três sabores (ou cores?) diferentes. Os tons de lilás-forro-de-caixão estão predominando. Talvez sejam os de sabor uva-metálica. Verde-água e rosa antigo também aparecem bastante. Creio que são os de kiwi verde e goiaba verde, respectivamente. Esta última seria a coisa mais adstringente com a qual a natureza nos brindou. A boca vira ao avesso e os dentes encolhem.

Por via das dúvidas, almocei um sandubão trazido de casa, sem sobremesa. Olhando dentro, descubro do que foi feito.

E-mail: prheuser@gmail.com

24.8.06

Teozinho, o Autista

Teozinho, o Autista

Por Paulo Heuser

Meu amigo Raimundo Alterego andava preocupado com o filho Theobaldo - o Teozinho. Às lágrimas, relatou o que estava se passando. Teozinho fora um menino como qualquer outro, até começar a ler. Adorava ler. Quando voltava da escola, pegava o jornal, devorando artigo por artigo, linha por linha. Lia, repetindo as palavras em voz baixa, às vezes voltando para tentar entender os termos mais complexos. Quando a repetição não bastava, indagava o significado daquelas estranhas palavras dos pais ou irmãos.

Passados alguns meses, teozinho começou a questionar o conteúdo de alguns artigos. Lia uma notícia sobre a apreensão de uma ambulância cheia de cigarros contrabandeados do Paraguai. Daí veio uma cascata de questionamentos. O que é contrabando? Por que é permitido vender cigarros se estes fazem mal à saúde? Por que é permitido fabricá-los? Por que é permitido fumar? Por que não prendem quem os vende? Raimundo tentava responder da melhor forma possível às perguntas irrespondíveis que o menino fazia. No frigir dos ovos, nada fazia sentido mesmo.

No mesmo maldito dia apareceu a notícia da fuga de um famoso bandido, já prevista. Outra torrente de perguntas. Se já sabiam que fugiria, por que não o prenderam antes? Se a lei permite, por que não prendem quem fez a lei? Se quem fez a lei não pode ser preso, por que deixam aqueles que não podem ser presos fazer a lei? Por que eles não podem ser presos?

Raimundo mandou o menino ficar quieto, em meio ao sufoco, alegando que ele não teria idade para entender o que ocorria. Mandou que lesse outra seção do jornal. Como desgraça pouca é bobagem, Teozinho escolheu aquela onde os tios falavam sobre o que fariam, caso fossem eleitos. A mudança foi perceptível, o menino perdeu a expressão séria e confusa e passou a sorrir enquanto lia. Raimundo observou aliviado, pelo canto do olho.

Dia após dia, Teozinho chegava em casa, largava o material escolar e mergulhava no jornal, fazendo apenas uma pausa para o almoço. A felicidade do menino era tão visível que até a professora comentou como esse menino andava feliz com a vida.

As coisas começaram a mudar no dia em que Teozinho apareceu em casa com um olho roxo. Tivera uma discussão com um colega e no vai-não-vai acabaram indo. O colega o chamara de mentiroso quando ele afirmou que tudo mudaria para melhor, após as eleições. Teozinho batera pé e afirmara que estava acompanhando tudo pelo jornal e pela tv.

A partir das eleições, o Brasil seria um país diferente. Todos seríamos honestos, trabalhadores, justos e a miséria seria erradicada. Não veríamos mais pobres na rua, os doentes seriam assistidos, todos teriam direito à educação e todos os jovens teriam emprego com salário justo. Assaltos e violência seriam coisas do passado.

Raimundo constatou, apavorado, que o menino estava lendo e ouvindo o noticiário político e, o que é pior, acreditando no que lia e ouvia. Tentou explicar que eram apenas promessas, quase nada seria cumprido. O menino ficou pálido, por trás do olho roxo, e começou nova avalanche de perguntas, mudando de tom de voz à medida que avançava, cada vez mais estridente. O pálido deu lugar ao rubro crescente.

Se não cumprem o que prometem, por que votam neles? Por que noticiam as promessas que não podem ser cumpridas? Por que a tv é obrigada a fazer propaganda dos que não cumprem as promessas? Por que não prendem os que obrigam a tv a fazer propaganda dos que não cumprem as promessas? Por que não podem prender os que fazem as leis que obrigam a tv a mostrar as propagandas....? Repentinamente, tudo cessou.

Teozinho nunca mais abriu um jornal. Não assiste mais à tv. A professora alertou para uma mudança radical no comportamento do menino. Está acabrunhado, briga por qualquer coisa, não se comunica mais com professores e colegas. A família observou que ele fica quieto, fitando o nada, enquanto oscila monotonamente, para frente e para trás. Foi diagnosticado autista. Estranhamente, apresentava períodos de melhora, durante o dia. Algo como um autismo intermitente.

Passados alguns meses, Raimundo observou que o estranho comportamento do menino cessava quando a tv era desligava. Fez alguns testes e confirmou. Bastava ligar a tv para que a oscilação começasse. Desligando a tv, o menino voltava ao quase normal.

Ligada ou desligada a tv, Teozinho nunca mais sorriu. Nunca não, deu um breve sorriso no Natal, ao ganhar um presente. Naquele Natal, Raimundo ganhou um livro de um autor alemão, Günter Grass.
O menino ganhou O Tambor.

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23.8.06

Marcos e João

Marcos e João

Por Paulo Heuser

Isto não é um relato sobre apóstolos. Tampouco é uma história de amor entre dois caubóis na novela das oito. São outros Marcos e outros Joões. Soa mal, mas se Mário de Andrade pôde, em Paulicéia Desvairada, também posso. Perdoem-me os Joões.

Passados alguns meses da polêmica viagem espacial do astronauta brasileiro, resolvi fazer uma repescagem no assunto. Confesso que mudei de opinião após ter lido o histórico da Missão Centenário – homenagem a Santos Dumont – e o currículo do Tenente-Coronel Marcos Pontes. O projeto nasceu em 1997, na AEB - Agência Espacial Brasileira -, tornando o Brasil integrante do projeto da ISS – Estação Espacial Internacional. Cabia a AEB o fornecimento de peças fabricadas por empresas nacionais para a ISS, coisa que nunca foi levada a cabo. A FAB coube a seleção de um oficial, Marcos Pontes no caso, para integrar uma das missões. Aparentemente, foi a única coisa que funcionou na participação na ISS.

O astronauta brasileiro foi treinado pela Nasa e pelo centro russo de Zviozdniy Gorodok. Parte do treino foi para pronunciar o nome do centro. Pois bem, em março de 2006, Marcos Pontes subiu ao espaço a bordo de uma nave espacial russa, acoplada posteriormente à ISS, onde realizou experimentos enviados pelas universidades brasileiras e pelos alunos de uma escola de ensino fundamental de São José dos Campos, SP.

O custo do treinamento e envio do astronauta brasileiro foi de dez milhões de dólares, valor considerado exagerado por parte da opinião pública e por toda a oposição ao governo, quando considerados os resultados alcançados. Naturalmente, o governo contabilizou o feito e defendeu o investimento com unhas e dentes.

Provavelmente o que causou certo desconforto, e foi amplamente usado pelos críticos do projeto, foi a presença de dois experimentos de alunos de escola fundamental, um sobre a germinação de pés de feijão e outro sobre cromatografia de plantas. Após ter lido os objetivos dos experimentos, entendi que a idéia era despertar nas crianças o gosto pelas ciências, já que puderam acompanhá-los através da rede.

