Vale das Sanguessugas
Das Crônicas Raimundianas
Vale das Sanguessugas
Por Paulo Heuser
Raimundo o Empreendedor lia os jornais. Um dos candidatos a Presidente da República – dos que não estão no páreo – defendia, entre outras coisas, o imposto único e a privatização do sistema prisional. Do imposto único é melhor nem falar. Ou, indagar a opinião do Dr. Jatene sobre a contribuição provisória por ele criada. Sabe-se que o imposto único se transformaria em único a ser somado aos já existentes. Naquele momento. Depois poderiam se somar outros impostos únicos ao resultante. Neste caso, as emendas sempre são piores que o soneto.
Raimundo confessou a si mesmo que a idéia da privatização do sistema prisional até era bem atraente. Olhando assim por cima, os piores pesadelos do nosso sistema prisional eram a superlotação e o que daí advinha, como a ociosidade e a escola do crime. O sujeito que entrava lá por ter roubado uma galinha manca acabava saindo diplomado na guerrilha urbana. Havia de se oferecer instalações que mantivessem um mínimo de dignidade, pensou ele. Alimentação correta, higiene e assistência médica não são luxos. Oportunidade de trabalho também não. Reinclusão na sociedade é outro aspecto básico da não reincidência. É lógico que o cidadão dito “de bem”, que acaba não tendo acesso a esses direitos básicos, tentará negá-los a quem cometeu um crime. Especialmente quando tem seu direito à segurança suprimido. Vontade de vendeta.
Leu no mesmo jornal notícia a respeito de quanto o estado gasta com um presidiário – 1.500 reais por mês. Premiamos os comportados com um salário mínimo e pagamos mais de quatro destes pelo presidiário. No mesmo artigo constatou que havia uma multidão de 336 mil presos no País. Usando a calculadora chegou à assustadora cifra de 504 milhões de reais por mês ou seis bilhões de reais por ano de custo com o sistema prisional. É grana para ninguém botar defeito! Para dar uma noção de valor, um aluno de terceiro grau custa aproximadamente R$ 800,00 por mês ao erário.
Raimundo andava à cata de alguma oportunidade para investir em algo pesado. Aí estava. Convocou o Velho - sogro, Japa – diretor financeiro, Zé Tongo – RP e a irmã dele – recreacionista de jardim de infância e facilitadora em eventos de planejamento estratégico e governança para altos executivos.
Expôs sua idéia: entrar no ramo da privatização de presídios. A holding do Grupo Cotra já estava presente nos sindicatos, na igreja, no entretenimento, na política e em outros ramos correlatos. Ainda não estava presente no lado certo do crime. O Velho ouviu atentamente, entre goles do Macallan 25 que Raimundo lhe trouxera da Flórida. O 25 era menos da metade da 51 que tomava antes do boom das empresas de Raimundo, mas eram 25 anos. Quando ainda muito jovem, o Velho visitara Key West, na Flórida, e tomara o primeiro porre da sua vida, na casa de um sujeito muito deprimido chamado Ernesto Heming-qualquer-coisa - a ressaca o levara a esquecer o nome completo. Soube tempos depois que o sujeito se suicidara.
Colocada a idéia, Zé Tongo mostrou-se preocupado com a quantidade de escândalos pipocando todos os dias. Temia que o número de clientes com direito à prisão especial, até a condenação definitiva, crescesse muito. Como a condenação é protelada quase que ad eternum, isto poderia aumentar muito o custo com os viveiros para sanguessugas e outros clientes diplomados em potencial. Lembrou também que esse tipo de cliente é muito exigente, aumentando ainda mais o custo. O Velho lembrou que os clientes VIP não ficam presos muito tempo mesmo. Sempre conseguem uma medida cautelar ou são beneficiados com uma segunda chance. Quantas primeiras existiriam? Devido à alta rotatividade o número de acomodações VIP não cresceria significativamente. Nas próximas reuniões que fizeram, entenderam necessário o afastamento dos presídios para clientes comuns dos centros urbanos. Terras mais baratas eram mais interessantes.
