30.8.06

Das Crônicas Raimundianas V - Arroz e Feijão

Das Crônicas Raimundianas V - Feijão e Arroz

Por Paulo Heuser

Raimundo Alterego e sua família viram a prosperidade chegar. Junto com uns quilos a mais. As antigas refeições em família foram trocadas por lautos almoços, jantares e ceias. Até o singelo café da manhã com uma fatia de pão com geléia foi trocado por croissans com recheio. A preocupação do Raimundo aumentou quando observou que a despensa estava repleta de produtos diet, light, e coisas do gênero. Não demorou para convocar uma reunião de família.

Compareceram o Velho (o sogro), Zé Tongo, a irmã do Zé, o Japa que, até onde sabia, nem parente era, e o resto do pessoal de casa. Raimundo havia mandado colocar as cadeiras viradas para um imenso espelho que colocara na sala. Deu resultado imediato, o pessoal foi chegando e olhava com desconforto para o espelho.

Ouviram atentos enquanto Raimundo manifestava sua preocupação com a saúde da família e, por que não dizer, dos empregados da Cotra – holding do grupo – em geral. Sugeriu que todos, alternadamente, se internassem num spa para deixa alguns quilos para trás. Foi nesse momento que o Velho pareceu acordar, perdido nos seus pensamentos, como de costume, e disse que um spa de nada adiantaria, a médio e longo prazos. Indagou quem era a única pessoa da sala que não adquirira sobrepeso. A irmã do Zé Tongo. Curioso, pensou Raimundo, até hoje não sei o nome dela. Realmente, ela estava mais do que em forma, podendo sempre usar aquelas roupas colantes de ginástica. Por quê? Porque era recreacionista de jardim-de-infância e de altos executivos. Estava sempre correndo, pulando e ensinando a prender o rabo no burro. Brincar de cabra cega com os executivos exigia bom preparo físico, para impedir que entrassem de cabeça nas paredes.

Num evento de motivação de equipes, ensinara uma brincadeira idiota para uma equipe de funcionários que apresentava problemas de integração. Cada membro da equipe tinha de correr de costas, o mais rápido que pudesse, em direção à parede, de olhos vendados. O resto da equipe tinha de salvá-lo antes da colisão. Tudo correu às mil maravilhas, até que o gerente da equipe tomou todo impulso possível e veio com tudo em direção à parede. Quando a cabeça dele rachou, parte da equipe havia ido tomar café. Os outros, reunidos no pátio, assoviavam enquanto examinavam as unhas. Até hoje a cabeça daquele gerente apresenta uma região achatada na parte posterior.

Desde então, a irmã do Zé está sempre preparada para salvar gerentes em treinamento motivacional. O que mais impressionou a irmã do Zé foi a fé desse pessoal. Tem de ter muita fé para se jogar de costas, com os olhos vendados, em direção a uma parede, sabendo que aqueles que vão salvá-lo são os mesmos que sonham com a sua posição no organograma. Orgasnograma neste caso.

Seja como for, o Velho percebeu que o exercício inerente à atividade de salva-vidas de executivos era o que mantinha a irmã do Zé na linha. O Velho pediu que ela narrasse suas experiências de entretenimento empresarial.

Só ela sabia o que é segurar um gerente de uma multinacional dinamarquesa. Depois desses eventos traumatizantes, optou pelas coisas menos radicais, como fazê-los andar de olhos vendados numa sala escura sem que se choquem uns com os outros. Curiosamente, os gerentes sempre saem de lá com um olho roxo. Aprendeu rápido a ficar fora da sala, enquanto eles completam sua missão. No escuro, olho não tem dono.

Optou também por atividades lúdico-psicocognitivas, desenvolvidas através de exercícios cênicos de desenvolvimento corporal cognitivo, também conhecidos como teatrinho. No jardim de infância essas atividades não são tão interessantes, pois as crianças ainda têm senso de ridículo e se autocensuram. Com os executivos é muito mais interessante. No afã de superar os pares, fazem qualquer coisa, por mais ridícula que seja.