Muitas críticas foram feitas à pessoa do Tenente-Coronel Marcos Pontes, por ter passado à reserva da FAB após a viagem. Lendo os motivos, não há muito do que reclamar. E, como ele próprio coloca no seu sítio na rede, não foi o mentor nem o administrador do projeto. Foi o oficial brasileiro selecionado, treinado e embarcado na missão, que cumpriu com perfeição.
Muitos professores estão fazendo esforços para tornar o ensino de Astronomia mais interessante. Um chegou a vestir o modelo de um traje espacial, em aula. Parte desse estímulo vem da viagem do nosso astronauta.

O experimento da germinação do feijão chamou tanto a atenção porque todos nós o realizamos nas aulas de ciências do segundo ou terceiro fundamentais – primário no meu tempo. Alegres e a cantarolar, levamos nosso chumaço de algodão e o grão de feijão. Fico imaginando o Marcos Pontes assoviando a música dos sete anões enquanto alegremente regava o broto de feijão. Coisa para emocionar o sujeito mais rude.

Senti que mais associações poderiam ser feitas. Senão vejamos, o João do Pé de Feijão começou mais ou menos assim. Teve ajuda de uma fada, concordo, mas acabou nas alturas, acima das nuvens, como o Marcos, este amparado pela fada russa. Ambos trouxeram prosperidade na volta, após manejarem o pé de feijão. João trouxe um ovo de ouro. Marcos trouxe o relato da missão. Aí que as semelhanças acabam. João fez diversas viagens, até assassinar o gigante, cortando a base do pé de feijão. O Marcos encerrou as viagens, deixando em apuros outros gigantes figurados.

Havia a bordo outros experimentos brasileiros, de difícil compreensão para o público leigo. O do pé de feijão popularizou a missão. Deixou os acadêmicos de cabelos em pé. Temiam que fossem também realizados experimentos com carimbos de batatas e pisca-piscas de quatro lâmpadas. Pura inveja.

Estranho mesmo era um enorme russo a bordo, fungando e gritando Fé, fa, fi-fó-fum.

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22.8.06

Rei Só, Rei Nu

Rei Só, Rei Nu.

Por Paulo Heuser

O Rei da Caótica gozava de imensa popularidade. Atingira um nível de aceitação pelo povo como nenhum outro antes conseguira. Uma das razões para explicar sua popularidade era a sua origem. O Rei nascera entre o povo. Uma vez guindado ao poder pela Casa a qual pertencia, cuidou para manter a aparência de humilde servo do Reino. Isso só fez aumentar sua popularidade.
O povo podia abraçar o Rei como um dos seus. Este compartilhava das maneiras e costumes dos plebeus. Distribuía grãos e galinhas por onde passava. Quando misturado à Corte, aprendera a se comportar como Nobre, apreciando as boas coisas que o Reino da Borgonha oferecia.
O Rei tinha ampla sustentação na Casa dos Nobres, parte dela conquistada através de pequenos agrados feitos pelos burgueses aos membros das diversas Casas, principalmente das Casas Menores. No entanto, uma das Casas Maiores queria depor o Rei e substituí-lo por um dos seus membros. Com fazê-lo, se o Rei gozava de ampla sustentação, tanto popular como da Casa dos Nobres?
Três Cavaleiros da Casa dos Emplumados, um já fora Rei, outro sonhava com a Coroa, reuniram-se em fina cantina, expoente máximo da culinária peninsular do Vêneto. Ao redor do melhor Gregoletto, discutiram a deposição do Rei. Seu candidato parecia nobre e forte, mas carecia do gosto popular. Excessivamente letrado e carente da rudeza dos campesinos, não teria respaldo popular. Enquanto a noite transcorria, em meio aos pratos da península itálica, tomaram ousada decisão, além de outro Gregoletto.
No curto prazo nada havia a ser feito para derrubar o Rei. Já haviam cortado a própria carne ao tornarem públicos fatos escandalosos que teriam acontecido na Casa dos Nobres, envolvendo a Casa dos amigos do Rei, as Casas Menores e as Casas Maiores. Apesar de terem derrubado os Grandes Príncipes da Casa Real, o Rei seguiu com a popularidade em alta. Tiveram de cortar mais fundo a própria carne, e a de outras Casas, para pensar no cetro e no trono dali a quatro anos. Novos escândalos atingindo as Casas Menores e as Casas Maiores vieram a público.
O Rei de tudo escapou, espalhando grãos e galinhas por onde passava. Seus inimigos lograram algum sucesso no enfraquecimento da Casa dos Nobres, desacreditados perante parte dos plebeus e da burguesia corrompida e corruptora, vítima e algoz.
Para resguardar o Nobre Candidato da Casa dos Emplumados do desgaste desnecessário de afrontar o Rei no seu auge, levaram-no a concorrer à liderança da maior Província Oriental. O Emplumado afastou-se da luta pelo poder real. Feito carta na manga.
Para desafiar o Rei, mandaram um Nobre Emplumado que não gozava nem de popularidade nem de impopularidade, na verdade não gozava de nada. Falava uma língua culta que os plebeus detestavam. Insistia em encontrar causas para os efeitos, na contramão do moderno processo político pós-maquiavélico. Também não distribuía grãos nem galinhas, nem passava. Sofreu o ataque das Hordas do Rei, servindo de escudo para o resguardado futuro Nobre Candidato. Ou para o jovem cavaleiro que sonhava.
Chegada a hora da escolha do novo Rei, este foi mantido. Algo aconteceu com a Casa dos Nobres, no entanto. Os já não tão nobres seguiram sua luta feroz pela manutenção do poder na Casa. O Rei perdera a sustentação das Casas Menores, envolvidas nos escândalos de então e nos sucedâneos. Daquela cartola muito coelho ainda saiu.
O Nobre Clã das Províncias Setentrionais do Coco, produtor monopolista do mel de marimbondo e tradicional sustentáculo real, passou a se desgastar nas lutas com seus pares das Províncias Meridionais, capitaneados pelo Mouro, que sonhava em dar o cetro e a coroa ao seu príncipe.
Em meio ao vazio de poder, dos calabouços se levantou terrível grito de revolta que todos assombrou, ecoando pelas ruas e alamedas das maiores Províncias, justificando o nome do Reino.
Em algum momento, algum plebeu privado de grãos e galinhas gritou:
- O Rei está nu!
Estou ficando velho para esse tipo de coisa. Eu sei que não devo comer pizza à noite, sempre acaba nesses terríveis pesadelos.

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21.8.06

Eremitas Urbanos

Eremitas Urbanos

Todo ermitão tem uma mascote. Pode ser um cão, um pássaro, até mesmo os seres menos usuais como ursos, cobras e aranhas. Não está fácil encontrar um ermitão. Além da própria dificuldade de encontrá-los, já que não querem contato com os da sua espécie, há o problema técnico-geográfico. Com a nossa densidade demográfica fica complicado esconder alguém aqui. Talvez por esta razão só encontramos ermitões nos filmes rodados no Canadá.

Dois segmentos de mercado investem pesado para tentar localizar esse filão ainda virgem do mercado. Os fabricantes de aparelhos de barba tentam localizá-los faz muito. As operadoras de telefonia móvel celular também estão firmes nessa corrida. Seriam clientes perfeitos. Após a aquisição, não teriam como ligar para ninguém, nem para a central de atendimento ao consumidor. Nem quereriam mesmo. Neste mundo das convergências, as empresas já se uniram e pensam em lançar o kit composto de aparelho telefônico e lâmina de barbear, ambos descartáveis. Tecnologia existe, persistem apenas os problemas da abordagem e da cobrança. Envolvem certo risco à saúde. Especialmente quando a mascote é o urso.

