29.6.08

419 - Tolerância Zero!



Foto: Paulo Heuser
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Tolerância Zero!

Por Paulo Heuser

Hoje me joguei cedo, na estrada, louco para provar meu primeiro bafômetro. Subi a Serra. Eu esperava dar a primeira baforada lá pela 116. Porém, não fui feliz. Será que eles não esperavam por alguém, tão cedo? Segui por Portão, Caí, e todas aquelas lombadas eletrônicas que lembram totens de jogos de boteco. Quando minhas filhas eram pequenas, ao verem as lombadas, gritavam: “Pai, quantos pontos fizemos?”.

Nada de bafômetros, morro acima. Lá em cima, quem saberia? Ninguém, pelo visto. Pedi informações em pelo menos meia dúzia de postos de gasolina. Ninguém sabia onde havia um bafômetro. O meio-dia passou, a fome bateu forte. Resolvi almoçar onde certamente haveria um bafômetro, perto do Vale dos Vinhedos.

O garçom trouxe um pão italiano de fazer qualquer estômago chorar de felicidade. Pedi pela água mineral, com gás, para não parecer básico demais. Na mesa ao lado, uma senhora de sotaque castelhano sorvia longos goles de uma caipiriña enorme. Seu acompanhante, um homem com os cabelos grisalhos no estilo motoqueiro sem capacete, pedia meia garrafa de vinho. E eu estava na base de pão e água. Não fui o único a evitar o vinho, pois noutra mesa, com pelo menos 12 pessoas, todos bebiam refrigerantes. Todas aquelas 12 crianças. Veio a sopa, o galeto e o spaghetti ai funghi, com água. H2O e CO2. Recusei o sagu de vinho, pedi cafezinho, a conta e um bafômetro. O garçom chamou o proprietário, que se debulhou em desculpas, pois não havia bafômetros – vi è una mancanza di bafometri! – ele gritava, com forte sotaque de tradutor do Google, gesticulando muito. Sugeriu que eu tentasse mais adiante, nas tendas de beira de estrada. O homem da meia garrafa pediu outra. Beberia menos, assim? Não beberia uma garrafa de vinho, beberia duas meias. Enfrentaria dois meios bafômetros? Aceitei o café. Quando a conta chegou, o homem das duas meias garrafas pediu outra meia, para a viagem. Já era o homem da garrafa e meia. Seguiu viagem.

Desci da Serra, procurando por algum anúncio que levasse aos bafômetros. Nada, apenas batatas da safra e morangos do próximo inverno. Parei ao lado de uma tenda e perguntei à senhora que vendia morangos orgânicos sobre a existência de algum bafômetro na região. Relutante, ela desconversou. Recomendou-me que procurasse a imprensa. Coincidência, ou não, naquele momento parou a caminhonete da equipe de reportagem, conferindo o preço da batata da safra. Fariam alguma matéria sobre a pressão da batata nos índices inflacionários. Abordei aquele que se parecia com um jornalista:

- Boa tarde, você saberia onde eu poderia encontrar um bafômetro?

Ele coçou a orelha, com a caneta, antes de responder:

- Bem, depende.

- Depende do quê?

- Não há mais muitas vagas, depende de onde você se encaixa...

- Encaixar, como?

- Eh, sabe como é, nós temos cotas para os noticiários. Já temos operários, estudantes, chefes insuspeitos de família, dondocas, executivos e advogados. No momento, procuramos desesperadamente por uma freira embriagada dirigindo uma Kombi lotada com órfãos afegãos. Dá capa.

- Comunzão, assim, nada feito?

- Não dá. A cota já está preenchida.

Cheguei em casa, sem bafômetro. Contudo, venci a prova. Sobrevivi. No noticiário, nada de freiras embriagadas dirigindo Kombis cheias de órfãos afegãos.

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27.6.08

418 - A classe média VI - O Incidente Clotilde


Renault Dauphine - Foto: Wikipedia
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A Classe Média VI - O Incidente Clotilde

Por Paulo Heuser


A Paróquia de Outro Lado do Cinamomo, primeiro - e único - distrito do município homônimo, deveria ser o lugar mais tranqüilo do mundo, para o exercício do sacerdócio. De vez em quando alguma alma nasce, outra sobe, ou alguém casa. O Padre Antão apreciava essa calmaria. Até que ocorreu o Incidente Clotilde.

Dona Clotilde é a versão feminina do carola. Organiza todas as festas da igreja, organiza grupos de senhoras, promove bingos, e, o que é mais importante, não perde missa. Até Padre Antão já faltou, por se encontrar acamado. Dona Clotilde, não. Ela nunca perdeu uma missa, nem mesmo no dia do nascimento de Maria, sua única filha, casada com o Linoberto. Naquele dia, Padre Antão rezou missa na casa da Dona Clotilde. Dizem por aí que o bispo quis entregar uma medalha à Dona Clotilde, quando da sua visita ao município. Só não o fez porque a comitiva não encontrou o Outro Lado do Cinamomo. Perderam-se em meio à estrada poeirenta e esburacada, indo dar em outro grotão. Linoberto achou melhor assim, pois a imprensa poderia expor aquele paraíso ao mundo. Então começariam as romarias e procissões que tirariam a calma do lugar. Restaram um bispo, com a fé um pouco abalada, e um governador, constrangido por não encontrarem o Outro Lado do Cinamomo, mesmo com a ajuda Dele e do GPS. Padre Antão crê que Ele quis assim, para preservar a paz do lugar. Quanto ao GPS, não opina, pois é coisa dos homens, e aos homens pertence.

Linoberto já ouvira falar da tal de Tolerância Zero com o álcool. Ouvira sobre ela no rádio. Ele achou melhor avisar ao irmão de plantão no Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos, para que não deixassem ninguém dirigir, caso houvessem bebido. O Sétimo Irmão, prefeito e plantonista do dia, não deu muita atenção ao fato, pois praticamente ninguém dirigia por lá. Faziam tudo a pé, de cavalo ou de carroça. Por via das dúvidas, Sétimo colocou um aviso sob o balcão: “Se beber, vá de carroça”. Avisado pelo Linoberto, Padre Antão fez um sermão temático, naquela sexta-feira, remetendo ao inferno os gambás do lugar. Depois, foi tomar um digestivo no 12 Irmãos. Na saída, aproveitou para levar um garrafão do vinho de missa, para a consagração do dia seguinte. As hóstias seriam preparadas pela Dona Clotilde, como de costume.

