24.7.06

O Real Valor do Produto

O Real Valor do Produto

Por Paulo Heuser

Assisto a mais uma apresentação de um maravilhoso produto. Considerando tudo a que já assisti ao longo dos anos, o mundo deveria ser diferente. Todos seriam felizes e todas empresas dariam lucro. Afinal, foram centenas de apresentações de produtos que solucionariam todos os problemas das empresas. E fomos bem alimentados, através de centenas de coquetéis, coffee breaks (intervalos de café), wellcome coffees (cafés de boas vindas), almoços e outros tipos de lanches menos comuns.
A experiência me fez acreditar que a utilidade real do produto é inversamente proporcional ao número de refeições servidas durante a apresentação do mesmo. Se o evento de lançamento do produto incluir wellcome coffee, coffee break, almoço, novos coffee breaks e coquetel, certamente a coisa será quase impossível de ser vendida. A real utilidade do produto pode ser calculada através de um algoritmo de Marketing Quântico que estabelece um índice de utilidade real. Se este índice for muito alto, temos o PPI – Paradoxo do Produto Ideal, que sugere a inexistência deste. O que mais se aproxima no mundo real é a agulha para desentupir fogão, vendida pelo ambulante. Os eventos para divulgação de produtos de valor muito elevado – produtos de valor desagregado - são bastante semelhantes.
8h30 – o horário de início impresso no convite deve ser o da matriz, em outro fuso horário. Deparo com uma sala deserta e escura. Na recepção do hotel informam que o “pessoal já está descendo”.
8h55 surge um batalhão de lindas recepcionistas que não encontram o meu nome na lista de convidados, como invariavelmente acontece. Apenas o meu. Sempre o meu. Todos, menos eu, ganham crachás personalizados, bonitinhos, com a foto da mascote. O meu está superpersonalizado, escrito a pincel atômico. Fico com aquele ar de penetra de coffee break. Os previamente identificados recebem uma pasta contendo alguns papéis e um kit contendo caneta com rímel à prova d’água, caleidoscópio, saca-rolha e o que parece ser um quimono. Recebo apenas os papéis. Estão em alguma língua eslava.
9h20 – surge o batalhão de vendedores. Sorridentes, cumprimentam estranhos como se fossem irmãos, dando amplo tapa nas costas.
9h45 – as lindas recepcionistas convidam para o wellcome coffee no Salão Burujucutu. O garçom que serve o café me dá medo. Não sei se é um cacoete, mas ele coloca a ponta da língua para fora do canto da boca e fecha os olhos cada vez que entorna o bule. Creio que ele conta o tempo. O fato é que consegue parar de servir quando a xícara está cheia, mesmo de olhos fechados. Talvez por isto deixe o dedo dentro da xícara.
10h20 – passamos à Sala Brucupiruju para o início da apresentação. O Diretor de assuntos mercadológicos para as Hébridas, Marquesas e Brasil abre o evento falando da satisfação de estarrrrr..... Acordo sobressaltado, pois trocaram o sujeito, o novo anda de um lado para o outro contando piadas. Parece saído de um programa de auditório de sábado à tarde.
10h35 – somos convidados para o coffee break. Mesa farta, biscoitos finos, canapés, salgadinhos de massa podre (no bom sentido), sanduíches abertos, café, sucos, ou seja, um verdadeiro festim. Há risoles. Nunca os entendi. Do que serão feitos? Massa para calafetar frita? Os evito, não quero passar o resto do dia falando com a Dona Azia.
11h15 – com os estômagos forrados, vamos à nova palestra. Com forte sotaque francês, uma mulher explana a nova política de vendas da empresa ACME do Brazil Corp, falando inglês. Resolve então dispensar a tradução e seguir em frente em português, língua que dominara na sua primeira estada no País. De uma semana, faz oito anos. Até tentamos entender o genérico do Esperanto que ela falava. A tradutora também. Após gaguejar algumas coisas em holandês e finlandês, desistiu. E lá se vai nossa feliz colonizadora discorrendo sobre sei lá o quê naquela estranha língua, versão pós-última flor do Lácio, esta feia além de inculta. Ela deve ser aquela que tropeçou e não conseguiu fugir da Torre de Babel. Daí veio a glossolalia – falar línguas estranhas – praticada por pregadores.
11h19 - O sono se foi. A agonia supera qualquer sonolência decorrente da digestão do banquete. A coisa fica realmente emocionante quando nossa palestrante resolve interagir com a platéia. Caminhando aleatoriamente em meio aos assustados ouvintes, pára defronte algum e faz uma pergunta ininteligível, cara a cara, olho no olho. O pobre coitado que não entende por que foi o escolhido, muito menos do que se trata, balbucia algo em resposta. Como recompensa, ganha uma haste com uma bola de metal na ponta. A utilidade do brinde é tão identificável quanto a língua que ela fala. Para outros, que balbuciam e gemem algo mais longo, dá também uma régua preta sem escala. Será um instrumento para autoflagelo?
11h40 – salvos pelo almoço grátis. Agora entendo por que free lunch – almoço de graça - não existe. Pagamos com a tortura das apresentações. Longe daquela mulher, sinto um grande alívio. Podemos nos expressar em português novamente. Ou em qualquer outra língua conhecida. O cardápio é o padrão evento em hotel – arroz branco, strogonoff, caco de vidro (batata-palha), peito de frango ao molho Béchamel, legumes na manteiga e peixe à Belle Ménière. O garçom que pisca está servindo o strogonoff. Opto pelo peixe. E recuso o sorvete com calda de chocolate quente que ele serve a seguir. Noto o dedo marrom.
14h40 – as lindas recepcionistas tentam convencer os convidados encontrados acordados a voltar à Sala Brucupiruju. Assistimos a um vídeo de um caso bem sucedido da utilização do produto em um bar de praia nas Ilhas Marquesas. O piadista de auditório anuncia o sorteio de um fim de semana em Santos no próximo Ano Novo, partindo de São Paulo no dia 31, à tarde. Concorrerão apenas os que estiverem presentes no final do evento. O vídeo é narrado em francês. A glossolalista do Esperanto Genérico se apressa em fazer uma tradução simultânea, aos berros, para sua estranha língua.
15h05 – novo coffee break. O piadista anuncia que a mulher poliglota, ou melhor, panglota – que fala todas línguas ao mesmo tempo -, voltará com tudo após o intervalo. Inventamos (não fui apenas eu) hoje o coffee escape – fuga do café. Servidos de um cafezinho, andamos de costas em direção ao elevador, sempre sorrindo. Chegamos aliviados ao lobby. Os recepcionistas do hotel não conseguem entender por que todos que por ali passam deixam xícaras sobre o balcão da recepção.
15h09 - saio rápido do hotel, sem olhar para trás. Pena que não consegui descobrir o que vendiam.

E-mail: prheuser@gmail.com


1 Comments:

At sábado, 05 agosto, 2006, Blogger Islan de Castro Gomes said...

Muito bom Paulo, lendo seu texto me senti como se tivesse participado de tudo, uma espécie de viagem no tempo e ainda por cima para um local em que nunca estive.
Grande abraço,
Islan

 

Postar um comentário

<< Home