14.8.06

Intervalos

Intervalos

Por Paulo Heuser

Afundo no sofá depois de me certificar de que estou com os três controles remotos, telefone fixo e o telefone celular à mão. Senão corro o risco de ter de me levantar. Por que três controles remotos? Não sei, mas todas as vezes que tentei com dois, não consegui. Creio que um é uma espécie de gerente dos outros. Deve haver algum acordo coletivo. Já tentei usar um controle universal. Não deu certo, seria necessário um multidimensional. Um que permitisse zapear entre realidades diferentes. Meia dúzia de apertos de botões aqui, três ali e quatro acolá e estou assistindo a alguma coisa.
Passa na tela a relação dos créditos de um filme que gostaria muito de ver. Mais uns 30 botões e descubro que será exibido novamente daqui a três dias, às 3h50. Volto a zapear.
Subo todos os filmes, desço todos os filmes e vou eliminando. Free Willy 2 não; a História da Sogra de Elza não; Minha Amiga Flika não; A História Realmente Sem Fim não; A Vingança do Tataraneto do Capitão Blood não; A Madre Rebelde não.
Resta zapear mais adiante, invadindo os canais salada de frutas. Em meio àqueles canais recheados com abobrinhas, e risos de claque, mais dois canais de filmes. No primeiro, propaganda, no segundo, propaganda. Descubro horrorizado que estou num horário onde só há intervalos. Estou num intervalo multidimensional. Ninguém deveria ligar a TV neste horário. Só há propagandas e créditos.
Olhando a revista eletrônica constato que há algo para ser visto no canal do Ted Turner. Lá chegando, após 22 minutos de chamadas e comerciais, passo a assistir a um clássico de época. Nosso herói vem cambaleando, doente, faminto, pelas vias estreitas de uma Paris da Insurreição Democrática, quando surge do nada um disco voador. Sim, um disco voador com seres antenados.
O volume salta algo como 20 dB. Saltamos todos de susto ao mesmo tempo, eu, minhas pipocas e o poodle. Os alienígenas anunciam nova rodada de comerciais e chamadas de programação. Recomposto do susto, resolvo ler um livro enquanto aguardo o reinício do filme. Guerra e Paz será suficiente? Na infância escolheria As Aventuras do Sr. Pickwick de Charles Dickens. Aquilo sim era uma história sem fim. Sempre dormia na nona página, segundo parágrafo.
Deixo os livros de lado e começo a zapear para me distrair. Devo ter dormido no primeiro Bloomberg, canal para hipnose coletiva. Ainda bem que não perdi nada do filme, pois cochilei por apenas 20 minutos. O pessoal do disco voador manda um raio que destrói um prédio e, repentinamente, nosso herói continua cambaleando, doente, faminto, .... Após cinco minutos de filme, novo intervalo. Não levo um susto tão grande, já estava algo preparado. Aproveito para assar um churrasquinho. Depois do almoço poderei assistir ao resto do filme.
A forma de assistir à televisão mudou muito depois que a ela aplicaram a relativística temporal social. Antes todos assistiam a tudo ao mesmo tempo. Com o advento da TV via satélite e da TV digital, iniciou-se uma justiça social aplicada ao tempo em que assistimos aos programas.
Quanto mais sofisticado o sistema de transmissão, maior será o atraso. Enquanto os pobres comemoram os gols dos jogos dos seus times, os ricos ainda assistem às cenas de até 15 s atrás, ficando na constrangedora situação de não saber ainda de quem foi o gol. Se a doméstica for um pouco rápida, ou o apartamento pequeno, ela pode adentrar o reduto dos patrões com aquele ar de triunfo de quem já sabe o que aconteceu. Estes não têm coragem para lhe perguntar.
A doméstica não tem bola de cristal. Na cozinha há uma TV marca Stroessner de cinco polegadas que sintoniza apenas os canais abertos. É notório o aumento da venda de radinhos de pilha (caixas de abelhas) pelos camelôs. Para gente fina, que chega de gola alta, enormes óculos de sol e chapéu.
Triste ironia para os bem-afortunados: TV de plasma, transmissão digital e o gosto de estar assistindo a um replay. Salvos pela caixa de abelha, rebatizada como pré-monitor de áudio analógico.

E-mail: prheuser@gmail.com