Olhando ao redor, para a nossa sociedade, até dá para entender o que leva um sujeito a se enfiar sozinho no meio do nada. Lá é necessário lutar apenas contra a natureza. Vida mansa contra a nossa.

Creio que quase todo mundo, em algum momento da vida, gostaria de poder ficar um pouco sozinho. Sei que há os que não querem e, mesmo assim, são bem sucedidos. Não me refiro a estes.

Não vale tentar ficar sozinho dentro de casa, quando não se mora sozinho. Ali é impossível alguém ficar sozinho. O lugar mais provável para alguns momentos de solidão seria o banheiro, pois lá podemos nos chavear sem questionamentos. Ninguém indaga o porquê de se trancar no banheiro. Há razões, em todos estados da matéria, para que a pergunta não seja feita. Certo, fisicamente pode-se ficar sozinho ali. Em espírito nunca. Inúmeras formas de interrupção da concentração podem se apresentar. Desde o "tem gente?", até o "paieeeê, a mulher do Banco da Mauritânia quer falar com você!", passando pelo "terminou o papel no outro banheiro".

Já vi telefone instalado dentro do banheiro de um hotel, ao lado do adivinhe-o-quê? O que esperam avisar ao hóspede enquanto ele está sentado ali?

– Alô? É do 1014? Gostaríamos de informar que há um incêndio no hotel. Por favor, largue tudo e corra para a saída mais próxima! Alguém espera que se utilize um telefone que já foi utilizado por outras pessoas, ali?

No meu tempo de infância chamavam o vaso sanitário de patente. A imaginação corria solta quando via algum produto cuja embalagem trazia a inscrição "Patente Requerida". Não dizia com que urgência, ou melhor, premência.

Há quem tente escalar montanhas, sozinho, para curtir alguns momentos de solidão. Ao atingir o cume, corre o risco de descobrir que a Top Mountain Jazigos faz uma promoção in loco. Voar sozinho pode isolá-lo um pouco do resto do mundo, conquanto que você seja um piloto. Mergulhar sozinho é proibido. A não ser que você pretenda fazer parte da imensidão azul, literalmente. Além do risco inerente ao mergulho em si, há o risco de se descobrir que a Escort Divers está investindo no segmento de acompanhantes submarinas por demanda.

Há apenas duas formas de você conseguir alguns momentos da mais pura solidão: emigre para o território Nunavut, Norte do Canadá, e adote um urso.

Ou esqueça-se do celular em casa.

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18.8.06

O Sagu do Chefe Honorário

O Sagu do Chefe Honorário

Por Paulo Heuser

Fiz parte do Grupo de Escoteiros Santa Cruz – RS-19, quando criança. Acredito que não mais exista, pois não localizei nenhum traço deixado pelo mesmo. Este grupo escoteiro tinha uma peculiaridade que o distinguia da maioria, senão de todos os demais: era independente. Os grupos escoteiros normalmente estão vinculados aos clubes, colégios ou organizações religiosas.
O Santa Cruz não tinha sede fixa, não por muito tempo, pelo menos. Ia onde era aceito, em deposito emprestado, prédio abandonado da sede campestre de um colégio, parque de eventos municipal e na casa em construção do chefe. Este era um sujeito realmente abnegado que conduzia aquele grupo com recursos próprios e com doações de equipamento por parte do Exército Brasileiro. Ele mereceu uma medalha, com certeza.
Começo a ter noção do que perdemos olhando para os escoteiros atuais. A independência daquela tropa permitia uma certa liberdade na escolha das ações. Reconheço que devemos ter relegado aquela história de ajudar a velhinha a atravessar a rua para um outro plano. Nossa prioridade era acampar. Não se confunda acampamento com o acantonamento hoje praticado.
Acampamento era feito no campo ou no mato, a alguns quilômetros da cidade, em terras de agricultores ou fazendeiros. Ia-se a pé, carregando as tralhas. Pela precariedade dos nossos equipamentos, fomos os precursores dos acampamentos do MST. Só que eles vão de ônibus. Alguém ia na frente para pedir licença para acampar. Não contávamos com a lona preta, mas de resto se parecia. Não havia chão nas barracas tipo canadense. A única garantia de um chão seco era a valeta bem feita. A presença de mosquitos não era uma probabilidade. era uma terrível certeza. A única defesa contra eles era a bosta seca e as folhas verdes queimadas na fogueira. O cheiro de fumaça penetrava em tudo.
O cardápio, muito variado, incluía carreteiro de lingüiça defumada, de segunda a segunda. Nos acampamentos de férias este variado cardápio se mantinha por duas semanas, ou mais. O cozinheiro da minha patrulha era o Abdul, descendente de libaneses, com uma certa queda pelo alho e pela rapa da panela. Isto dava um gosto peculiar ao nosso almoço. Mas mantinha cobras, vampiros e lobisomens bem afastados.
O café, feito na panela, tinha a borra retirada através de um tição de brasa. Os novatos eram bem instruídos para colocar latas de salsichas no fogo, sem abri-las, e canecas de plástico sobre as pedras quentes. Acender fogueiras de taquara também era um bom treino para os novos. No segundo acampamento já se tornavam veteranos. Os que sobreviviam.
Terminada a água do cantil, tínhamos de achar um olho d’água ou córrego para o abastecimento. Para tratar a água não dispúnhamos desses kits que hoje existem nas lojas para campistas. Contávamos com um kit de teste de água inventado por nós mesmos: um novato. Bastava dar água ao novato e esperar algumas horas. Novato vermelho do sol, sem vômitos ou diarréia indicava água própria ao consumo humano. Novato azul ou verde, com diarréia e vômitos, indicava água imprópria, com necessidade de fervura adicional. Trata-se de um sistema de cores infalível.
Você já deve estar se perguntando onde entra o sagu nesta história, não é? Pois bem, numa eleição nos idos de 60 e alguma coisa, um candidato a vereador queria engordar o currículo. Como não havia mais vaga para conselheiro de rinhadeiro nem para regente substituto de orquestra de enterro, resolveu apelar para o escotismo. Conseguiu, não sei como, proclamar-se chefe honorário de um grupo escoteiro que já tinha um chefe não honorário. Até aí tudo bem, o problema começou quando ele resolveu participar. Com a primeira dama honorária e o resto da família.
Como praticávamos um campismo um pouco rústico, para os padrões do novo chefe, resolveram nos acantonar no parque de um colégio. Um lugar onde havia água encanada! Coisa de maricas. Descambou de vez quando nos obrigaram a montar uma mesa, sobre a qual foram colocados uma toalha xadrez e um vaso com flores de plástico. Uma toalha! Parecia um convescote de normalistas.
No auge dos desmandos a primeira dama honorária resolveu que comeríamos sagu. Já imaginaram, acostumados a comer o arroz do Abdul, teríamos de comer sagu! A revolta foi contida pelo discurso áspero do novo ditador-cônjuge. O que ocorreu a partir daí não foi bem explicado até hoje. Ninguém soube por que o Abdul foi buscar água no riacho, levando um copinho, ao invés de buscá-la de balde na torneira próxima, enquanto deveria estar mexendo o sagu. O pé esquerdo de um chinelo de borracha derretido apareceu misteriosamente na panela. O descobriram quando finalmente conseguiram tirar aquela massa colante lá de dentro. Também não descobriram de onde veio o formigueiro que tomou conta da mesa com toalha xadrez e flores de plástico. Devem ter sido atraídas pelas flores. Enigma mesmo foi a razão da ruptura das cordas da barraca onde dormia a primeira família honorária, em plena madrugada. O ronda nada viu, nada ouviu e nada falou.
Tentava desesperadamente achar o pé esquerdo do chinelo.