Os aspectos institucionais da idéia foram resolvidos pelo Zé Tongo, misteriosamente, como de costume. O fato é que conseguiram vencer as concorrências para administrar o problema prisional. O velho defendia a colocação dos presídios para presos comuns, e os de alta periculosidade não diplomados, em terras que nem o MST queria. Conseguiram arrendar imensas áreas em terreno quase desértico.
Inicialmente levaram 750 presos para lá, acomodados em barracas, que providenciaram a construção das cercas e dos alojamentos para os 16 mil que se seguiram. Para guarnecer o local, contrataram a Gurka Security Guards, empresa indiana altamente qualificada. O velho insistiu para que a irmã do Zé Tongo seguisse na primeira leva. Não poderiam deixar aquela massa humana desocupada após a construção da hotelaria. Habituada a lidar com todo tipo de cliente, desde crianças de quatro anos até altos executivos de mais de 40, ela soube organizar atividades de recreação e de trabalho. Optou por desenvolver a pecuária de ovinos, em função do solo pobre – nada além de gramíneas – e da economia com carne que poderia ser feita. Começaram pagando meio salário mínimo àqueles que se dispusessem a trabalhar. Outros acabaram descobrindo que havia grande quantidade de pedras semi-preciosas naquele lugar. Parte dos convictos dedicou-se assim a extração de pedras. Os presos de melhor comportamento foram autorizados a se dedicar à pesca embarcada.
Em pouco tempo o Japa comunicou ao grupo que o retorno do investimento ocorreria dois anos antes do previsto. Decidiram aumentar o pagamento para um salário mínimo e instituíram a participação nos lucros. Os que não queriam ou não podiam trabalhar foram incluídos em grupos voltados aos esportes e educação. A UniCredo, braço universitário da Cotra, criou um campus avançado na URA – Unidade de Re-socialização Avançada. Criaram-se cursos de Ensino Fundamental, Médio e, principalmente, cursos técnicos.
Com o crescimento da produção de ovinos, a logística começou a ser um problema. Foi necessário começar a processar parte dos produtos primários ainda na origem. Novos ramos da Cotra surgiram nas áreas da logística e da indústria. A CotraLog comprou uma companhia aérea falida.
Fenômeno estranho ocorreu à medida que os primeiros clientes foram liberados. Ao invés de se afastarem dali o mais rápido possível, como seria de se esperar, optavam por pedir emprego lá mesmo ou na vila que se formou do lado de fora da cerca. Muitas famílias de clientes vieram também morar na vila e acabaram empregadas nas atividades de suporte a URA. Em pouco tempo foi necessário transformar a vila em algo mais estruturado com escolas, templos, mercados, hospital, etc. Foi necessário dar-lhe um nome também. Vila Presídio não ficava bem. Acabaram escolhendo o nome do primeiro cliente a desembarcar por lá, um tal de Sidinei, hoje capataz da construção de novos prédios. Hoje Vila Sidinei recebe migrantes não presidiários, a procura de um emprego.
Novamente reuniu-se a cúpula do Grupo Cotra para escolher um nome para o lugar que procurava emancipação política. A econômica já tinha há muito. O Velho acendeu um dos seus adorados Cohibas e deu uma boa baforada, enquanto olhava fixo para o mapa pendurado na parede. Soltando a fumaça, em círculos, exclamou: - Austrália!
Nada falei sobre a parte VIP? Não falei por que não há muito a falar. Raimundo optou pelo rompimento do contrato, apesar da pesada multa. Chegaram a criar uma cidade com prédios todos iguais, infra-estrutura de primeira. A construíram longe do centro de poder da época, nos moldes da Austrália. Os clientes de lá eram muito exigentes, reclamavam que a lagosta viajava muito e acabava com a carne dura por ficar indisposta; o vinho sacudia muito no transporte; o clima era muito seco; quando o faziam, só trabalhavam de terça a quinta; passavam o tempo todo em jogos de alcaguete, e assim por diante. Aquilo só dava prejuízo. Boa parte dos recursos era desviada. Ficava à margem de tudo, de lagos e da sociedade. Chegou a ser batizada Vale das Sanguessugas. Hoje sei que tem outro nome, não me recordo qual.
