31.7.06

Fahrenheit 89,6

Fahrenheit 89,6
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Por Paulo Heuser
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O título do clássico Fahrenheit 451 (1966), de François Truffaut, baseado na obra literária homônima (1953) de Ray Bradbury, identifica a temperatura em que os livros de papel queimam. Nunca queimei um livro, apesar de alguns me despertarem instintos piromaníacos. Adaptei o título do livro à minha realidade. Se Michel Moore pode fazê-lo com sua tão aplaudida obra teórico-conspiratória Fahrenheit 9/11, também posso fazê-lo. Moore ainda concluirá que Adão e Eva apresentavam laço de família por ancestral comum. Denúncia-bomba em algum novo filme. Ou de que o falecido ex-presidente Ronald Reagan era primo do Alf, o E.Teimoso. Se o Michel Moore pode colocar os números dele, por que não posso também fazê-lo? Caso o Ray Bradbury ameace me processar, como fez com Moore, já tenho outros títulos na manga.
Manhã de inverno. Chego ao trabalho um pouco antes das 8 horas. O vento da Caldas Júnior – Mata Bancário – castiga quem passa. Sinto alívio ao entrar no prédio, as orelhas já não ameaçam cair. Ao entrar na sala descubro porque os amplos espaços de escritório não foram feitos para a convivência mútua de guris e gurias. Entendi também a razão de separarem guris e gurias em salas diferentes nos antigos colégios de padres e freiras. As gurias morrem de frio abaixo dos 28 C!
Calefação ligada a pleno, mal dá para respirar ali dentro. Começa a operação descasca cebola, retirando camadas de roupas. O termômetro se aproxima dos 29 C e uma das gurias comenta sobre o frio que faz. A calefação é desligada, sob protestos da ala feminina. Os computadores vão sendo ligados à medida que todos vão chegando. O ar aquece pelo calor gerado pelos monitores de vídeo e exaustores das CPU. Além de quente, agora está parado, denso.
Aí pelas 10h30, beirando os 31 C, chego à conclusão que há ectotérmicos – que mantêm a mesma temperatura do ambiente - entre nós. Parecem sentir-se perfeitamente bem. Noto que quase não se movem e mantém as pálpebras levemente fechadas. Mas no geral parecem vivos. Respiram e os mouses parecem mover-se, lentamente é verdade, mas movem-se.
O entorpecimento me obriga a tomar um café e a dar uma volta pelo corredor para respirar um pouco. Não posso tirar a camisa. Volto refeito à sala. As 11h30 o termômetro chega aos 31,9 C. O ar parado sufoca. As meninas começam a aparentar conforto. Comentam que já não faz tanto frio, podem tirar o casaco de pele. 89,6 F – 32 C – é o meu limiar de temperatura. Droga! Fui feito endotérmico – tenho de regular minha temperatura. Sinto gotas de suor correndo pelas costas. Os guris assumem uma coloração vermelha acinzentada, mas resistem bem. Basta não se moverem para não aumentar o calor.
Salvo pelo almoço! Saio à rua e respiro aquele ar gélido: 25 C. Após o almoço, nada como os 31,9 C para fazer a digestão. As gurias comentam que o dia está lindo aqui dentro. Pena que faz todo aquele frio lá fora. Quando a temperatura tende aos 32 C, alguém liga o ar-condicionado. Minha cor volta ao normal após 10 minutos, quando o termômetro desce à marca recorde de frio do dia: 27 C. As gurias começam a reclamar que ninguém agüenta trabalhar no Pólo Sul. Notei que um dos guris já consegue mover toda a cabeça. Lembrei da tartaruga que tinha quando criança. Só ficava ativa quando a temperatura subia.
Morro de medo do que acontecerá quando a temperatura atingir os 32 C, ou 89,6 F. Provavelmente uma das gurias vai reclamar do calor. Deveríamos separa o grupo em salas para guris e salas para gurias, com ar-condicionado independente e ajustado em 31,9 C, para elas, e 25 C, para eles. Certo, há exceções, ainda mais que os guris começam a fabricar menos testosterona à medida que a aposentadoria é um porto já visível no horizonte. Estes podem bandear-se para o outro lado. E comprar um par de pantufas.
Uma colega que observava tudo aquilo teve o lampejo para explicar o ambiente abafado e quente: na verdade trata-se de uma incubadora. Há incubadora de pintos, de empresas e as tecnológicas. A nossa é uma incubadora de gênios! Ainda não logramos êxito, mas persistimos chocando, digo, tentando.
Se Ray Bradbury reclamar, isto poderá se chamar Celsius 32 ou Kelvin 305. Se Truffaut ainda vivesse, já teria feito contato. Leio que Mel Gibson pretende produzir nova versão do Fahrenheit 451. Nesta, provavelmente, o bombeiro incendiário Guy Montag apanhará muito após rebelar-se. Sugiro o próprio Mel ou Bruce Willis para o papel.

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