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17.8.06

Entre Maragatos e Chimangos

Entre Maragatos e Chimangos
Publicada na Gazeta do Sul em 21/08/2006:
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=59748&intIdEdicao=933

Por Paulo Heuser

Hoje pela manhã novamente notei a nossa extrema polarização, em qualquer assunto. Quem não estava vestido de vermelho, rindo solto, era considerado gremista, automaticamente. Não passa pela cabeça da maioria que alguém possa não gostar tanto assim de futebol. Não nos é dada esta opção. Temos de ser colorados ou gremistas. Alguns da Serra são verdes, mas isso não lhes retira a obrigação de optarem pelo verde-vermelho ou pelo verde-azul.
Entro no táxi. O motorista deita um olhar desconfiado pelo retrovisor e indaga sobre minhas preferências futebolísticas. Teria 50% de chance de acertar a resposta se a pergunta fosse outra. Seja o que for que eu responder à pergunta, a resposta será o contrário daquilo que o motorista quer ouvir.
Esta sina nos persegue País afora. Certa ocasião, eu estava hospedado em um hotel, no Rio de Janeiro, em meio a uma legião de turistas da terceira idade. Alguns estavam mais para a quarta. À noite, jantando sozinho no restaurante, constatei aterrorizado que um trio de músicos paraguaios tocava de mesa em mesa. Imaginei a nacionalidade em função da harpa paraguaia que um deles tocava.
Tentei fingir que examinava o interior do saleiro para escapar da performance personalizada. Falhou, estava defronte a três sorridentes paraguaios. Veio a questão inicial: de onde eu era? Seguiu-se a fatídica: colorado ou gremista? Quase lhes respondi que eu era um fanático torcedor do Lagoano Trescantense, o último hooligan do Planalto. Desisti, o mico apenas se estenderia. Chutei Grêmio, acreditando ter o hino mais curto. Lá veio o hino do Grêmio na harpa paraguaia. De inhapa, Carnavalito. Pago o mico, sem gorjeta, pois quem está comendo não pega em dinheiro (bem pensado, não), observei que intercalavam hinos de clubes com ora Carnavalito, ora Índia.
A polarização se faz sentir também na política. Se alguém não se declara fanático por um partido, certamente será considerado fanático por outro, sem nenhuma liberdade de escolha. A própria aparência física estigmatiza. Bigodes e barba remetem aos revolucionários de algum país latino-americano. Afinal, Guevara e Fidel Castro aderiram à barba. Dom Pedro II também. Plínio Salgado aderiu ao bigode. Barba aparada e uma leve calva denunciam os alkminianos. Está na cara. Aqui só há direita ou esquerda.
Entre maragatos e chimangos também não havia terceira opção. Eram uns ou outros. Soube do caso de um funcionário de uma empresa gaúcha, na filial de Salvador, que resolveu promover uma festa à gaúcha utilizando uma pilcha completa em cor alternativa. Talvez na tentativa de unir maragatos – lenço vermelho – com chimangos – lenço branco -, resolveu ir de lenço cor-de-rosa. Cor que não ficou restrita ao lenço, espraiada por toda a pilcha. Bem, nem toda, usou esporas douradas. Causou furor, principalmente quando os colegas da matriz viram as fotos naquele 20 de setembro do qual nunca se esquecerão.
A Sociologia explica as múltiplas faces que devemos assumir para viver em sociedade. Aqui bastam apenas duas. Estou pensando em raspar meia barba e meio bigode.

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Pay Per View Socializado

Pay Per View Socializado

Por Paulo Heuser

PPV não é a sigla de um partido. Poderia ser a do Partido dos Pobres Votantes, mas não é. Trata-se de Pay Per View – pague por exibição. PPV é coisa das elites, que podem pagar pelas TVs por assinatura? Ledo engano, o PPV já existe há muito nos canais abertos. É sazonal, é verdade. O serviço está disponível de dois em dois anos, nos meses de agosto a novembro, nos canais abertos.
É o PPVS – Pay Per View Socializado – pago por todos os eleitores e não eleitores, já que o ressarcimento aos meios de comunicação se faz através da renúncia fiscal de R$ 191 milhões por campanha. Considerada uma massa de eleitores de 122 milhões, chegamos ao valor de R$ 1,87 por eleitor ou pouco mais de R$ 1,00 por habitante. Muito aquém dos R$ 7,00 cobrados pelos canais de TV por assinatura, onde você pode assistir ao filme apenas uma vez.
Com o PPVS você compra todo o pacote da temporada por apenas R$ 1,87. É um pouco monótono, é verdade, mudam apenas os personagens, o enredo, inexistente, é sempre o mesmo. Mas, já que o pacote está pago mesmo, vamos a vê-lo.
Os horários de inserção dos PPVS televisados são estratégicos. Sempre próximos a algum ópio do povo. Geralmente estão colocados entre o jornal e a novela onde todas as casas são bonitas, mesmo na favela, onde ninguém apresenta rugas e todos têm os dentes perfeitamente brancos. Os favelados das novelas devem ter sido importados da Noruega ou da Finlândia. Excluídos os do México, é claro. A decoração dos barracos veio dos ateliês de Milão.
A função principal do ópio popular é o entorpecimento e a suspensão do raciocínio durante o tempo necessário para a consolidação da lavagem cerebral feita pelo merchandising noveleiro. Como efeito colateral, nas épocas de PPVS, auxilia na internalização da ladainha partidária. O uso de outras drogas que afetam o sistema nervoso central oneraria muito o processo. Além disso, seria necessário inserir mensagens dos patrocinadores comerciais nos programas de PPVS. Após a repetição da ladainha da defesa da ética, segurança, emprego, saúde, educação, entra o ópio televisivo. Findo este, todos processos cognitivos alternativos estão concluídos. Não consegui perceber ainda como escolhem um candidato, pois todos falam a mesma coisa. Deve ser algo relacionado à aparência ou ao timbre de voz.
Ontem tivemos ópio duplo. Havia jogo importante, após a novela. Comecei a perceber por que chamam o futebol de esporte inglês. Bretão não, pois seria francês. Havia muita neblina no campo, imitando o fog londrino. O próprio público encarregou-se de acender tochas para ajudar na visualização da bola. Achei tudo muito solidário.
Pena que falte educação a alguns jogadores. Cospem e assoam o nariz na frente de mais de 50 mil pessoas. Poderiam dirigir-se aos toaletes. Deveria haver um curso de etiqueta patrocinado pelos clubes ou pela CBF. Um lenço, com o logotipo dos patrocinadores, também não viria mal.
Alguns jogadores são masoquistas, com certeza. Raspam o cabelo e depois insistem em dar cabeçadas na bola ou em outro jogador careca. Aí fazem caretas horríveis de dor e rolam pelo gramado, atrapalhando os que querem levar o jogo adiante.
Surpreendente foi a atitude do juiz, frente à comovente demonstração de cristianismo de um dos jogadores. Num ato de laica soberba, expulsou de campo o pobre infeliz que agradecia a Jesus pelo gol recém feito. O fez brandindo um cartão vermelho, talvez alusão às suas próprias crenças.
Confesso que não consegui ainda assistir ao ópio das oito, postergado nesta época para o horário após os PPVS. Mas, pela repercussão na mídia e nas conversas de roda, poderiam exportar o modelo para o PPVS. Tornaria a coisa mais picante.
Já pensou, todo mundo contando sua primeira vez?