E-mail: prheuser@gmail.com
Vale das Sanguessugas
Por Paulo Heuser
Raimundo o Empreendedor lia os jornais. Um dos candidatos a Presidente da República – dos que não estão no páreo – defendia, entre outras coisas, o imposto único e a privatização do sistema prisional. Do imposto único é melhor nem falar. Ou, indagar a opinião do Dr. Jatene sobre a contribuição provisória por ele criada. Sabe-se que o imposto único se transformaria em único a ser somado aos já existentes. Naquele momento. Depois poderiam se somar outros impostos únicos ao resultante. Neste caso, as emendas sempre são piores que o soneto.
Raimundo confessou a si mesmo que a idéia da privatização do sistema prisional até era bem atraente. Olhando assim por cima, os piores pesadelos do nosso sistema prisional eram a superlotação e o que daí advinha, como a ociosidade e a escola do crime. O sujeito que entrava lá por ter roubado uma galinha manca acabava saindo diplomado na guerrilha urbana. Havia de se oferecer instalações que mantivessem um mínimo de dignidade, pensou ele. Alimentação correta, higiene e assistência médica não são luxos. Oportunidade de trabalho também não. Reinclusão na sociedade é outro aspecto básico da não reincidência. É lógico que o cidadão dito “de bem”, que acaba não tendo acesso a esses direitos básicos, tentará negá-los a quem cometeu um crime. Especialmente quando tem seu direito à segurança suprimido. Vontade de vendeta.
Leu no mesmo jornal notícia a respeito de quanto o estado gasta com um presidiário – 1.500 reais por mês. Premiamos os comportados com um salário mínimo e pagamos mais de quatro destes pelo presidiário. No mesmo artigo constatou que havia uma multidão de 336 mil presos no País. Usando a calculadora chegou à assustadora cifra de 504 milhões de reais por mês ou seis bilhões de reais por ano de custo com o sistema prisional. É grana para ninguém botar defeito! Para dar uma noção de valor, um aluno de terceiro grau custa aproximadamente R$ 800,00 por mês ao erário.
Raimundo andava à cata de alguma oportunidade para investir em algo pesado. Aí estava. Convocou o Velho - sogro, Japa – diretor financeiro, Zé Tongo – RP e a irmã dele – recreacionista de jardim de infância e facilitadora em eventos de planejamento estratégico e governança para altos executivos.
Expôs sua idéia: entrar no ramo da privatização de presídios. A holding do Grupo Cotra já estava presente nos sindicatos, na igreja, no entretenimento, na política e em outros ramos correlatos. Ainda não estava presente no lado certo do crime. O Velho ouviu atentamente, entre goles do Macallan 25 que Raimundo lhe trouxera da Flórida. O 25 era menos da metade da 51 que tomava antes do boom das empresas de Raimundo, mas eram 25 anos. Quando ainda muito jovem, o Velho visitara Key West, na Flórida, e tomara o primeiro porre da sua vida, na casa de um sujeito muito deprimido chamado Ernesto Heming-qualquer-coisa - a ressaca o levara a esquecer o nome completo. Soube tempos depois que o sujeito se suicidara.
Colocada a idéia, Zé Tongo mostrou-se preocupado com a quantidade de escândalos pipocando todos os dias. Temia que o número de clientes com direito à prisão especial, até a condenação definitiva, crescesse muito. Como a condenação é protelada quase que ad eternum, isto poderia aumentar muito o custo com os viveiros para sanguessugas e outros clientes diplomados em potencial. Lembrou também que esse tipo de cliente é muito exigente, aumentando ainda mais o custo. O Velho lembrou que os clientes VIP não ficam presos muito tempo mesmo. Sempre conseguem uma medida cautelar ou são beneficiados com uma segunda chance. Quantas primeiras existiriam? Devido à alta rotatividade o número de acomodações VIP não cresceria significativamente. Nas próximas reuniões que fizeram, entenderam necessário o afastamento dos presídios para clientes comuns dos centros urbanos. Terras mais baratas eram mais interessantes.
Os aspectos institucionais da idéia foram resolvidos pelo Zé Tongo, misteriosamente, como de costume. O fato é que conseguiram vencer as concorrências para administrar o problema prisional. O velho defendia a colocação dos presídios para presos comuns, e os de alta periculosidade não diplomados, em terras que nem o MST queria. Conseguiram arrendar imensas áreas em terreno quase desértico.