A encrenca sempre vinha do outro lado do cinamomo. Já fazia pelo menos seis meses, desde a visita do último estranho. O isolamento geográfico trazia algumas vantagens. O governo não investia em estradas. Em compensação, não conseguia mudar os costumes simples e tradicionais do lugar. Nem encontrá-lo, diga-se de passagem. Havia uma notória exceção. O Estranho. Ele conseguia achar o Outro Lado do Cinamomo, na condição de agente do governo. Versão campestre do Cavaleiro do Apocalipse, ele sempre trazia más novas. Dessa vez, não foi diferente. Ele veio acompanhado pela equipe da blitz contra o álcool. Trouxe consigo dois agentes da lei munidos de bafômetros. Um dos bafômetros se foi, no primeiro teste. Derreteu. Os agentes uniformizados postaram-se ao lado do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos e solicitaram um voluntário para a aferição da engenhoca. Os fregueses do 12 Irmãos, que estavam lá dentro, mandaram o Jacó “Bafo de Komodo”, homem rústico que se orgulhava de nunca haver escovado os dentes. O bafo do Jacó fede tanto, que ele foi proibido de freqüentar as festas dominicais da paróquia. Com ele lá, ninguém come. Seu apelido derivou do Dragão de Komodo, réptil que apresenta o pior bafo do planeta.

Os agentes da lei já haviam desistido de flagrar alguém com o bafômetro restante. Todos freqüentadores do 12 Irmãos saíam a pé, a cavalo ou de carroça, e curariam a ressaca em casa. Como a legislação não previa a fiscalização de cavalos e carroças, nada podia ser feito. A única pessoa que andava de carro era a Dona Clotilde, para preservar seus sapatos novos de missa. Quando o sino deu a décima segunda badalada, anunciando o fim da missa, Dona Clotilde entrou no seu flamante Renault Dauphine 1960, que um dia foi verde esmeralda, e arrancou, queimando óleo, para percorrer os 87 metros que separavam sua casa da igreja. Andou 21, até que parou, interceptada pela blitz dos estranhos.

Do alto dos seus 1,43 m de altura, pesando 37 quilos – andou exagerando nas cucas -, Dona Clotilde soprou com tudo, no bafômetro, após ouvir atentamente as explicações do agente. Qual não foi a surpresa de todos, quando o mostrador do aparelho indicou que ela superara em muito o máximo de álcool permitido – zero. Dona Clotilde foi autuada, teve o Dauphine apreendido e a carta de motorista confiscada. Recolhida ao xadrez temporário do Outro Lado do Cinamomo, a despensa do 12 Irmãos, Dona Clotilde aguardava transporte para o presídio regional.
Linoberto foi ao 12 Irmãos, tão logo Padre Antão mandou o sacristão avisá-lo do ocorrido com a beata número um da igreja, sua sogra. Ficar sem ela seria suportável, mas quem faria as hóstias, daí por diante?

- Você, de novo? – disse Linoberto, ao se deparar com o Estranho.

- Antes de qualquer coisa, saiba que ficamos constrangidos. Ninguém queria prender uma velha beata. Porém, besta lex, sed lex! – disse o estranho.

- Sim, já sei, a lei é besta, mas é a lei. Porém, não podem levar em conta que ele apenas consagrou, bebendo um gole de vinho do cálice da missa? Isso é algum crime?

- Entendo seu raciocínio, e concordo com ele. Porém, besta lex, sed lex!

Quando Linoberto chegou em casa, tarde da noite, Maria aguardava ansiosa, querendo notícias da mãe. Ele parecia cansado. Serviu-se de um copo da “boa” e suspirou.

- Como foi, Lino, a mãe vai presa?

- Não, Maria. Como era de se esperar, o carro do xadrez não achou o caminho até aqui, deu voltas por toda a região, até ficar sem gasolina. A única prova contra a Dona Clotilde era o tal do bafômetro. O Jacó deu um jeito. Soprou seu bafo fétido durante quase um minuto, num momento de distração dos agentes. O aparelho restou inutilizado. Sem provas, nem xilindró, sua mãe foi solta, e lhe devolveram o Dauphine.

- Ainda bem que tudo terminou bem, não é? – Maria estava visualmente aliviada.

- Nem tudo, Maria. Agora, o problema é o Padre Antão.

- O que houve com ele?

- Foi preso por vender bebida, ao lado da estrada, para a sua mãe.

- Mas ele não vendeu, fazia parte da missa!

- Sim, só que eles alegam que o dinheiro da sacolinha foi o pagamento pela bebida! Besta lex, sed lex!
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24.6.08

417 - Segunda via


Foto: Relojoaria.com
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Segunda via

Por Paulo Heuser


Noutro dia eu estava espiando um relógio de pulso, numa vitrine, pois percebi nele uma característica curiosa. Além de exibir o dia do mês, exibia também o anterior e o posterior. Fiquei pensando na utilidade daquilo. O dia do mês é uma informação completa, por si só, a não ser que o comprador do relógio seja um recém- libertado pelas Farc, e ignore o mês e o ano nos quais se encontra. Sei que muitos relógios sofisticados exibem informações utilíssimas, como o século, as marés do Mar Morto, as fases das luas de Urano, coisas fundamentais para qualquer ser urbano socialmente bem colocado. Ali parado, com cara de idiota, acabei chamando a atenção de duas vendedoras, que logo me cercaram.

- Pois não, senhor. Percebemos que o senhor se interessou pelo relógio!

- É verdade. Confesso que não entendi por que ele exibe três dias, em vez de apenas um, como os demais.

- Ah! – exclamou uma das vendedoras – O senhor reparou nessa característica única desse relógio.

- Sim, não há como não reparar.

- É fascinante, não é? – disse ela, orgulhosa.

- Não deixa de ser, em tese. Mas, qual é a utilidade disso?

- Ora, senhor. Essa exclusividade permite que o senhor saiba quando foi ontem, quando é hoje e quando será manhã!

- Assombroso! Mas, não bastaria que eu somasse ou subtraísse um da data de hoje?

- Oh, é claro, mas o senhor poderia errar! E no dia 31, o que o senhor faria? Diria que o dia seguinte seria o 32?

Sorri, agradeci, e saí de lá. Constatei que nem sempre falamos a mesma língua daqueles que falam a nossa língua. Notei também que a lógica das vendas tem parecido um tanto ilógica. Fiz um teste com um operador de telemarketing que não aceitava não como resposta à proposta de contratação do serviço que a empresa dele tentava me empurrar. Em resposta à terceira ou quarta pergunta sobre os motivos que me levavam a não aceitar a proposta, escancarei:

- Porque essa empresa não presta. Nada do que ela produz pode me interessar!

- Sim, mas então o senhor não estaria interessado no plano básico, mais em conta?

- Não!!!

- Qual seria a razão?