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15.8.06

Algo Sobre Nada

Algo Sobre Nada

Por Paulo Heuser

Desafiado a escrever uma página sobre nada, sentei pensando em como se poderia escrever algo, ou muito no caso, sobre nada. Uma primeira providência lógica seria aumentar o tamanho do tipo para 72. Não, não posso passar de 12. É uma condição inicial, definida como pétrea. Pior, tenho apenas cinco minutos para preencher esta página com algo que tenha alguma coerência no conteúdo. Nada escrever sobre nada ou sobre tudo é fácil. A recíproca não é sempre verdadeira. Creio que meu maior limitante atual seja o tempo. Nele vou me concentrar primeiro. Consegui aumentar para 10 minutos, já que provei ser impossível escrever em 5, mesmo que seja sobre nada. Nada, num conceito mais amplo, é algo muito grande, podendo tender ao infinito. Para podermos definir as dimensões de nada precisamos estabelecer um sistema de orientação espacial. Afinal, para ter uma noção do início e do fim, antes precisamos estabelecer onde estamos, no nada. Em um sistema cartesiano em três dimensões poderíamos definir nossa posição atual como sendo um conjunto de pontos (x,y,z), todos indeterminados, já que não temos referencial algum de posição. Assim, as coordenadas cartesianas das posições limítrofes do nosso sistema ficariam também indeterminadas, visto que somaríamos deslocamentos a indeterminações. Assim, a única certeza que temos no momento é a certeza de não saber onde estamos. Como não há referencial, esta situação é perene, a não ser que algo aconteça. Como poderá algo acontecer se nada há para ser agente ou paciente de alguma ação que provoque o aparecimento de algo no nosso espaço? Não pode ser tentada correlação com o início do Universo, quando tempo e espaço não existiam. Na nossa situação atual, nem a singularidade existe. Esta poderia criar o nada, mas não o fez, já que havia energia potencial. Não podemos nos interpretar como um poço infinito de energia potencial, a não ser que acreditemos que o nada possui energia, a Energia do Nada. Como aparentemente esta energia possui valor nulo, se existir, continuamos com um poço de energia potencial nulo, o que em nada altera nossa situação, tanto de posição como temporal. Também nada podemos afirmar sobre nada, visto que não conseguimos escolher nenhum sistema de medidas. Nada no SI - Sistema Internacional parece adequado para medir a quantidade ou as dimensões do nada. Outro problema grande a superar é a estatística referente aos experimentos com nada. Os resultados poderão ser invalidados, tornando-se, portanto, nulos, se não conseguirmos determinar a incerteza da medição, já que provavelmente vamos nos deparar com indeterminações durante os cálculos. O tamanho das amostras também representa problema importante. Qual será a quantidade de nada necessária para se fazer boas estimativas de tamanho do todo, nada no caso? Certamente deveremos deixar a estatística determinística de lado, pelas constantes indeterminações. A estatística estocástica também não parece válida. Como vamos determinar os tamanhos das populações de nada, considerado um nada maior? A própria noção de nada maior poderá se invalidar pela impossibilidade de comparar um nada com outro. Já vimos anteriormente que, sem um sistema de referências espaciais, é impossível determinar tanto a nossa posição como os limites do nada principal. O que dizer então dos nadas parciais? Nada podemos afirmar. Temos apenas a certeza da indeterminação posicional dos mesmos em relação a nós e a si mesmos. Nada também indica quanto tempo é possível raciocinar em círculos de raio infinito a fim de gerar mais texto sobre a ausência de algo para se escrever sobre. Após um tempo ainda indeterminado, a capacidade do cérebro humano de gerar lixo sobre nada começa a apresentar disfunção, dando uma falsa impressão de que se escreve sobre algo que não nos levará a lugar nenhum, considerando que também não saímos nem estamos em lugar nenhum. Os últimos minutos, medida inconsistente na nossa situação atual, tem sido especialmente penosos – referentes à dor, não às galinhas. Feito. Consegui. Só não sei como parar agora.
Em qual direção fica o toalete? Haverá um toalete aqui?

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N.A.: Não distribuirei este texto. Ninguém merece o suplício de lê-lo.

Palavras Incômodas

Palavras Incômodas

Por Paulo Heuser

Tenho consciência de que nossa língua está viva, palavras tornam-se obsoletas enquanto novas surgem. Trata-se de um sistema dinâmico. Certos neologismos me incomodam, no entanto. Incomoda também o uso impróprio de palavras pré-existentes.
Vamos tomar o exemplo da palavra massivo. Evidente anglicismo (massive) derivado de um galicismo (massif), este para o inglês. A existência da palavra maciço, que traduz exatamente o que se pretende comunicar, torna o uso de massivo desnecessário e inconveniente. Sempre que a leio me vem à mente um prato de macarrão. Criaremos novas palavras quando não houver outras utilizáveis.
Imagino bem a origem desse barbarismo. Quando as consultorias internacionais de gestão invadiram o Brasil, a partir da década de 70, toneladas de materiais foram traduzidas às pressas, inclusive por especialistas em gestão com pouco conhecimento da língua portuguesa. Os estrangeirismos também emprestavam um ar de coisa culta à matéria. Um Case não é muito mais charmoso do que um estudo de caso? Aquele custa muito mais.
A partir da década de 80, fomos bombardeados com a palavra paradigma, antes confinada aos meios filosóficos e sociológicos. Não se trata de um neologismo. Está mais para a generalização apressada no uso de um termo de significado bastante complexo. Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas (1962) definiu paradigma como uma constelação de conceitos, valores, percepções e práticas, adotados por uma comunidade. Em última instância, define a maneira como uma sociedade se organiza e se relaciona com o mundo ao seu redor. A amplitude do termo nem sempre é assimilada por quem o utiliza.
O sofisma que daí surgiu apregoa a necessidade de maximização da receita com minimização do custo. Esqueceu de outras variáveis como a manutenção dos clientes.
Thomas Kuhn foi um físico. Percebeu que os grandes progressos da ciência davam-se nas transformações geradas pela quebra de paradigma em função de teorias como as de Copérnico, Einstein, Darwin, Planck, Freud e outros.
A expressão “quebra de paradigma” traduz a ruptura de um sistema aceito e institucionalizado para a adoção de um novo sistema, o novo paradigma. Geralmente fica oculta ou disfarçada a incompatibilidade entre o paradigma anterior e o atual. Trata-se de um arrasa-quarteirão. Muitos dos programas de demissões voluntárias não objetivam apenas a redução de custos. Fazem parte da quebra de paradigma, removendo os maiores obstáculos (pessoas) à implementação de uma nova ordem.
Alguns aspectos da quebra de paradigmas merecem maior consideração. Paradigmas são sistemas não-lineares (caóticos). Trocando em miúdos, ao alterarmos o valor de uma ou mais variáveis que os compõe – muitas neste caso -, o resultado pode ser difícil de se prever, por vezes surpreendente, em função da imprecisão dos nossos meios para medi-los. Os acionistas de uma grande montadora norte-americana já devem ter percebido o que é um sistema caótico.
Vale lembrar também que a reconstrução do apartamento 1014 do bloco B do quarteirão que foi arrasado não pode ser levada a cabo sem a reconstrução de todos que vêm abaixo. Não há volta. Não há arrependimento.
Isto pode parecer um discurso retrógrado à luz das teorias administrativas dos últimos 40 anos. Talvez seja, quem sabe? Como se criam valores, da noite para o dia? Como se constrói uma marca? O que sustenta uma marca? Qual é o valor da sua marca?
É obvio que a quebra de paradigmas se faz necessária ao desenvolvimento das ciências, inclusive administrativas. Temerária é a utilização da palavra ou, muito pior, a prática do método sem a percepção do seu amplo significado. Certo, sempre poderemos pedir emprego numa montadora japonesa.
Hoje percebi que outra palavra que me incomoda é a ética. Ouvindo a propaganda eleitoral obrigatória no rádio do carro, percebo que ética é a palavra da moda. Foi repetida à exaustão. Ética tem relação direta com a moral, o tempo e o espaço. Qual será a ética deles? Quando alguém defendeu a quebra dos paradigmas da ética, estremeci.
Pensando melhor, se a ética deles, que parece ser tão diferente da minha, for um sistema caótico, deveríamos tentar. Ou cura, ou mata.
E, metaforicamente falando, sempre poderemos pedir emprego numa montadora japonesa.

