2.8.06

Berro Mudo

Berro Mudo

Por Paulo Heuser

Meu amigo Raimundo engajou-se nas campanhas políticas de três partidos. O que poderia ser entendido como incoerência ideológica na verdade explicava-se como oportunidade mercadológica. Foram dois os aspectos fundamentais considerados. Primeiro: não havia ideologia partidária. Segundo: candidatos, partidos e governos consumiam bens e serviços, sendo portanto alvos da política mercadológica. E o Raimundo era um homem de mercado.
Como Raimundo foi o nono de oito filhos, cedo descobriu que tinha de chorar muito para mamar. E tinha de chorar o choro certo para a teta certa. Sociologicamente falando, assumiu as múltiplas facetas necessárias à manutenção da sua clientela.
Dividiu sua agenda em três partes desiguais. Reservou fatias proporcionais à cotação dos partidos na Bolsa de Apostas de Eirunepé, AM. Não é uma rádio AM, é o Amazonas mesmo. Não a conhece? Bem, trata-se de uma mirror-wallet (bolsa-espelho) da Bolsa de Apostas de Londres. Assim, a fatia de 54% da agenda foi reservada para os Progressistas, 34% para os Construtores e 12% para os Vingadores.
A maioria progressista abrigava um amplo espectro ideológico, desde os “Viva La Revolución” até os intelectuais que lêem os livros carregados pelos operários que não lêem livros. Autênticos arroz-de-festa ideológicos, espalharam-se em todos os segmentos da sociedade.
Os Construtores faziam discursos realmente empolgantes, como bem mostra este trecho que transcrevo: “O País é um prédio que precisa ser construído com solidez e confiança. Para tanto, devemos tomar dois blocos cúbicos e colocá-los um sobre o outro, com cuidado e firmeza. Blocos cúbicos têm lados iguais, portanto devemos colocar primeiro o inferior, depois o superior. Assim, resolveremos o problema da saúde...”. Dava vontade de aplaudir freneticamente. Colocava fogo na campanha. Incêndio em Banho-Maria!
Os Vingadores tinham a honestidade como lema. Como tema, a vingança contra os Progressistas. Deles foram expulsos por apresentarem coerência entre a prática e o discurso, algo imperdoável na política.
Raimundo treinou bem as falas e o comportamento. Dividiu seu guarda-roupa em três partes desiguais. Os 54% do meio ficaram tomados pelos ternos pretos bem cortados. Os 34% da direita foram ocupados com ternos mais leves, em cinza e azul. Os 12% da esquerda receberam as calças jeans, moletons e camisetas. Havia algo errado com aquele guarda-roupa. Por mais que arrumasse as roupas na ordem correta, ao abri-lo pela manhã encontrava as roupas do centro e da direita misturadas, todas amassadas contra as roupas do lado esquerdo.
Raimundo não saia mais das festas, praticamente diárias. Os ingressos para as festas dos Progressistas eram muito caros. Em compensação, ouviam-se discursos para qualquer gosto e desgosto. Coisa realmente eclética. A dupla neocaipira Penosa e Franga Louca fez uma releitura da Ave Maria. Ficou interessante. “Ave Maria, gratia plena”, da versão original, passou a ser cantada como “Ave Caipira, graxa plena”. Enquanto serviam a galinhada. Tocou mais no coração e no estômago do povo.
As festas dos Construtores eram um porre. Não no sentido etílico. Nos discursos, falavam horas a fio sobre o empilhamento dos dois cubos. O preço da bebida era proibitivo. Cobravam 10 reais por uma mistura de vinho barato com capilé. Davam a isso um nome chique.
Raimundo gostava mesmo das festas dos Vingadores. Ali a bebida e a comida eram autênticas, populares e a preço mais justo. Os discursos eram realmente inflamados. Nada de álcool gel 42. Ali a coisa pegava fogo com o 96 GL.
Quando visitava os parentes alinhados com alguma corrente política, Raimundo também agia de acordo. Na reunião de planejamento do almoço na casa dos progressistas, recolhia as demandas, efetuava as deliberações e dava os encaminhamentos. Traduzindo, cada um garantia o seu. Tudo muito pontual.
No almoço dos parentes construtores chamava uma tele-entrega-show e repartia a conta. Chuchu à beça. O Homem-Chuchu preparava chuchu à Grand Marnier, ao vivo, on demand (na hora em que o estômago roncava). O chuchu era flambado com água enquanto o Homem-Chuchu bebia o licor.
O almoço dos parentes vingadores era mais à vontade. O pessoal ia chegando e trazendo o que tinha na geladeira. Aí faziam uma combinação de tudo e repartiam nas mesas. O famoso déjà vu – já te vi - ou releitura da geladeira.
Chegado o dia da eleição, Raimundo estava em pandarecos. Foi muita festa! Entrou na seção eleitoral, dirigiu-se à urna, abriu um amplo sorriso e votou nulo. É isto, nulo.
Ninguém ouviu quando ele deu aquele imenso e sonoro berro mudo.

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