Enquanto ela falava, Raimundo lembrou-se de um curso desses, quando manifestou ao instrutor seu constrangimento, dizendo que estava se sentindo ridículo por ter de corcovear, relinchar e rolar pelo chão. O indignado treinador disse que não bastava sentir-se ridículo, ele havia de ser realmente ridículo. Fez uma cara de quem havia perdido seu tempo com um retrógrado incorrigível. Outra cena hilária – na visão do Raimundo – fora a de um sujeito que assumira uma posição de carateca contorcionista e emitira um som agudo e sibilante, digno do lagarto de Inimigo Meu. Segundo ele, teria imitado uma árvore, holísticamente.

Talvez a coisa mais incrível que a irmã do Zé inventara foi uma sessão de relaxamento regressivo, onde os executivos foram sugestionados para relaxar partes do corpo, após alguns minutos de concentração com os olhos fechados. Começara sugerindo que relaxassem as partes usuais, mãos, braços, pernas, etc. Como a coisa estava indo bem, resolveu ousar um pouco mais nas sugestões, incluindo escroto, esfíncteres e olhos. Num rompante de entusiasmo zen, sugeriu que relaxassem os sistemas nervosos simpático e parassimpático. Resolveu não repetir a técnica, pois foi necessário chamar o pessoal da limpeza e uma ambulância para aquele gerente que conseguiu relaxar simultaneamente o simpático e o parassimpático.

Finalizando, a irmã do Zé recomendou que o pessoal da Cotra fizesse um programa de exercícios físicos aliado ao regime alimentar. Ela não gostava de academias, preferia o exercício ao ar livre. Comentou que a obesidade e a falta de condicionamento eram quase inexistentes nas zonas rurais.

Foi aí que caiu a ficha do Velho. Levantou de sopetão e gritou: - Vamos para a colônia! Ninguém entendeu no momento, mas ele explicou. No passado não eram obesos porque comiam comida decente e pegavam pesado na roça. Hoje se alimentavam apenas de alimentos processados e levavam vida sedentária.

Raimundo achou que a idéia do velho era bem sensata. Retirariam toda aquela porcaria química da alimentação e passariam a exercitar-se ao ar livre. Encontrando um spa do tipo fazenda, poderiam internar o resto dos funcionários, de tempos em tempos. Já estava encarregando o Zé Tongo de encontrar um lugar quando o Velho interrompeu, alegando que um spa tinha vícios de origem. Tinha de ser algo realmente rústico, com banho de chaleira e cabungo.

Captou a idéia e pensou além. Poderiam transformar o problema familiar num negócio. Comprariam um sítio com a infra-estrutura rústica, acrescentando apenas os alojamentos necessários, mantendo sempre a rusticidade original. Se alguém paga uma fortuna para internar-se num spa, onde come grama e grãos de alpiste light, e veste-se como enfermo, o que não fariam para viver alguns dias de vida natural? Expôs a idéia e teve apoio. O Japa, transformado em RP – Relações Públicas -, contrataria alguns atores e atrizes famosos para divulgar que passaram alguns dias ali. Contratariam a revista Carrancas para divulgar fotos do local com aquelas notícias do tipo Ermelindinha Abrafazão passa temporada no agro-spa.

Criaram uma equipe integrada pelo Velho, Zé Tongo e a irmã, para procurar um local. A irmã do Zé conversara longamente com médicos, profissionais do esporte, nutricionistas e dois colonos, um alemão, outro italiano. Se havia alguém que entendesse de colônia eram estes dois. Traçado o perfil do local, foram a campo. Acabaram encontrando um sítio na subida da serra, com um morro enorme, açude, pomares, chiqueiro e lavoura variada. Os colonos solicitaram alguns equipamentos adicionais, como pipas, um alambique e autoclave.

Após longo estudo, resolveram entregar a administração do local aos colonos e suas famílias. Ninguém entendia mais daquilo. A irmã do Zé permaneceria no planejamento das atividades e o Zé Tongo na logística. Sempre poderia faltar esterco ou algum outro insumo para manter o conforto dos hóspedes.

Raimundo e sua família foram os primeiros hóspedes da CotraVida, primeira fazenda- spa autêntica do País. Ficaram durante um mês. Todos saíram de lá com menos peso e bem mais condicionados fisicamente, além de apresentarem a cor de quem andou levando a vida ao ar livre.

A irmã do Zé aproveitou para fazer alguns ajustes, como a inclusão de papel higiênico, em substituição à palha e ao sabugo de milho. Pequenos confortos eram admissíveis. Rústico, mas levemente civilizado.