Fiquei sem razão. Não sabia mais o que pensar. Nada do eu pensasse seria compatível com os neurônios daquele ser, não-humano, pelo visto.

Hoje cheguei a uma daquelas empresas que identificam todos os visitantes, compreensivelmente. Eles cadastram todos os visitantes, por ocasião da primeira visita. Depois, basta apresentar o documento, cujo número é digitado pela recepcionista. Acostumado com o acesso instantâneo, fui surpreendido pela luz vermelha. Eu fui barrado. Após digitar algumas coisas, e olhar para a tela do comutador, espichando o pescoço, a recepcionista sorridente informou a razão:

- Ah, já entendi! O senhor apresentou a segunda via do documento, que não está cadastrada! Apenas a via original pode lhe dar acesso.

Pensei, por um momento, e resolvi seguir a lógica que ela seguia:

- Já sei! Voltarei para casa e mandarei minha segunda via, no meu lugar! Segunda via com segunda via pode, não pode?

Ela continuou sorrindo, pareceu apenas um pouco indecisa, mas falou:

- Bem, acho que vai funcionar...

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23.6.08

416 - Prazerosamente congelados

Foto: Paulo Heuser
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Prazerosamente congelados

Por Paulo Heuser


A racionalidade do ser humano é posta à prova em cada mudança de estação. Sabemos que, quando o inverno chega, esfria. Sempre foi assim. Pode mudar no futuro, mas o clima esfria no inverno e esquenta no verão. Contudo, todos parecem surpreendidos pelo frio. Quando os termômetros baixam dos 15 graus Celsius, começa a choradeira, como se os termômetros marcassem 15 Kelvin (-258 Cº). Cada inverno parece mais frio que os anteriores. Pelo menos, é o que dizem.

Num ponto parece que há unanimidade, quando o assunto é clima: todos parecem querer fugir do frio, na direção do calor. Os brasileiros sonham em morar no Nordeste, depois da aposentadoria. Querem morar onde há muito sol e calor. Deixarão o fio e a umidade para trás. Secarão o reumatismo ao sol.

Os europeus, que sofrem muito mais com o frio, fazem a mesma coisa, fogem do frio. Quem lucra com isso, são os países do Mediterrâneo. A cidade litorânea de Rimini, na Emiglia-Romana, costa adriática da Itália, é conhecida como “forno de microondas dos alemães”, que correm para lá e ficam cozinhando ao sol. As longas praias de areia, bem mais baratas do que as do outro lado da bota, na Costa Ligure do Mar Tirreno, enchem-se de alvos alemães, que não vêem a hora de se transformarem em algo com cor de lagosta cozida. Com bolhas, muitas bolhas. Faz bem, para o câncer de pele. Eles deixam para trás suas casas bolorentas e mal ventiladas, lagarteiam de dia e fazem farra à noite.

Até aqui, tudo parece bem racional, tirando a exposição ao sol de verão. O que mais me espanta, aqui, é a migração para a Serra, durante o auge do inverno, daqueles que se queixam tanto do frio. Um tanto de frio, aqui é ruim, lá é pouco. Vão curtir um friozinho, como dizem. É exatamente aí que começa a irracionalidade. Se sonham tanto com o calor, por que vão para o frio? Alguns dizem que vão pela sensação do aconchego proporcionado pelo frio. Procuram temperaturas extremamente baixas. Qualquer coisa acima de zero leva à frustração. Dançam de alegria, quando neva ou chove gelo. Inclusive aqueles que chegam nos ônibus de farofeiros, trajando camisa regata, bermudas e chapéu sombreiro. Basta que os informativos meteorológicos anunciem baixas temperaturas na Serra, para que os hotéis da região lotem.

Os restaurantes que servem pratos fumegantes, ao lado das lareiras, também fumegantes, são os preferidos pelos que querem curtir o frio. Os jantares estendem-se à espera da neve, que eventualmente cai. Tudo envolto pela atmosfera romântica, em meio à iluminação em tons quentes. Entendo o conceito, e concordo que é muito prazeroso passar bons momentos naquele clima, desde que ele fique do lado de fora.

O Bira Louco entende menos ainda, por que alguém pagaria para ser levado a um lugar ainda mais frio. Andando pela praça, meio torto, de sandálias havaianas amarelas e casaco de tricô colorido, ele tem certeza de que trocaria sua marquise daqui por alguma de Fortaleza, Natal, ou Rimini, se tivesse algum dinheiro. O que ele não sabe, é que aqueles que se divertem com o frio são os que podem pagar por ele. De graça, só sofrimento!

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20.6.08

415 - A parábola do mestre


Foto: Paulo Heuser
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A parábola do mestre

Por Paulo Heuser


Perguntaram-me sobre a razão que me leva a escrever parábolas. Fiquei meio confuso, a princípio. Nunca gostei muito das figuras cônicas. E uma parábola é, por definição, uma seção cônica gerada pela interseção de uma superfície cônica de segundo grau e um plano paralelo a uma linha geradora do cone (chamada de geratriz). Dá nojo, não dá? Pois, pego de surpresa, não soube o que responder, naquele momento, senão que o mundo não pode ser feito apenas de hipérboles. Faz algum sentido, e deixa o interlocutor confuso. Depois, mais calmo, lembrei-me do outro significado da palavra parábola. Ora, os livros ancestrais, como a Bíblia, o Corão, Mahabharata, Ramayana e o Torá, foram escritos na forma de coletâneas de parábolas.

Vejamos, então, por que escrevo parábolas? Pela mesma razão que levou alguém a escrever o livro de Abacuque em forma de parábola. Sei tanto quanto ele. Talvez tenha algo a ver com a fixação da idéia por parte de quem lê. Os personagens das parábolas podem ser mais bem aceitos do que aqueles que escrevem. Deixamos de transmitir uma idéia e passamos a narrar uma história enfeitada, de modo a melhorar a fixação da idéia central.

Muito do que se escreve hoje, está em forma de parábola, cujo personagem é algum tipo de mestre oriental, geralmente indiano ou chinês. São figuras notáveis, dos povos altamente espiritualizados. Quem escreve, transfere a eventual culpa para o mestre, e recolhe as glórias. Se der errado, a culpa seria do mestre. Como o mestre é uma semidivindade insofismável, a culpa é de quem lê. Leu errado, dirão.