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14.8.06

Zuckerorschnaps Cacaca

Zuckerorschnaps Cacaca

Por Paulo Heuser

Navegando pelo sítio de uma entidade de cultura italiana daqui do Estado, deparei-me com um portal brasileiro na Itália. Resolvi dar uma passada na parte referente aos restaurantes brasileiros lá instalados. Há nomes realmente curiosos, como o Poco Loco, em Milão. O Coccia Grill, churrascaria instalada em Novara, oferece rodízio completo, desde o antepasto até o abacaxi (?).
Nome bastante popular para churrascarias brasileiras é Jacaré. Bem, lá é carne exótica. Outros nomes de churrascarias incluem Berimbau, Babagula, Capoeira, O Cangaceiro e Changô. Definitivamente gaúchos! Os cardápios também surpreendem. A caipirinha tem uma versão sem álcool, chamada Ipanema. O abacaxi assado é o destaque em diversos cardápios. As mulatas são muito comuns nas churrascarias gaúchas. Assim como as escolas de samba.
Curioso, comecei a navegar por sítios de churrascarias em outros países e continentes. Na China, em Xangai, faz tremendo sucesso uma rede de churrascarias que serve rodízio de carne de cachorro. Numa delas, a Dagama, um cubano e um chinês, impecavelmente pilchados, cantam Guantanamera para os sino-cinófilos. Além dos lulus, porco agridoce, bolinhos chineses e macarrão chinês completam o cardápio.
Numa churrascaria teuto-pantaneira em Colônia, a Rodízio Pantanal, os pratos são particularmente curiosos. Além do rodízio, há opções de entradas típicas como cogumelos picantes, Gambas a Ajiolo (camarão ao alho e óleo em alguma língua variante do espanhol) e caranguejos. Entre os pratos principais um peixe chamado tamboril. Mulatas em trajes de sambódromo decoram a casa. Novamente aparece Ipanema, a caipirinha sem álcool.
Uma opção vegetariana deixa a coisa mais interessante ainda. Já imaginou um gaúcho dos quatro costados sendo convidado para matar a saudade da querência comendo um rodízio de plantas regado à pinga sem álcool?
Nada de desespero! Em Hamburgo há a Rodeio Gaúcho. Com o desenho de um gaudério assando um espeto no fogo de chão. E umas fotos de índias (?). Impressiona bem, o cardápio inicia com uma breve história do churrasco, bem contada. Fica bem claro que no rodízio o sujeito come até repugnar-se, em alemão, é claro.
Como tudo em alemão é simples, a descrição da caipirinha também o é: bebida nacional brasileira feita a partir de Zuckerorschnaps Cacaca (sic), Limonen, braunen Zucker und crashed ice. Se não bastasse a Zuckerorschnaps (pinga de cana-de-açúcar), tem a Cacaca (cacaca, em bom português), que imagino ser cachaça. Imagine só um japonês pedindo isso com uma daquelas reverências formais: - Zuckerorschnaps Cacaca Kudasai! São essas coisas que tornam divertida a vida de um brasileiro. Adivinhe só quem segue a caipirinha? Ipanema, claro.
Entre as sobremesas um tal de Rote Grütze mitt Vanille-Sauce, aqui conhecido como Sagu com creme de baunilha. Este pelo menos é conhecido.
Definitivamente, em Roma faça como os romanos, coma massa. Em Colônia faça como os alemães, coma salsichas com chucrute. Em Xangai faça como os americanos, coma um Big Mac. Coma churrasco no Brasil, mesmo que seja com Zuckerorschnaps Cacaca.
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Intervalos

Intervalos

Por Paulo Heuser

Afundo no sofá depois de me certificar de que estou com os três controles remotos, telefone fixo e o telefone celular à mão. Senão corro o risco de ter de me levantar. Por que três controles remotos? Não sei, mas todas as vezes que tentei com dois, não consegui. Creio que um é uma espécie de gerente dos outros. Deve haver algum acordo coletivo. Já tentei usar um controle universal. Não deu certo, seria necessário um multidimensional. Um que permitisse zapear entre realidades diferentes. Meia dúzia de apertos de botões aqui, três ali e quatro acolá e estou assistindo a alguma coisa.
Passa na tela a relação dos créditos de um filme que gostaria muito de ver. Mais uns 30 botões e descubro que será exibido novamente daqui a três dias, às 3h50. Volto a zapear.
Subo todos os filmes, desço todos os filmes e vou eliminando. Free Willy 2 não; a História da Sogra de Elza não; Minha Amiga Flika não; A História Realmente Sem Fim não; A Vingança do Tataraneto do Capitão Blood não; A Madre Rebelde não.
Resta zapear mais adiante, invadindo os canais salada de frutas. Em meio àqueles canais recheados com abobrinhas, e risos de claque, mais dois canais de filmes. No primeiro, propaganda, no segundo, propaganda. Descubro horrorizado que estou num horário onde só há intervalos. Estou num intervalo multidimensional. Ninguém deveria ligar a TV neste horário. Só há propagandas e créditos.
Olhando a revista eletrônica constato que há algo para ser visto no canal do Ted Turner. Lá chegando, após 22 minutos de chamadas e comerciais, passo a assistir a um clássico de época. Nosso herói vem cambaleando, doente, faminto, pelas vias estreitas de uma Paris da Insurreição Democrática, quando surge do nada um disco voador. Sim, um disco voador com seres antenados.
O volume salta algo como 20 dB. Saltamos todos de susto ao mesmo tempo, eu, minhas pipocas e o poodle. Os alienígenas anunciam nova rodada de comerciais e chamadas de programação. Recomposto do susto, resolvo ler um livro enquanto aguardo o reinício do filme. Guerra e Paz será suficiente? Na infância escolheria As Aventuras do Sr. Pickwick de Charles Dickens. Aquilo sim era uma história sem fim. Sempre dormia na nona página, segundo parágrafo.
Deixo os livros de lado e começo a zapear para me distrair. Devo ter dormido no primeiro Bloomberg, canal para hipnose coletiva. Ainda bem que não perdi nada do filme, pois cochilei por apenas 20 minutos. O pessoal do disco voador manda um raio que destrói um prédio e, repentinamente, nosso herói continua cambaleando, doente, faminto, .... Após cinco minutos de filme, novo intervalo. Não levo um susto tão grande, já estava algo preparado. Aproveito para assar um churrasquinho. Depois do almoço poderei assistir ao resto do filme.
A forma de assistir à televisão mudou muito depois que a ela aplicaram a relativística temporal social. Antes todos assistiam a tudo ao mesmo tempo. Com o advento da TV via satélite e da TV digital, iniciou-se uma justiça social aplicada ao tempo em que assistimos aos programas.
Quanto mais sofisticado o sistema de transmissão, maior será o atraso. Enquanto os pobres comemoram os gols dos jogos dos seus times, os ricos ainda assistem às cenas de até 15 s atrás, ficando na constrangedora situação de não saber ainda de quem foi o gol. Se a doméstica for um pouco rápida, ou o apartamento pequeno, ela pode adentrar o reduto dos patrões com aquele ar de triunfo de quem já sabe o que aconteceu. Estes não têm coragem para lhe perguntar.
A doméstica não tem bola de cristal. Na cozinha há uma TV marca Stroessner de cinco polegadas que sintoniza apenas os canais abertos. É notório o aumento da venda de radinhos de pilha (caixas de abelhas) pelos camelôs. Para gente fina, que chega de gola alta, enormes óculos de sol e chapéu.
Triste ironia para os bem-afortunados: TV de plasma, transmissão digital e o gosto de estar assistindo a um replay. Salvos pela caixa de abelha, rebatizada como pré-monitor de áudio analógico.