Na semana seguinte a CotraVida começou a receber os primeiros hóspedes pagos. A matéria paga na Carrancas fora decisiva. As fotos da Ermelindinha Abrafazão em meio àquela natureza maravilhosa encantaram socialites e seus maridos. Ela assinou um contrato de sigilo por três meses. Nada poderia comentar além do que saiu na Carrancas.

O primeiro contato dos estressados hóspedes foi meio traumático. Os colonos Helmut e Peppe receberam-nos na porteira, cedo pela manhã. O café da manhã foi servido um pouco mais tarde, pois o pessoal nunca havia ordenhado uma vaca, e as amigas da Ermelindinha Abrafazão não haviam levado luvas cirúrgicas. Como era o primeiro dia da turma, Edeltraut e Odete – casadas com o Peppe e Helmut - prepararam o pão. A partir do dia seguinte foi feito pelos hóspedes.

Da turma mista de 30, sobraram 16 após três dias. Todas mulheres. Nenhuma desistira. Conversando daqui e dali, Odete descobriu a razão da tenacidade feminina. Se Ermelindinha Abrafazão pôde agüentar, elas também agüentariam. Na primeira noite ninguém dormiu. As dores musculares eram tantas que o simples movimento da inspiração causava gemidos.

Nenequita Abud-Popokelvys, chegada from Paris, tentou arrumar um telefone para encomendar uma equipe de serviçais. Edeltraut deu um jeito de dissuadi-la, mostrando o contrato que proibia a entrada de serviçais. Como consolo, deixou que tomasse vinho à vontade. Esqueceu de lhe dizer que o vinho estava no topo do morro e poderia apanhar apenas um copo por subida. Na segunda noite contaram quatro subidas da Nenequita. Depois desmaiou. Nem sentiu os pernilongos do riacho, na subida.

Duro mesmo era sovar o pão, cedo na madrugada. Felizes daquelas que iam ordenhar as vacas. Esqueceram-se das luvas. Aí pelo quarto dia, as dores começaram a dar lugar ao cansaço. Era deitar e dormir. Ninguém mais se lembrava de dores localizadas. Só havia aquela generalizada.

Após uma semana, Nenequita Abud-Popokelvys foi para cama com as galinhas e acordou com o galo. Não no sentido figurado, bem entendido. No sábado, Edeltraut e Odete organizaram uma festa de uma semana de sobrevivência. As hóspedes poderiam fugir dentro de mais uma semana, sem se mixar para a Ermelindinha Abrafazão. O que aconteceria com esta se as demais descobrissem que passara apenas duas horas lá, tempo suficiente para a gravação da matéria de Carrancas? E recebera repelente! Edeltraut ficou com pena das meninas, acabou ensinando como fazer um repelente orgânico de pernilongos e borrachudos à base de urina de porco com lama do açude.

Falando no açude, Helmut e Peppe organizaram um pesque e coma. Para variar o cardápio de feijão com arroz, carne de panela e salada verde, abriram a opção do peixe com polenta no almoço, desde que este fosse pescado, limpo e preparado, pelas hóspedes. As meninas logo descobriram que o preparo da polenta era um excelente exercício para os braços. Odete deu a receita e ensinou a cantar La Bella Polenta.

Milinha Fortuna Stevenson quase teve um ataque histérico quando descobriu que aquele crème delicioso que passavam no pão, todas manhãs, era a genuína banha de porco. Ela ofereceu-se para cozinhar. Era mais fácil do que a lida da roça. Estava surpresa com o cardápio. Nunca imaginara que os pobres comiam algo tão delicioso como aquele bastantão. Na verdade, não se recordava da última vez que comera feijão, antes da vinda. Outras delicatessen, como o milho verde na brasa, também a surpreenderam.

Numa noite chuvosa, à luz do lampião, Milinha e Nenequita observaram Edeltraut e Odete trançando a palha para fazer um balaio. À pergunta se conseguiriam fabricar uma bolsa de palha, responderam que sim. Foi o bastante para que socialites colocassem a cabeça a funcionar e montassem a grife Odette Edeltrautt – fica chique acrescentar consoantes -, de bolsas rústicas. O Conselho da CotraVida concordou, desde que as bolsas fossem vendidas apenas no sítio, apenas uma unidade por hóspede. Haviam de ser feitas pelas próprias hóspedes. Odete e Edeltraut entrariam apenas com a etiqueta, bordada à mão. Na verdade, bordavam à máquina, mas a lenda tinha de ser mantida.