Não tenho muita experiência com parábolas de mestres. Imagino uma do Mestre Him Ha Laya, que só morreria no dia em que houvesse visto tudo deste mundo. Quando deixasse de se surpreender, partiria para um campo celestial repleto de outras semidivindades, que partiriam ao plano superior quando deixassem de se surpreender, etc e tal. Pena que o Mestre Him tenha encalhado por aqui. O problema não é ele, é este mundo, na verdade. Quando o Mestre achava que finalmente seguiria o destino dos seus antecessores, ele leu aquela dica sobre o corte de cebolas, sem choro. Apareceu na seção de culinária do jornal. O chef de cozinha sugeria chupar a cabeça de um palito de fósforo, entre os dentes, enquanto se cortam cebolas. Evitaria o choro. Ele deixou muito claro que não se deveria chupar o fósforo aceso. Outra maneira, de evitar o choro, seria a colocação de um pedaço de pão na ponta da faca. O Mestre se surpreendeu, e ficou. Poderia ter partido no dia seguinte, se não houvessem depenado o avião da Força Aérea Brasileira, utilizado pelo Presidente da Câmara, em visita a Itapeva, no interior paulista. O Mestre surpreendeu-se muito, e ficou.

Depois, apareceram os pés canadenses. Para quem não acompanhou as notícias, têm aparecido pés humanos na área ao redor da Ilha de Vancouver, na Colúmbia Britânica canadense. Foram seis, até agora. Quatro direitos, um esquerdo e um falso. Não dá para se formar um padrão com isso, mas, sem dúvida, é um grande mistério. Os grandes mistérios sempre surpreendem, inclusive os Mestres. Assim, Mestre Him vai ficando, cada vez mais surpreendido. As explicações para o aparecimento dos pés também são surpreendentes, como aquela do tsunami que teria trazido pés desde o outro lado do Oceano Pacífico. Como alguns vestiam tênis de procedência oriental, por que não? Sei, é duro de engolir. Mestre Him também acha. Ele já se considera um imortal. Não sairá daqui. E ele ainda nem viu as manchetes de amanhã. Quais serão? Não sei, só sei que manterão o Mestre Him por aqui.

As parábolas costumam carregar uma forte lição moral. Esta, no entanto, é definitivamente imoral.

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18.6.08

414 - Atrasado!



Foto: Paulo Heuser
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Atrasado!

Por Paulo Heuser


Eu adorava sardinhas, quando criança. Não pelas sardinhas, pela lata. O atum relegou as sardinhas ao esquecimento. As pizzas de sardinha foram prato de todas as festas de aniversário da década de 70. Os rapazes levavam a bebida, as moças a comida. As mamães das moças preparavam pizzas de sardinha, invariavelmente, e os papais se livravam das bebidas que haviam recebido de brinde, seja quais fossem.

As latas de sardinhas vinham com aquela chave que pretendia facilitar a abertura. Era uma chave metálica que se encaixava numa aba, e permitia, em tese, que a tampa da lata fosse enrolada na direção de uma das extremidades. Já as pobres latas de atum, além de caras, apresentavam superfície lisa, quase desprovida de encaixes para o abridor. Para dificultar mais a abertura, sempre foram cilíndricas, exigindo que o abridor de latas ande em curva. Os abridores geralmente descarrilam. Algumas já contam com abertura através de um anel que, quando puxado, traz a tampa consigo.

As latas de sardinhas me causaram tamanho fascínio, que passei anos projetando um sistema de abertura instantânea, sem riscos à saúde. Descartei o canhão laser, pelos custos envolvidos. Deixei também de lado o rolo compressor, pois saía apenas purê de sardinhas. O modelo que chegou mais próximo da realidade foi um cortador, no formato da lata, que guilhotinava a tampa, de um só golpe. Naturalmente, tamanho e formato da lata deveriam se manter padronizados. Estava dando tudo certo. O equipamento era barato, de fácil operação, e de tamanho relativamente compacto, podendo ser afixado à parede. Então, veio o Collor. A segunda abertura dos portos, promovida por elle (sic), trouxe as latas de sardinhas portuguesas. Nada contra a nacionalidade delas. O problema foi o formato das latas, completamente diferentes das nossas. Depois, os pobres passaram a comer atum, graças à distribuição de renda do Lula. Atacado por direitistas, socialistas e portugueses, joguei a toalha. Desisti, pois cheguei atrasado. Meu invento foi natimorto. Não como mais sardinhas, e passei a odiar as latas.

As grandes corporações também chegam atrasadas. A France Telecom montou uma rede para acesso pago, sem fio, a Internet, cobrindo toda Paris, enquanto a prefeitura da cidade montava uma rede semelhante, com acesso gratuito.

Descobri que cheguei novamente atrasado. Investi nas eleições, tarde demais. Projetei postes telescópicos, que poderiam ser encolhidos até a altura de apenas dois metros, para facilitar a colocação e a retirada de propaganda eleitoral. Nos hiatos entre eleições, que não são tão longos assim, o sistema poderia abrigar a propaganda não-eleitoral. Todos ficariam felizes. Os candidatos poderiam colar sua propaganda sobre a dos outros, todas as noites. As gráficas operariam a plana capacidade. Alguém fabricaria e venderia os postes. As empresas de publicidade venderiam novos espaços. As prefeituras poderiam alugar os postes. Eu ficaria rico com a patente. Proibiram a propaganda eleitoral nos postes. Novamente, cheguei atrasado!

Não desisti, no entanto, de continuar inventando. A motivação veio de um grupo de sete miseráveis que aguardavam a morte, sentados sob uma marquise, nesta noite de frio glacial. Morrerão de frio, mas mantêm algum humor. O primeiro deu boa noite. O segundo pediu desculpas por darem boa noite, enquanto o último comentava que, de qualquer forma, eles não existiam. Como todo CSM – cidadão sem marquise -, passei olhando para o chão. Não é bom encarar a realidade. Percebi, então, por que as lojas passaram a colar propaganda sobre o passeio público. Todo mundo passa olhando para o chão, com se usassem um cabresto vertical. Foi então que nasceu meu novo projeto. São os OVU – Óculos de Visão Ufanista. Eles convertem a realidade local à realidade dos discursos. Esses óculos transformarão a passagem pelo Centro num passeio agradável, como se estivéssemos naquele lugar que os discursos políticos projetam. Através deles, veremos apenas marquises desabitadas. Não haverá caixas de papelão e cobertores sujos. Na Padre Chagas, os flanelinhas sumirão. Infelizmente, ainda não achei uma forma de sumir com os parquímetros. Os OVU eliminam apenas a imagem. O me-dá-me-dá-me-dá, permanecerá. Nada que um MP3 não resolva.