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9.8.06

A Parábola do Lampião

A Parábola do Lampião

Por Paulo Heuser

No final do ano passado assisti a um curso de Radiações, Usos e Cuidados. O que leva alguém a passar os sábados de novembro e dezembro fazendo um curso desses? Sei lá, são estranhos os desígnios daquele que criou as radiações.
Durante o módulo Instrumentação e a Metrologia das Radiações, o mestre demonstrava um instrumento conhecido como contador Geiger-Müller, que emite aqueles cliques que se ouve nos filmes, na presença de material radioativo. Passava o instrumento pela própria roupa quando este demonstrou grande atividade nas proximidades do bolso da calça. Um pânico comedido se estabeleceu – o mestre esquecera uma cápsula de urânio ou plutônio no bolso?
Ao retirar o que havia no bolso, a surpresa foi geral. Minha porque não entedia como uma camisa de lampião a gás poderia provocar aquela reação do instrumento. Dos demais, bem mais jovens, porque não conseguiam imaginar a utilidade daquilo. Bem, nem todos. Uma jovem expressando um misto de curiosidade e incredulidade, frente àquela camisa de pano com uma cordinha para amarrar no topo, indagou – professor, como se veste isso?
Refeito da apnéia causada pelas gargalhadas, o mestre explicou que fizera uma demonstração com o instrumento calibrado para uma sensibilidade extrema. A camisa de lampião é pintada com uma tinta que leva tório – elemento radioativo – na sua composição. A atividade é mínima, não oferecendo risco à saúde na manipulação eventual. Como se tratava de uma aula a respeito da metrologia das radiações, ficou patente a necessidade da calibração correta dos instrumentos para cada uso. A aluna acreditou estar frente a uma camisinha de pano, de amarrar!
Hoje vejo que somos uma espécie de instrumento metrológico. Ao contrário do Geiger-Müller, que apenas consegue medir algumas radiações, somos um instrumento bem mais complexo. Falhamos em medir instantaneamente e antecipadamente o que aquele mede. Os efeitos das radiações ficam por vezes registrados em nós. Não apenas os efeitos das radiações. Medimos outras coisas também.
Como instrumentos metrológicos de honestidade e ética, necessitamos também de ajustes da sensibilidade? Esta não estará exagerada para medir nosso ambiente? Ao acompanhar qualquer noticiário chegamos à conclusão de que realmente necessitamos de ajustes. Com isto que está posto, nada conseguimos medir. Os cliques saltam de qualquer coluna dos jornais e telejornais.
Realizados os ajustes de sensibilidade, para passar com poucos cliques pelas seções mais ativas dos jornais, nada conseguimos medir nas outras. Apenas um clique aqui, outro acolá. Exageramos na dose? O instrumento apresenta defeito? Pode haver outra explicação – a medida excepcional banalizou-se, tornando-se trivial. Nosso instrumento perdeu a sensibilidade. E a utilidade.
Não há anteparo que nos proteja contra isso.

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8.8.06

Ações Afirmativas

Publicado na Gazeta do Sul, coluna opinião, em 10/08/2006:
Ações Afirmativas

Por Paulo Heuser

Sistema de cotas. Aí está um assunto polêmico. É um assunto muito complexo socialmente, politicamente e juridicamente. Já li diversos trabalhos escritos por pesquisadores nessas áreas que apenas aumentaram a certeza quanto à complexidade.
A discriminação positiva - ou ação afirmativa - está longe de ser um consenso. Alguns setores alegam que o sistema de cotas ataca o efeito da discriminação, não sua causa. Os simpatizantes do sistema de cotas raciais alegam que a inclusão social, pelo acesso ao ensino superior, acabará por erradicar as causas da discriminação racial.
Outros entendem que a discriminação positiva deve contemplar primordialmente o aspecto socioeconômico. A própria interpretação jurídica é bastante diversa. Enquanto alguns se prendem à interpretação literal dos artigos constitucionais, outros procuram interpretar o texto constitucional de uma forma mais subjetiva, com ênfase nos verbos, ou nas ações daí provenientes.
Por tudo que li, este assunto não se esgotará tão cedo. Ao tentar formar uma opinião fundamentada em um processo mais consistente, acabei percebendo algumas coisas.
Curiosamente já praticamos ações afirmativas sem nos dar conta disto. Uma forma de discriminação citada em alguns textos é a especista (por espécie). Falando mais claramente, privilegiamos algumas espécies de seres vivos, notadamente àquelas em extinção. Veio à lembrança um episódio vivido pela minha família, em um algum julho passado, na praia de Bombinhas, SC.
Estávamos passeando pela Prainha, praticamente deserta, não fosse pela presença de um pingüim. Parado na areia, de costas para o mar, o dito cujo estava inerte, provavelmente exausto pela viagem que realizara. Pensamos imediatamente em ligar para o Ibama. Qual seria o telefone de emergência? Um sujeito sentado no alpendre de um bar, notando nossa agitação, recomendou que deixássemos a natureza seguir seu curso. O bicho morreria mesmo.
Indignados com tamanha falta de sensibilidade ecológica, nos dirigimos à operadora de mergulho mais próxima. Mergulhadores têm uma consciência ecológica muito desenvolvida, pelo menos nos cursos e discursos. O atendente ouviu nosso relato e, constrangido, indagou: - vocês são gaúchos, não são? Não apenas o sotaque nos denunciara. A preocupação com o pingüim também. O sujeito confessou que lá não havia serviço que pudesse ser acionado para salvar o animal. Seria coisa de gaúcho. Estávamos inconscientemente praticando uma ação afirmativa. Que provavelmente não praticaríamos se o animal fosse um cão sarnento ou uma vaca a estrebuchar.
Vejo que não apenas os gaúchos praticam a discriminação positiva especista. Os mineiros inovam na preservação de outras espécies, talvez pela falta de praias que permitam a chegada dos pingüins. Lá surge um sistema de cotas que privilegia outros filos zoológicos, como o dos Anelídeos da classe Hirudínea. Popularmente são conhecidos como sanguessugas.
Em Governador Valadares a preocupação foi tanta que no domingo passado chegaram a construir um viveiro especial separado do viveiro das outras espécies. Haveria risco de desabamento do viveiro único, pelo peso das sanguessugas. Estes anelídeos estão ligados à saúde humana desde a Idade Média, quando foram utilizados nas sangrias dos pacientes da nobreza.
Nos dias de hoje a relação permanece, alterou-se apenas a classe socioeconômica dos pacientes. Agora as sanguessugas sugam o sangue dos pobres.

