24.8.06

Teozinho, o Autista

Teozinho, o Autista

Por Paulo Heuser

Meu amigo Raimundo Alterego andava preocupado com o filho Theobaldo - o Teozinho. Às lágrimas, relatou o que estava se passando. Teozinho fora um menino como qualquer outro, até começar a ler. Adorava ler. Quando voltava da escola, pegava o jornal, devorando artigo por artigo, linha por linha. Lia, repetindo as palavras em voz baixa, às vezes voltando para tentar entender os termos mais complexos. Quando a repetição não bastava, indagava o significado daquelas estranhas palavras dos pais ou irmãos.

Passados alguns meses, teozinho começou a questionar o conteúdo de alguns artigos. Lia uma notícia sobre a apreensão de uma ambulância cheia de cigarros contrabandeados do Paraguai. Daí veio uma cascata de questionamentos. O que é contrabando? Por que é permitido vender cigarros se estes fazem mal à saúde? Por que é permitido fabricá-los? Por que é permitido fumar? Por que não prendem quem os vende? Raimundo tentava responder da melhor forma possível às perguntas irrespondíveis que o menino fazia. No frigir dos ovos, nada fazia sentido mesmo.

No mesmo maldito dia apareceu a notícia da fuga de um famoso bandido, já prevista. Outra torrente de perguntas. Se já sabiam que fugiria, por que não o prenderam antes? Se a lei permite, por que não prendem quem fez a lei? Se quem fez a lei não pode ser preso, por que deixam aqueles que não podem ser presos fazer a lei? Por que eles não podem ser presos?

Raimundo mandou o menino ficar quieto, em meio ao sufoco, alegando que ele não teria idade para entender o que ocorria. Mandou que lesse outra seção do jornal. Como desgraça pouca é bobagem, Teozinho escolheu aquela onde os tios falavam sobre o que fariam, caso fossem eleitos. A mudança foi perceptível, o menino perdeu a expressão séria e confusa e passou a sorrir enquanto lia. Raimundo observou aliviado, pelo canto do olho.

Dia após dia, Teozinho chegava em casa, largava o material escolar e mergulhava no jornal, fazendo apenas uma pausa para o almoço. A felicidade do menino era tão visível que até a professora comentou como esse menino andava feliz com a vida.

As coisas começaram a mudar no dia em que Teozinho apareceu em casa com um olho roxo. Tivera uma discussão com um colega e no vai-não-vai acabaram indo. O colega o chamara de mentiroso quando ele afirmou que tudo mudaria para melhor, após as eleições. Teozinho batera pé e afirmara que estava acompanhando tudo pelo jornal e pela tv.

A partir das eleições, o Brasil seria um país diferente. Todos seríamos honestos, trabalhadores, justos e a miséria seria erradicada. Não veríamos mais pobres na rua, os doentes seriam assistidos, todos teriam direito à educação e todos os jovens teriam emprego com salário justo. Assaltos e violência seriam coisas do passado.

Raimundo constatou, apavorado, que o menino estava lendo e ouvindo o noticiário político e, o que é pior, acreditando no que lia e ouvia. Tentou explicar que eram apenas promessas, quase nada seria cumprido. O menino ficou pálido, por trás do olho roxo, e começou nova avalanche de perguntas, mudando de tom de voz à medida que avançava, cada vez mais estridente. O pálido deu lugar ao rubro crescente.

Se não cumprem o que prometem, por que votam neles? Por que noticiam as promessas que não podem ser cumpridas? Por que a tv é obrigada a fazer propaganda dos que não cumprem as promessas? Por que não prendem os que obrigam a tv a fazer propaganda dos que não cumprem as promessas? Por que não podem prender os que fazem as leis que obrigam a tv a mostrar as propagandas....? Repentinamente, tudo cessou.

Teozinho nunca mais abriu um jornal. Não assiste mais à tv. A professora alertou para uma mudança radical no comportamento do menino. Está acabrunhado, briga por qualquer coisa, não se comunica mais com professores e colegas. A família observou que ele fica quieto, fitando o nada, enquanto oscila monotonamente, para frente e para trás. Foi diagnosticado autista. Estranhamente, apresentava períodos de melhora, durante o dia. Algo como um autismo intermitente.

Passados alguns meses, Raimundo observou que o estranho comportamento do menino cessava quando a tv era desligava. Fez alguns testes e confirmou. Bastava ligar a tv para que a oscilação começasse. Desligando a tv, o menino voltava ao quase normal.

Ligada ou desligada a tv, Teozinho nunca mais sorriu. Nunca não, deu um breve sorriso no Natal, ao ganhar um presente. Naquele Natal, Raimundo ganhou um livro de um autor alemão, Günter Grass.
O menino ganhou O Tambor.

E-mail: prheuser@gmail.com