Sei que o produto tem tudo para se tornar um sucesso. Só temo chegar atrasado, novamente. Se o Brasil se tornar, finalmente, aquilo que nos vendem nos discursos, os OVU serão inócuos, inservíveis. Mostrarão a mesma agradável realidade que a visão a olho nu nos proporcionará. Assim, torço pelo atraso. Adoraria jogar os OVU fora. Porém, meu medo maior é da visão das ruas vazias, completamente desabitadas, através dos OVU, ao meio-dia, em pleno Centro, num dia comum da semana, apesar do ruído intenso.

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16.6.08

413 - Quilombos albinos



Cudiguim. Wikipedia
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Quilombos albinos

Por Paulo Heuser


O que é a maioria, senão uma colcha de retalhos das minorias? Nunca antes, não apenas neste País, as minorias conquistaram tantos direitos. A Carta da ONU dá extremo destaque à preservação étnica, religiosa e lingüística das minorias. A Constituição Brasileira de 1988 permite uma leitura através de filtros temáticos, que leva à interpretação extremamente subjetiva. É o ultrajusnaturalismo. Cada um lê o que quer, como quer. Portanto, entramos na era da preservação das pequenas manifestações culturas.

O Brenner tentou criar uma minoria una. A minoria mais singela do mundo. Era apenas ele mesmo. Uma minoria tem de se destacar da maioria, e das demais minorias, por algum aspecto notável. O Brenner se destacava dos demais pela sua alimentação. Exatamente esse aspecto que o diferenciava do resto da população, foi o fato determinante para que tivesse negado o reconhecimento da sua minoria. A Subsecretaria Nacional de Defesa das Minorias, ligada ao Ministério do Inferior, não aceita mais o registro de minorias unas. As minorias têm de apresentar pelo menos dois minoritários. Brenner não conseguiu convencer outro a adotar seus hábitos alimentares. Quem mais comeria peixe, temperado com muito alho, e macarrão, esquentados no forno de microondas, num pote fechado de plástico? De três em três horas, bem entendido. Os candidatos não passavam da qüinquagésima vez.

Outro exemplo de minoria é a do Kritter. Porém, esta prosperou, pois deixou de ser una. Kritter andava chateado com o governo. Não é que o tratassem mal. Não o tratavam, simplesmente. Como elemento da maioria, era ignorado. Após haver esbarrado no crivo da Subsecretaria, Kritter não demorou a conseguir outros adeptos. Analisando os aspectos diferenciais aceitos pelo órgão regulador, ele optou pela formação de uma minoria dos descendentes de imigrantes prussianos, já que ele próprio seria um. Esse critério mostrou-se insuficiente, pois havia gente demais que se enquadrava. Acrescentou outro critério aceito: a religião. Kritter professava o protestantismo luterano. Teve de ser muito específico nesse aspecto, pois havia muitas religiões protestantes, abrigando um universo muito grande de pessoas. Kritter acrescentou, como característica, a luta contra a religião católica, em vingança pela Contra-Reforma do Papa Paulo III. Dormiu fora de casa, naquela noite, pois se esqueceu de que se casara com uma católica. Acabou acrescentando este como um atributo: ter se casado com cônjuge católico(a). Como o universo de pessoas pertencente a esse conjunto ainda era muito grande, Kritter acrescentou também os aspectos alimentares, que, em última instância, eram culturais. Os integrantes da minoria deveriam gostar de comer zampone (cudiguim) maturado no vinagre de losna, temperado com rabanetes em conserva e rábano-picante (Armoracia rusticana), crucífera que dá nova cor à vida. Se alguém tem dúvida, quanto ao que é cudiguim, melhor não sabê-lo, nem comê-lo. O fator alimentar foi decisivo para reduzir a minoria aos cinco membros atuais.

O processo de reconhecimento da minoria dos descendentes de imigrantes prussianos protestantes luteranos, não-calvinistas, não-pentecostais, casados com cônjuges católico(a)s, apreciadores de cudiguim maturado no vinagre de losna, temperado com rabanetes em conserva e rábano-picante, anda de vento em popa. Uma minuciosa pesquisa no arquivo histórico, cujo acervo foi completamente destruído no incêndio de 1876, revelou que o local onde hoje está o Parque Moinhos de Vento, o Parcão, foi o primeiro reduto da minoria dos descendentes de prussianos, etc, etc e tal. Habitavam uma espécie de quilombo albino. Tão logo o processo de reconhecimento oficial da minoria estiver completado, Kritter iniciará o processo de requisição da posse daquela área. Kritter pretende também requisitar, em nome da minoria, uma área em Nova Petrópolis, onde hoje está o Parque do Imigrante. Lá teriam se reunido os descendentes de imigrantes prussianos perseguidos pela Ditadura de Vargas, durante o Estado Novo. Depois virão as ONGs e as verbas oficiais liberadas através de emendas ao orçamento da União.

Kritter não se esquece de Platão: “A desgraça de quem não se interessa por política é ser governado por quem se interessa”.


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12.6.08

412 - Bebês e vovós



Foto: Wikipedia
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Bebês e vovós

Por Paulo Heuser


Que a educação anda em baixa, todo mundo sabe. Refiro-me à educação, aquela que se aprende em casa. Hoje confundem a educação com o ensino, aquele que deveria ser suprido pelo estado. As famílias tendem a entender que o estado deve educar seus filhos, enquanto o estado entende que as famílias devem instruí-los. Graças a isso, aqueles pequenos gestos de boas maneiras tendem a desaparecer. Cada vez menos gente cede seu lugar às mulheres ou às pessoas idosas, no transporte coletivo.

Em meio a essa falência comportamental, fui surpreendido pela prática adotada por um grande magazine âncora de shopping. Em todos os caixas, nos quais invariavelmente há filas, o atendimento prioritário é prestado aos idosos, às gestantes e às mulheres (homens?) com crianças de colo. Aí reside a novidade. Nas demais lojas, há apenas um ou dois caixas de atendimento prioritário. Naquela, são todos. Maravilha. As vovós e as mamães (papais?) não sofrem. Quem já ficou numa fila com uma criança no colo sabe do sofrimento que isto pode causar. A paciência deles é do tamanho da idade.

Entrei na fila do caixa, após escolher a mercadoria, e logo pude constatar que o esquema realmente funciona. Um jovem casal, acompanhado pela vovó, passou na minha frente. Justo e perfeito, pois o atendimento aos idosos deve ser preferencial. O apresentou terminal problema, obrigando-me a procurar outro caixa. Só havia uma pessoa na minha frente. Havia, pois chegou a moça com o carrinho de bebê. A operadora do caixa gentilmente explicou sobre a prioridade de quem se fazia acompanhado de criança de colo. A criança não estava no colo, mas tudo bem, pois efetivamente era uma criança de colo. Ser e estar, qual é a diferença, afinal? Minha vez seria a próxima. Seria, pois apareceu outra vovó. Regras são regras, justiça é justiça. Por isso, não reclamei quando apareceu outra criança de colo no carrinho, logo após a nova vovó. Paciência, quem mandou eu não ser ainda um ancião?