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7.8.06

Fórmula Um. Pneu Zero.

Fórmula Um. Pneu Zero.

Por Paulo Heuser

Fazia um bom tempo que eu não assistia a uma prova de Fórmula 1. Gostava mesmo daquilo quando criança e adolescente. Não havia transmissão das corridas. Lia-se a respeito na única grande revista especializada. Um longo texto e algumas fotos descreviam cada etapa. Jim Clarck era meu ídolo, seguido de Graham Hill. Era uma época mais cheia de graxa.
Pois bem, derrubado por um tremendo resfriado, metido embaixo de um cobertor e sem nada para fazer no domingo, resolvi assistir ao Grande Prêmio da, onde foi mesmo, Hungria? Notei que as coisas mudaram muito na F 1. Já sabia que os pilotos haviam se transformado em macacos da Nasa, apenas apertando alguns botões. Não sabia, porém, que os carros também já não são decisivos para o resultado da corrida. O negócio agora é o pneu! Pelo que consegui inferir, havia duas corridas paralelas, a dos que tinham pneus que prestavam para a coisa e a dos que tinham os pneus bichados. Sabia-se com antecedência quem não venceria a corrida. O mais incrível é que os usuários dos pneus bichados faziam propaganda deles!
Outra coisa interessante era a narração da corrida, não daquela que estava sendo exibida na tela, deveria ser de alguma outra. Enquanto os carros disputavam uma, o narrador descrevia outra. Só não dizia qual. O narrador também nos informava sobre as fofocas dos bastidores. Jantara na noite anterior com um John-qualquer-coisa, cunhado do irmão da namorada do mecânico-chefe da equipe que fechou na temporada passada, que teria declarado que o dono da equipe para o qual o mecânico não aceitou indicar o irmão, não seria muito chegado em macarrão. Dá para imaginar como esta declaração bombástica afetou o desempenho dos pneus.
Pneus que furam, estouram, rasgam, se desgastam e soltam pedaços por todos os lados, piores do que os piores pneus recauchutados pela Borracharia do Tonhão Bacalhau. Duram 300 km, segundo declarou o narrador entre uma e outra fofoca. O Tonhão, que é o Tonhão, dá o dobro desta garantia! Tomara que não tragam toda essa tecnologia para os carros de passeio. Você já imaginou quantos pneus gastaria nas férias de verão? A cinco mil dólares cada um? E mais, se chover você será obrigado a trocá-los antes do tempo. Você também não imagina quanta gente é necessária para trocá-los – oito borracheiros por carro. Seriam borracharias públicas?
De resto, foi uma corrida bem animada. Havia carros passando sobre os outros, como se ali nada estivesse. Um alemão teimoso além de nada fazer tampouco desocupava a moita. Acabou estragando seu carro, para alegria dos que pretendiam levar a corrida a sério. Um espanhol corria tanto que sua equipe ordenou que reduzisse o ritmo (?). Equipe completamente incompetente, por sinal. O coitado entrou no box para trocar os pneus descartáveis com o carro em pleno funcionamento. Saiu de lá todo torto. Lembrou as revisões obrigatórias dos carros de rua.
Se fizessem algumas modificações eu até voltaria a assistir às corridas. Uma essencial seria a adoção de pneus de carros de passeio. Poderiam fazer toda corrida sem trocá-los. E teriam garantia de pelo menos 60 mil quilômetros.

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6.8.06

Ex-fumantes

Ex-fumantes

Lê-se muito a respeito da proibição do fumo nos locais públicos e dos malefícios trazidos pelo hábito – ou vício – de fumar. Nada vejo a respeito do que acontece após a interrupção do hábito. É isto mesmo, você pára de fumar depois de anos ouvindo conselhos, sermões e xingamentos e nada. Nada, ninguém nota, ninguém vê. Afinal, era sua obrigação mesmo. Parei de contar os dias, meses e anos que se passaram após meu último cigarro. Parei de contar decorridos dez anos. Portanto, posso me considerar um ex-fumante.
Utilizei uma técnica singela para deixar de fumar. Deixei de fumar. Pensei em escrever um best-seller (senão não valeria a pena, não?) sobre a técnica. Seria um livro enxuto, como a técnica. Iniciaria com um prefácio de xiii páginas, seguido de oito páginas com agradecimentos e dedicatórias, índice, a página contendo a técnica propriamente dita e, finalmente, um interessante apêndice com os rótulos dos cigarros que fumei. Coisa para ler em uma só viagem, de elevador. Os benefícios diretos à saúde decorrentes do fim do tabagismo são todos aqueles que aparecem diariamente na mídia, espero eu. Há outros, menos ou nada mencionados.
O primeiro é a liberdade. Quem fuma sabe que certos na vida só os impostos (aqui sonegados), a morte e a falta de cigarros nas festas. Quem fuma menos de um maço de cigarros por dia pode até levar dois ou três maços de reserva às festas. De nada adianta - depois de algumas horas os cigarros somem. Se você não fumá-los todos, outros farão. No auge da festa serão vistas elegantes damas pegando disfarçadamente as maiores baganas e sumindo no toalete. O vício é cruel.
O ex-fumante de um dia já se insere imediatamente na casta dos aceitos em todos os locais, para fumantes e não-fumantes. A não ser que não tenha trocado de roupa ou deixou de tomar banho após a festa. Os ex-fumantes toleram bem os fumantes porque conseguem entendê-los. Os que nunca fumaram são os mais intolerantes, com razão. Na ótica do ex-fumante, o fumante é uma pessoa que sofre da mesma doença que já lhe acometera, da qual ficou curado, com mais ou menos seqüelas. O virgem de pulmão encara o fumante como uma chaga social, a erradicar-se o mais breve possível, devendo ser segregada como os doentes contagiosos.
O que me levou a pensar nisso tudo foi o ocorrido no Bar Tuim, em Porto Alegre, autoproclamado bar apenas para fumantes. Estive lá apenas uma vez. Faz tanto tempo que provavelmente eu ainda fumava naquela época. O cigarro estava intestinado em locais como aquele. Lembrei-me também do Bar Brahma, na esquina da Ipiranga com a São João, em São Paulo, anexo ao restaurante de mesmo nome. Reduto da boemia, desde os anos 50, era outro local cheio de fumaça. No mezanino, ao lado do piano, não se enxergava a mesa ao lado, de tanta fumaça. O que poderia ser uma vantagem, a partir de certo horário. Três músicos realmente idosos tocando piano, violino e violoncelo no restaurante emprestavam um ar aristocrático àquele local, mesmo na decadência do Centro de São Paulo.
Nessa época o inferno tabagista era o avião. Podia-se fumar durante quase todo o vôo. Nem os fumantes agüentavam aquilo. O recolher do trem de pouso e o apagar dos avisos de não fumar ocorriam quase ao mesmo tempo. Havia pessoas que comiam e fumavam ao mesmo tempo. Mastigavam soltando fumaça. Como ainda ocorre nos locais públicos do Primeiro Mundo. É o charme francês do fedorão de um Gitanes.
A única desvantagem que encontrei ao me tornar um ex-fumante é a falta de fósforos. Os fumantes salvam aqueles churrascos no meio do mato. E acendem as velas durante apagões.
Entre as ciganas não deve haver ex-fumantes. Quando cruzo com elas continuo ouvindo o eterno pedido: “me dá um cigarro, bonito?”. Será que elas não percebem que o bonito parou?
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