Inicialmente levaram 750 presos para lá, acomodados em barracas, que providenciaram a construção das cercas e dos alojamentos para os 16 mil que se seguiram. Para guarnecer o local, contrataram a Gurka Security Guards, empresa indiana altamente qualificada. O velho insistiu para que a irmã do Zé Tongo seguisse na primeira leva. Não poderiam deixar aquela massa humana desocupada após a construção da hotelaria. Habituada a lidar com todo tipo de cliente, desde crianças de quatro anos até altos executivos de mais de 40, ela soube organizar atividades de recreação e de trabalho. Optou por desenvolver a pecuária de ovinos, em função do solo pobre – nada além de gramíneas – e da economia com carne que poderia ser feita. Começaram pagando meio salário mínimo àqueles que se dispusessem a trabalhar. Outros acabaram descobrindo que havia grande quantidade de pedras semi-preciosas naquele lugar. Parte dos convictos dedicou-se assim a extração de pedras. Os presos de melhor comportamento foram autorizados a se dedicar à pesca embarcada.
Em pouco tempo o Japa comunicou ao grupo que o retorno do investimento ocorreria dois anos antes do previsto. Decidiram aumentar o pagamento para um salário mínimo e instituíram a participação nos lucros. Os que não queriam ou não podiam trabalhar foram incluídos em grupos voltados aos esportes e educação. A UniCredo, braço universitário da Cotra, criou um campus avançado na URA – Unidade de Re-socialização Avançada. Criaram-se cursos de Ensino Fundamental, Médio e, principalmente, cursos técnicos.
Com o crescimento da produção de ovinos, a logística começou a ser um problema. Foi necessário começar a processar parte dos produtos primários ainda na origem. Novos ramos da Cotra surgiram nas áreas da logística e da indústria. A CotraLog comprou uma companhia aérea falida.
Fenômeno estranho ocorreu à medida que os primeiros clientes foram liberados. Ao invés de se afastarem dali o mais rápido possível, como seria de se esperar, optavam por pedir emprego lá mesmo ou na vila que se formou do lado de fora da cerca. Muitas famílias de clientes vieram também morar na vila e acabaram empregadas nas atividades de suporte a URA. Em pouco tempo foi necessário transformar a vila em algo mais estruturado com escolas, templos, mercados, hospital, etc. Foi necessário dar-lhe um nome também. Vila Presídio não ficava bem. Acabaram escolhendo o nome do primeiro cliente a desembarcar por lá, um tal de Sidinei, hoje capataz da construção de novos prédios. Hoje Vila Sidinei recebe migrantes não presidiários, a procura de um emprego.
Novamente reuniu-se a cúpula do Grupo Cotra para escolher um nome para o lugar que procurava emancipação política. A econômica já tinha há muito. O Velho acendeu um dos seus adorados Cohibas e deu uma boa baforada, enquanto olhava fixo para o mapa pendurado na parede. Soltando a fumaça, em círculos, exclamou: - Austrália!
Nada falei sobre a parte VIP? Não falei por que não há muito a falar. Raimundo optou pelo rompimento do contrato, apesar da pesada multa. Chegaram a criar uma cidade com prédios todos iguais, infra-estrutura de primeira. A construíram longe do centro de poder da época, nos moldes da Austrália. Os clientes de lá eram muito exigentes, reclamavam que a lagosta viajava muito e acabava com a carne dura por ficar indisposta; o vinho sacudia muito no transporte; o clima era muito seco; quando o faziam, só trabalhavam de terça a quinta; passavam o tempo todo em jogos de alcaguete, e assim por diante. Aquilo só dava prejuízo. Boa parte dos recursos era desviada. Ficava à margem de tudo, de lagos e da sociedade. Chegou a ser batizada Vale das Sanguessugas. Hoje sei que tem outro nome, não me recordo qual.
E-mail: prheuser@gmail.com
2 Comments:
This site is one of the best I have ever seen, wish I had one like this.
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Hmm I love the idea behind this website, very unique.
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