Da terra nascem as vovós, pelo menos naquela loja. Elas vinham de toda parte, do meio dos provadores, das araras, das prateleiras, do chão e do teto. Vi algumas saindo de um espelho! Alice envelheceu! Meu primeiro lugar na fila se transformou no segundo, eternamente. Só havia uma certeza. Se o próximo cliente não fosse uma vovó, seria um netinho dela, no carrinho de bebê. Pensei em protestar, mas soaria muito mal. Afinal, eu não era ancião, nem bebê de colo. Cheguei a desconfiar de que havia alguém alugando vovós e bebês, do lado de fora da loja, para quem quisesse atendimento preferencial.

Temi pelo fim da humanidade, pois havia nove vovós para cada netinho. Assim, não há pirâmide populacional que agüente. Lá pelas tantas, comecei a sentir vontade de ir ao toalete. Perguntei à operadora do caixa sobre a possibilidade de atendimento prioritário a quem estivesse apertado. Ela me disse que não. Perguntei-lhe sobre a prioridade de atendimento aos enfermos. Ela me respondeu que dependia da enfermidade. Comuniquei-lhe que eu molharia o chão da loja, caso não fosse atendido. Meio a contragosto, ela me atendeu entre duas vovós.

Quando sai do shopping, deparei-me com aqueles ônibus de excursão, fretados pela Sociedade das Damas da Terceira Idade de Trás do Cafundó. Vieram às compras.


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11.6.08

411 - A guerra das mamonas



Batalha de La Lys, Flandres
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A guerra das mamonas

Por Paulo Heuser


Em Santa Cruz do Sul havia um terreno baldio, de área de pelo menos um hectare, junto ao centro da cidade, entre as ruas Marechal Deodoro e Tomás Flores. Para uma criança, aquilo era uma selva cruzada por um rio. Hoje desconfio que o rio era o esgoto. O terreno estava coberto pela vegetação, com muitas árvores, entre infinitos pés de mamona. A altura da vegetação aumentava a sensação de imensidão, pois, uma vez lá dentro, não era possível enxergar os limites do terreno. Havia trilhas em meio à floresta, abertas sabe-se lá por quem.

Como nem tudo são flores no paraíso, havia também a disputa pelo controle do terreno. Duas turmas disputavam o controle sobre aquele latifúndio urbano. Cada turma construía seu esconderijo no meio da selva, longe das trilhas, de modo a dificultar sua localização pelo inimigo. As regras do conflito territorial não eram muito claras. Todos sonhavam com as armadilhas pavorosas, preparadas pelos nativos africanos do cinema, como aqueles troncos cheios de pontas que perfuram todo o inimigo, e acabavam montando armadilhas menos mortais, preparadas com o subproduto da digestão humana. Menos mortal, porém igualmente cruel. O cuidado com a segurança do esconderijo se explicava, pela ferocidade dos conquistadores, que destruíam completamente o reduto inimigo. Não sobrava pedra sobre pedra, ainda mais que não se utilizavam pedras, apenas madeiras.

Os combates diretos, entre os membros das duas turmas, não eram muito comuns, porém ocorriam. Eram lutas sangrentas. Guerras de mamonas. Quem nunca levou uma bodocada de mamona na orelha não pode imaginar a dor que causa. O sujeito passa a odiar biodiesel e óleo de rícino.

Numa linda tarde de sol, as duas turmas se defrontaram, na única parte do terreno que apresentava vegetação rasteira, e permitia a visualização direta do inimigo. Guerreiro calejado, eu consegui uma tampa de tonel de metal, para utilizar como escudo. Foi uma maravilha. Avançava agachado, em meio à saraivada de mamonas, ouvindo o som dos obuses vegetais atingindo meu fantástico escudo. O que faria, quando chegasse lá, não sei. Contudo, avançar incólume dava uma sensação de poder. Não cheguei até o inimigo, pois me esqueci de proteger as mãos, que seguravam a tampa do tonel. Lá pelas tantas, alguém mandou uma bodocada certeira que atingiu meus dedos. Foi o suficiente para que eu largasse a tampa, ficando a descoberto. Foi hora de bater em retirada, sem olhar para trás.

O terreno baldio deu lugar às casas e a um supermercado. Com o tempo, todos cresceram, viraram adultos, e têm apenas as boas recordações deixadas pelas rusgas em meio à selva santacruzense.. Memórias que nem o Alzheimer apagará. Outros, menos afortunados, lutam suas guerras de mamonas depois de adultos. Em comum, com aquelas crianças, têm apenas uma coisa. Não sabem o que fazer quando chegam lá. Quando ninguém lhes atinge as mãos, derrubando seus escudos, eles chegam ao reduto do inimigo, escudados pelos discursos de campanha. Então, não deixam pedra sobre pedra. Deixarão apenas as péssimas recordações.


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10.6.08

410 - A goiabada


Foto: Wikipedia
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A goiabada

Por Paulo Heuser


08h03 – O agente Souza deixa a lanchonete com dois cafés pretos e duas rosquinhas. Após olhar insuspeitamente para todos os lados, ele entra pela porta traseira da caminhonete, em cuja lateral se lê: “Grampos Souza”. O agente Barbosa aceita de bom grado o café quente.

08:37 – O agente Barbosa cutuca o ombro do semi-adormecido agente Souza e avisa que captou uma chamada. Apertou os fones contra os ouvidos e verificou se o gravador estava funcionando.

- Trimmm, trimmm, trimmm, triiiimmm. Click. Alô? – voz de mulher ruiva, jovem, vestindo blusa azul-marinho e saia plissada branca. Ah, calçando sapatos vermelhos de salto 11.

- Oi, bem! – voz de homem na meia-idade, usando óculos brancos da moda, vestindo roupão com emblema de spa, pantufas de Mickey e gorro de lã.

- Oiii... – is desvanecentes, como que sugerindo algo proibido.

- Você conseguiu? – voz de quem ajeitava os óculos.

- Ahã. Consegui.... – is prolongados em biquinho de boca com batom rosa.

- (inaudível) – o agente Barbosa fecha os olhos e aperta mais os fones contra seus ouvidos.

- Ahã. Até que foi barato. Ele tentou resistir, disse que não aprovava esse tipo de coisa, que feria a ética, e todo aquele lero-lero.

- Parece ingênuo, mas não é!