Milinha e Nenequita ainda tentam convencer Raimundo a permitir a abertura de uma loja na Via Condotti, Piazza di Spagna em Roma, para vender as bolsas. Na Rua 25 de Março, em São Paulo, Via Condotti das bellas locais, as imitações afloram dos atacados chineses. Seriam perfeitas, não fosse a ausência daquele odor peculiar, não sei se esta é a melhor palavra para descrevê-lo.

Findas duas semanas, Milinha, Nenequita e suas amigas voltaram para casa. Eram outras mulheres. Hedonisa Tamburimdegay surpreendeu a todos e a todas quando resolveu ficar mais uma semana. Descobrira que a flacidez estava sumindo. Suas pernas estavam vistosamente diferentes, depois das escaladas noturnas para buscar o vinho do Peppe. Este lhe confidenciou que na semana seguinte começariam a esmagar a uva da safra, para fabricar o beajolais mais nouveau do planeta. Subindo o morro diariamente, amassando uvas com os pés, ficaria com as coxas nouveau também.

Percebeu também que esquecera o telefone do analista. Mas aprendera a encher morcela. Branca e preta! A lipoaspiração para livrá-la daquele culotezinho irritante foi para o brejo, o do sítio. As máscaras de pepinos recém-colhidos faziam outro efeito. Aliás, tudo ali parecia diferente. Esquecera também o Bebeto Frota Rançoso, quinto e atual marido. Suas amigas foram-se em meio aos planos para organizarem um campeonato beneficente de arremesso de sabugos, na próxima temporada. A renda reverteria para a igreja da vila.

Todas voltaram no mês seguinte para o I Open de Arremesso de Sabugo da CotraVida. E não voltaram sós. Até o Bebeto Frota Rançoso veio, from não sei onde, para ver o que sua mulher andava aprontando.

Quando viram o novo look da Hedonisa, o livro de reservas da CotraVida estourou. Carrancas montou uma edição especial para cobrir o Open. As fotos do pessoal se refestelando em meio aos pratos de arroz e feijão, regados ao beajolais mais nouveau do planeta, correram mundo.

Para os rapazes, Helmut montou o alambique, encarregando-os do processo produtivo, desde a colheita da cana até o envase. A ânsia em provar o néctar fez uma cachaça de doze horas de envelhecimento em barris de carvalho. Após o trabalho, parecia melhor do que um Camus Jubilee da casa Möet Hennessy. O Empório Valentão tentara conseguir algumas caixas do néctar. O Conselho da CotraVida decidira que a produção ficaria no sítio, podendo ser consumida apenas ali. O excedente da produção de vinho foi mandado para o padre Antonello da paróquia da vila. Nunca foi vista tal fila para comungar, dava voltas na igreja.

Helmut conseguira montar uma microcervejaria caseira, a CotraBier, onde os maridos se divertiam nos processos artesanais de produção. Em homenagem ao Helmut, e para rivalizar com a cerveja inglesa Spitfire, resolveram chamar o precioso produto de Messerschmitt. A ressaca era compatível com o efeito do ataque de um destes.

Bem que Hedonisa Tamburimdegay tentou se adaptar à vida fora do sítio. Após três meses fora, retornou. O culote ameaçou voltar, bem como a flacidez que nenhuma academia conseguia resolver. Ela conseguiu convencer Raimundo e o Conselho a comprar as terras ao redor, para lançar o CotraVille, condomínio anexo ao sítio. O Conselho concordou, já que os hóspedes insistiam em ficar, tornando a fila eterna. Da última vez que falei com o Raimundo, andavam com mil lotes vendidos.

Hedonisa Tamburimdegay se adaptara a quase tudo no retorno à civilização. Trocara o Bebeto Frota Rançoso pelo Cacaio Lustoza Ferraz, sexto e atual marido, campeão brasileiro e sul-americano de arremesso de sabugo olímpico.

Só não se adaptou à falta daquele feijão com arroz.


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