9.8.06

A Parábola do Lampião

A Parábola do Lampião

Por Paulo Heuser

No final do ano passado assisti a um curso de Radiações, Usos e Cuidados. O que leva alguém a passar os sábados de novembro e dezembro fazendo um curso desses? Sei lá, são estranhos os desígnios daquele que criou as radiações.
Durante o módulo Instrumentação e a Metrologia das Radiações, o mestre demonstrava um instrumento conhecido como contador Geiger-Müller, que emite aqueles cliques que se ouve nos filmes, na presença de material radioativo. Passava o instrumento pela própria roupa quando este demonstrou grande atividade nas proximidades do bolso da calça. Um pânico comedido se estabeleceu – o mestre esquecera uma cápsula de urânio ou plutônio no bolso?
Ao retirar o que havia no bolso, a surpresa foi geral. Minha porque não entedia como uma camisa de lampião a gás poderia provocar aquela reação do instrumento. Dos demais, bem mais jovens, porque não conseguiam imaginar a utilidade daquilo. Bem, nem todos. Uma jovem expressando um misto de curiosidade e incredulidade, frente àquela camisa de pano com uma cordinha para amarrar no topo, indagou – professor, como se veste isso?
Refeito da apnéia causada pelas gargalhadas, o mestre explicou que fizera uma demonstração com o instrumento calibrado para uma sensibilidade extrema. A camisa de lampião é pintada com uma tinta que leva tório – elemento radioativo – na sua composição. A atividade é mínima, não oferecendo risco à saúde na manipulação eventual. Como se tratava de uma aula a respeito da metrologia das radiações, ficou patente a necessidade da calibração correta dos instrumentos para cada uso. A aluna acreditou estar frente a uma camisinha de pano, de amarrar!
Hoje vejo que somos uma espécie de instrumento metrológico. Ao contrário do Geiger-Müller, que apenas consegue medir algumas radiações, somos um instrumento bem mais complexo. Falhamos em medir instantaneamente e antecipadamente o que aquele mede. Os efeitos das radiações ficam por vezes registrados em nós. Não apenas os efeitos das radiações. Medimos outras coisas também.
Como instrumentos metrológicos de honestidade e ética, necessitamos também de ajustes da sensibilidade? Esta não estará exagerada para medir nosso ambiente? Ao acompanhar qualquer noticiário chegamos à conclusão de que realmente necessitamos de ajustes. Com isto que está posto, nada conseguimos medir. Os cliques saltam de qualquer coluna dos jornais e telejornais.
Realizados os ajustes de sensibilidade, para passar com poucos cliques pelas seções mais ativas dos jornais, nada conseguimos medir nas outras. Apenas um clique aqui, outro acolá. Exageramos na dose? O instrumento apresenta defeito? Pode haver outra explicação – a medida excepcional banalizou-se, tornando-se trivial. Nosso instrumento perdeu a sensibilidade. E a utilidade.
Não há anteparo que nos proteja contra isso.

E-mail: prheuser@gmail.com