O agente Souza liga para o chefe e avisa que pegaram algo muito interessante. Tão logo puderem, enviarão a fita e a transcrição. No gravador, o papo continua:

- Ahã. Tive de jogar um charme nele, para conseguir. Ele insistia naquela babaquice da ética, que não podia, etc e tal.

- Babaca. – voz de impaciência – como é que você vai mandar a goiabada?

O agente Souza ri. Cada nome que inventam, para referir à muamba! Já vira de tudo. Ia desde “a coisa” até “aquilo”. Goiabada era coisa inédita. Nunca grampeara alguém que comprara “goiabada”.

- Acho melhor mandar numa mala.

- Mala? Boa idéia! Não dará na vista, especialmente num spa. – diz o homem, enquanto ajeita o cinto do roupão.

- É, ninguém suspeitará da mala, especialmente aí, aonde chegam e saem hóspedes a toda hora. Bem, vou providenciar a remessa. Vão entregá-la às 17h.

- Ok, beijo.

- Click.

08h52 – O agente Souza transcreve o diálogo e envia ao chefe.

09h11 – O chefe liga para o gerente e relata o ocorrido.

12h04 – Uma equipe deixa a cidade em direção ao spa. São oito agentes vestindo roupas ninjas, armados até os dentes implantados. Aquele sujeito conseguira se internar no spa, alegando estresse pós-audiência, mas não escaparia tão fácil!

15h30 – A equipe monta campana junto à entrada do spa. O agente Souza sai da caminhonete para procurar rosquinhas e café.

16h25 – O agente Souza sai para comprar mais rosquinhas e café.

16h29 – Dona Bianca, da lanchonete, começa a fritar mais rosquinhas.

16h55 – Os agentes colocam as toucas ninjas.

17h03 – O carro preto pára defronte a entrada de serviço do spa. Dele desce um homem de aparência suspeita, que abre o porta-malas e retira uma pequena mala preta. Dirige-se à entrada de serviço e dá três batidas ritmadas na porta. Quando a porta se abre, os agentes caem sobre ela. O motorista do carro preto alega ser apenas um mensageiro. Sua missão é apenas entregar a mala ao hóspede do 213. O funcionário do spa, que abriu a porta, logo confessa que aceitou propina para dar acesso ao motorista. Diz que sustenta a sogra doente. Uma moça ruiva, muito bonita, havia lhe entregue 50 reais para facilitar as coisas. Ele relutou, a princípio, pois se julgava um homem de bem. Porém, o desespero lhe tirou do bom caminho.

17h29 – O agente Pantoja, chefe da equipe, chama o esquadrão antibombas. Afinal, ninguém sabe o conteúdo da mala. O que seria a tal de “goiabada”?

18h43 – Chega o esquadrão antibombas. O especialista de plantão manda isolar o local. Coloca um anteparo de sacos de areia, ao redor da mala, e ordena que disparem contra ela. Diversos tiros depois, nada acontece. Pé ante pé, o especialista chega próximo à mala, para inspeção visual. Conclui não haver bomba. O ilustre hóspede do 213 tenta escapar de fininho. É impedido.

18h47 – Os agentes forçam a fechadura da mala e conseguem abri-la. Está repleta de goiabada. Com furos de bala, em alguns pedaços.

19h01 – O celular do hóspede ilustre do 213 toca. O agente Barbosa consegue interceptar a ligação:

- E aí, bem, chegou? Essa sua mania de comer montes de goiabada, mesmo no spa, ainda vai lhe render encrenca.


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7.6.08

409 - A grande certeza


Foto: Paulo Heuser
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A grande certeza

Por Paulo Heuser


A vida é cheia de dúvidas. O que virá após aquela curva, depois daquela esquina? Alguém ousaria um palpite? O Zé ousa, e arrisca. Os mais formidáveis cientistas do mundo ainda não têm certeza sobre o destino do Universo. Filosofam, conjeturam, observam, fazem cálculos, que nem eles mesmos conseguem entender, experimentam, mas não conseguem chegar a um veredito unânime, nem próximo disso. Seremos espalhados em todas as direções, eternizados num universo frio e escuro? Ou seremos comprimidos novamente na meleca primordial que levará ao Big Bang II, o Retorno? Alguém poderá dizer, um dia, que aquele átomo já foi seu, em outro Bang.

O Zé não é cientista. Porém, sabe exatamente o que está depois da esquina. O caminhão da verdura, estacionado em local proibido – aqueles com a placa do E coberto pelo X. Só há uma certeza no Universo. O caminhão da verdura estará lá, atrapalhando a odisséia do Zé. É isso, ida ao trabalho virou odisséia! O Zé chama aquela certeza de A Grande Certeza. Se ele consultasse o Oráculo de Delfos, sobre a única verdade universal, a resposta à pergunta seria apenas uma: o caminhão da verdura estará lá. Ele chega às sete e sai às oito. Faça chuva, faça sol, aquele caminhão estará lá, de segunda à sexta.

Aquele negócio abalou o sistema nervoso do Zé. Ele passou a sonhar com caixas de pepinos e rabanetes que caíam sobre ele. Um dia, perdeu as estribeiras e soltou o verbo. A resposta que obteve foi: “- Estou trabalhando!”. Acreditando que esta justificativa não era suficiente, Zé ligou para as autoridades competentes. Descobriu que só atendiam no horário comercial. Fora dele, apenas catástrofes, e caminhões de pepinos e rabanetes não se incluíam nessa classe. Isto explicava porque ele nunca vira um agente de trânsito abordando o caminhão da verdura estacionado em local proibido. A proibição virava as 24 horas, a fiscalização, não.

O Zé acabou consultando um profissional da saúde que trata das complexidades da mente humana - um médico de loucos, para não usar eufemismos. O Doutor Horta Rômbica é uma das maiores autoridades nas patologias mentais geradas pelo estresse do trânsito. Para manter prudente distância das patologias dos clientes, ele mora no consultório e chama telepizza. De outra forma, acabaria paciente de si mesmo.

O Doutor Horta ouviu pacientemente a narrativa da epopéia diária do Zé, que se debulhou em choro compulsivo. Falar do problema era uma experiência inédita. Até então, Zé sofrera sozinho, em silêncio. O Doutor Horta manteve aquele ar sereno de salvador do mundo, quando finalmente falou:

- Entendo. Por que você não muda seu itinerário até o trabalho? Pode parecer uma solução simplista, mas evitará essa tensão diária. Por vezes, nos envolvemos tanto com os problemas, que não enxergamos soluções simples.

- Eu já tentei, Doutor, mas as alternativas são piores. – Zé ainda se lembrava dos ônibus que transformaram o carro dele num cheddar processado de big mac.

