O Sagu do Chefe Honorário
O Sagu do Chefe Honorário
Por Paulo Heuser
Fiz parte do Grupo de Escoteiros Santa Cruz – RS-19, quando criança. Acredito que não mais exista, pois não localizei nenhum traço deixado pelo mesmo. Este grupo escoteiro tinha uma peculiaridade que o distinguia da maioria, senão de todos os demais: era independente. Os grupos escoteiros normalmente estão vinculados aos clubes, colégios ou organizações religiosas.
O Santa Cruz não tinha sede fixa, não por muito tempo, pelo menos. Ia onde era aceito, em deposito emprestado, prédio abandonado da sede campestre de um colégio, parque de eventos municipal e na casa em construção do chefe. Este era um sujeito realmente abnegado que conduzia aquele grupo com recursos próprios e com doações de equipamento por parte do Exército Brasileiro. Ele mereceu uma medalha, com certeza.
Começo a ter noção do que perdemos olhando para os escoteiros atuais. A independência daquela tropa permitia uma certa liberdade na escolha das ações. Reconheço que devemos ter relegado aquela história de ajudar a velhinha a atravessar a rua para um outro plano. Nossa prioridade era acampar. Não se confunda acampamento com o acantonamento hoje praticado.
Acampamento era feito no campo ou no mato, a alguns quilômetros da cidade, em terras de agricultores ou fazendeiros. Ia-se a pé, carregando as tralhas. Pela precariedade dos nossos equipamentos, fomos os precursores dos acampamentos do MST. Só que eles vão de ônibus. Alguém ia na frente para pedir licença para acampar. Não contávamos com a lona preta, mas de resto se parecia. Não havia chão nas barracas tipo canadense. A única garantia de um chão seco era a valeta bem feita. A presença de mosquitos não era uma probabilidade. era uma terrível certeza. A única defesa contra eles era a bosta seca e as folhas verdes queimadas na fogueira. O cheiro de fumaça penetrava em tudo.
O cardápio, muito variado, incluía carreteiro de lingüiça defumada, de segunda a segunda. Nos acampamentos de férias este variado cardápio se mantinha por duas semanas, ou mais. O cozinheiro da minha patrulha era o Abdul, descendente de libaneses, com uma certa queda pelo alho e pela rapa da panela. Isto dava um gosto peculiar ao nosso almoço. Mas mantinha cobras, vampiros e lobisomens bem afastados.
O café, feito na panela, tinha a borra retirada através de um tição de brasa. Os novatos eram bem instruídos para colocar latas de salsichas no fogo, sem abri-las, e canecas de plástico sobre as pedras quentes. Acender fogueiras de taquara também era um bom treino para os novos. No segundo acampamento já se tornavam veteranos. Os que sobreviviam.
Terminada a água do cantil, tínhamos de achar um olho d’água ou córrego para o abastecimento. Para tratar a água não dispúnhamos desses kits que hoje existem nas lojas para campistas. Contávamos com um kit de teste de água inventado por nós mesmos: um novato. Bastava dar água ao novato e esperar algumas horas. Novato vermelho do sol, sem vômitos ou diarréia indicava água própria ao consumo humano. Novato azul ou verde, com diarréia e vômitos, indicava água imprópria, com necessidade de fervura adicional. Trata-se de um sistema de cores infalível.
Você já deve estar se perguntando onde entra o sagu nesta história, não é? Pois bem, numa eleição nos idos de 60 e alguma coisa, um candidato a vereador queria engordar o currículo. Como não havia mais vaga para conselheiro de rinhadeiro nem para regente substituto de orquestra de enterro, resolveu apelar para o escotismo. Conseguiu, não sei como, proclamar-se chefe honorário de um grupo escoteiro que já tinha um chefe não honorário. Até aí tudo bem, o problema começou quando ele resolveu participar. Com a primeira dama honorária e o resto da família.
Como praticávamos um campismo um pouco rústico, para os padrões do novo chefe, resolveram nos acantonar no parque de um colégio. Um lugar onde havia água encanada! Coisa de maricas. Descambou de vez quando nos obrigaram a montar uma mesa, sobre a qual foram colocados uma toalha xadrez e um vaso com flores de plástico. Uma toalha! Parecia um convescote de normalistas.
No auge dos desmandos a primeira dama honorária resolveu que comeríamos sagu. Já imaginaram, acostumados a comer o arroz do Abdul, teríamos de comer sagu! A revolta foi contida pelo discurso áspero do novo ditador-cônjuge. O que ocorreu a partir daí não foi bem explicado até hoje. Ninguém soube por que o Abdul foi buscar água no riacho, levando um copinho, ao invés de buscá-la de balde na torneira próxima, enquanto deveria estar mexendo o sagu. O pé esquerdo de um chinelo de borracha derretido apareceu misteriosamente na panela. O descobriram quando finalmente conseguiram tirar aquela massa colante lá de dentro. Também não descobriram de onde veio o formigueiro que tomou conta da mesa com toalha xadrez e flores de plástico. Devem ter sido atraídas pelas flores. Enigma mesmo foi a razão da ruptura das cordas da barraca onde dormia a primeira família honorária, em plena madrugada. O ronda nada viu, nada ouviu e nada falou.
Tentava desesperadamente achar o pé esquerdo do chinelo.
E-mail: prheuser@gmail.com
Por Paulo Heuser
Fiz parte do Grupo de Escoteiros Santa Cruz – RS-19, quando criança. Acredito que não mais exista, pois não localizei nenhum traço deixado pelo mesmo. Este grupo escoteiro tinha uma peculiaridade que o distinguia da maioria, senão de todos os demais: era independente. Os grupos escoteiros normalmente estão vinculados aos clubes, colégios ou organizações religiosas.
O Santa Cruz não tinha sede fixa, não por muito tempo, pelo menos. Ia onde era aceito, em deposito emprestado, prédio abandonado da sede campestre de um colégio, parque de eventos municipal e na casa em construção do chefe. Este era um sujeito realmente abnegado que conduzia aquele grupo com recursos próprios e com doações de equipamento por parte do Exército Brasileiro. Ele mereceu uma medalha, com certeza.
Começo a ter noção do que perdemos olhando para os escoteiros atuais. A independência daquela tropa permitia uma certa liberdade na escolha das ações. Reconheço que devemos ter relegado aquela história de ajudar a velhinha a atravessar a rua para um outro plano. Nossa prioridade era acampar. Não se confunda acampamento com o acantonamento hoje praticado.
Acampamento era feito no campo ou no mato, a alguns quilômetros da cidade, em terras de agricultores ou fazendeiros. Ia-se a pé, carregando as tralhas. Pela precariedade dos nossos equipamentos, fomos os precursores dos acampamentos do MST. Só que eles vão de ônibus. Alguém ia na frente para pedir licença para acampar. Não contávamos com a lona preta, mas de resto se parecia. Não havia chão nas barracas tipo canadense. A única garantia de um chão seco era a valeta bem feita. A presença de mosquitos não era uma probabilidade. era uma terrível certeza. A única defesa contra eles era a bosta seca e as folhas verdes queimadas na fogueira. O cheiro de fumaça penetrava em tudo.
O cardápio, muito variado, incluía carreteiro de lingüiça defumada, de segunda a segunda. Nos acampamentos de férias este variado cardápio se mantinha por duas semanas, ou mais. O cozinheiro da minha patrulha era o Abdul, descendente de libaneses, com uma certa queda pelo alho e pela rapa da panela. Isto dava um gosto peculiar ao nosso almoço. Mas mantinha cobras, vampiros e lobisomens bem afastados.
O café, feito na panela, tinha a borra retirada através de um tição de brasa. Os novatos eram bem instruídos para colocar latas de salsichas no fogo, sem abri-las, e canecas de plástico sobre as pedras quentes. Acender fogueiras de taquara também era um bom treino para os novos. No segundo acampamento já se tornavam veteranos. Os que sobreviviam.
Terminada a água do cantil, tínhamos de achar um olho d’água ou córrego para o abastecimento. Para tratar a água não dispúnhamos desses kits que hoje existem nas lojas para campistas. Contávamos com um kit de teste de água inventado por nós mesmos: um novato. Bastava dar água ao novato e esperar algumas horas. Novato vermelho do sol, sem vômitos ou diarréia indicava água própria ao consumo humano. Novato azul ou verde, com diarréia e vômitos, indicava água imprópria, com necessidade de fervura adicional. Trata-se de um sistema de cores infalível.
Você já deve estar se perguntando onde entra o sagu nesta história, não é? Pois bem, numa eleição nos idos de 60 e alguma coisa, um candidato a vereador queria engordar o currículo. Como não havia mais vaga para conselheiro de rinhadeiro nem para regente substituto de orquestra de enterro, resolveu apelar para o escotismo. Conseguiu, não sei como, proclamar-se chefe honorário de um grupo escoteiro que já tinha um chefe não honorário. Até aí tudo bem, o problema começou quando ele resolveu participar. Com a primeira dama honorária e o resto da família.
Como praticávamos um campismo um pouco rústico, para os padrões do novo chefe, resolveram nos acantonar no parque de um colégio. Um lugar onde havia água encanada! Coisa de maricas. Descambou de vez quando nos obrigaram a montar uma mesa, sobre a qual foram colocados uma toalha xadrez e um vaso com flores de plástico. Uma toalha! Parecia um convescote de normalistas.
No auge dos desmandos a primeira dama honorária resolveu que comeríamos sagu. Já imaginaram, acostumados a comer o arroz do Abdul, teríamos de comer sagu! A revolta foi contida pelo discurso áspero do novo ditador-cônjuge. O que ocorreu a partir daí não foi bem explicado até hoje. Ninguém soube por que o Abdul foi buscar água no riacho, levando um copinho, ao invés de buscá-la de balde na torneira próxima, enquanto deveria estar mexendo o sagu. O pé esquerdo de um chinelo de borracha derretido apareceu misteriosamente na panela. O descobriram quando finalmente conseguiram tirar aquela massa colante lá de dentro. Também não descobriram de onde veio o formigueiro que tomou conta da mesa com toalha xadrez e flores de plástico. Devem ter sido atraídas pelas flores. Enigma mesmo foi a razão da ruptura das cordas da barraca onde dormia a primeira família honorária, em plena madrugada. O ronda nada viu, nada ouviu e nada falou.
Tentava desesperadamente achar o pé esquerdo do chinelo.
E-mail: prheuser@gmail.com
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