- Então, deverá enfrentar o problema, procurando outras soluções. Já pensou em apelar para a imprensa, para o governo? – parecia tudo tão simples, quando dito pelo Doutor Horta.

Aquela consulta deu novo ânimo ao Zé. Ele mandou e-mails para Deus, o governo e a imprensa. Dois dias depois, viu a foto do caminhão da verdura estampada no jornal. Magna vendetta! Finalmente, algo aconteceria. Aconteceu, exatamente nada. A denúncia da reportagem foi soterrada pelos argumentos dos subjetivistas que entendiam que uma simples proibição de estacionamento não poderia impedir um cidadão de trabalhar. Mais objetivista, Zé insistiu junto às autoridades. Ele foi recebido por diversos assessores, secretários e lobistas. Novamente, nada aconteceu. O caminhão da verdura parecia colado àquele lugar.

Zé já havia quase desistido de desgrudar o caminhão de lá, quando foi surpreendido com um telefonema do gabinete de um parlamentar da oposição. Ele queria ouvir a triste história do Zé. Boatos sobre a conivência do governo com contrabandistas de rabanetes bolivianos espalharam-se rapidamente, chegando às comissões de inquérito. Ante a ameaça da convocação do embaixador boliviano para depor, o governo finalmente tomou uma atitude. Retiraram a placa.

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4.6.08

408 - Couve, farofa e tiro


Foto: Wikipedia
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Couve, farofa e tiro


Por Paulo Heuser


Quando eu era criança, acreditava ser americano. Não um americano qualquer, como os brasileiros, argentinos, bolivianos ou mexicanos. Um norte-americano, dos legítimos. Os filmes das sessões vespertinas nos induziam a esse pensamento. Os norte-americanos eram os bons, os mocinhos. Portanto, também éramos norte-americanos, pois éramos bons. Um exercício simples de lógica remetia a essa conclusão. Nossos inimigos eram os japoneses, os alemães e os índios. Essa crença se foi, junto com os filmes ufanistas onde os filhos do Tio Sam resolviam tudo à bala. Eles continuam resolvendo à bala, mas os inimigos mudaram de cara e de postura.

O pior aspecto em ser americano era acreditar que as coisas se resolveriam à moda de lá. As casas das revistas em quadrinhos não tinham cerca, e os bandidos se resumiam aos Irmãos Metralha, ao Mancha Negra e à dupla João Bafo de Onça e Zé Honesto, perfeitamente identificáveis pela aparência. Havia hidrantes vermelhos nas esquinas, que não eram roubados, e quem estacionava diante deles era multado. Nos filmes, quando era chamada, a polícia vinha. Bastava discar 911.

Hoje, muitos anos depois, me convenceram a almoçar a feijoada do Jacó. Já não me restava dúvida alguma, quanto à condição de não-americano. Se ainda houvesse alguma, teria se dissipado de pronto. Não pela feijoada, pois há tantos brasileiros lá fora, que já devem considerá-la prato genuinamente nova-iorquino. A última dúvida seria terraplenada pelo espetáculo improvisado do lado de fora do Jacó: um assalto com direito a tiro e ferido. O assalto em si, não espantou ninguém, pois se incorporou à rotina da cidade. O que mais me espantou, foi a reação dos clientes.

Em outros tempos, todos se jogariam sob as mesas, procurando evitar as balas perdidas. Hoje, não. Um freguês recostado à parede, com ares de quem havia avançado com gosto na feijoada, comentou, sem entusiasmo:

- Foi tiro. – bocejou longamente, enquanto falava.

Outro cliente, sentado à mesa junto à porta, concordou:

- Foi. O presunto está caído.

A mesma falta de entusiasmo, do outro, foi denunciada pela garfada deste na feijoada. Um grão de feijão tentou escapulir, gravata abaixo, mas foi interceptado a tempo, pelo golpe certeiro com a língua. Reflexo típico daqueles que já almoçaram muitas feijoadas e mocotós. Os anos de experiência ensinam.

- Morreu? – perguntou a morena de botas de cano alto, casaco roxo peludo e calça justíssima, que se servia de couve e farofa. Sequer virou-se, para perguntar.

- Não. Levantou-se, e está sangrando na perna. Está vivo, por enquanto.

Sentado ao lado da porta, o sujeito grisalho dos óculos redondos narrava o acontecido como se estivesse narrando uma partida de xadrez. Não emprestava emoção alguma à narrativa. O outro, encostado à parede, mudou de assunto, passando a olhar para a morena da couve com farofa. Analisou o norte do cano das botas e disse:

- Fulana, não vá muito na couve, senão engorda!

Do lado de fora, a vítima cansou de esperar pelo socorro, sabe-se lá de quem. Colocou uma toalha sobre o assento do carro e se foi, deixando uma mancha de sangue no pavimento.

O guardião da porta gritou para o Jacó, entre garfada e outra:

- Só não vá cobrar couvert artístico!

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2.6.08

Portal Sulmix - 5 Anos



O Portal Sulmix (http://www.sulmix.com.br/), para o qual escrevo, completa 5 anos de existência.

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407 - O Paranóico

James Tissot
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O Paranóico

Por Paulo Heuser


Não sobrará pedra sobre pedra, no dia do Juízo Final. Faltará mármore no Inferno, para tanta gente arder. Este seria um discurso de púlpito, antigamente. O fato é que os sermões mudaram com o tempo. Naquele tempo, em que os fiéis iam ao templo, o pregador subia ao púlpito e despejava a lava da culpa sobre eles, que saíam do templo rastejando em meio às cinzas do arrependimento. Até a esquina, bem entendido. Afinal, era domingo, dia de zerar as culpas e partir para outra. Havia dia e hora para ouvirem a reprimenda. Todos os presentes ficavam de olho no pregador, tentando identificar se o olhar dele se fixava em alguém, enquanto falava. Sabe como é, a carapuça sempre poderia servir.

O pregador de púlpito vem dando lugar ao pregador televisivo, que anda de um lado para o outro, enquanto prega. O olho no olho deu lugar ao olho na câmera. Talvez por isso haja mais referencias a um você, especificamente, que fez besteira ou deixou de fazer virtude. Aí reside a grande diferença entre o pregador de púlpito, com público reduzido, e o pregador de massa, que não vê seus seguidores. Para o do púlpito, basta o olhar. Para o das massas, há necessidade de personificar quem ele não vê. É você, dirá, mesmo sem nunca tê-lo visto.

Para o Paranóico, tanto faz. Ele sempre é o culpado, de púlpito ou de massa. O pregador sempre estará olhando para o Paranóico, e falando para ele. Ainda não se livrou da culpa pela expulsão do Paraíso. Sequer conheceu Eva, mas acredita que Adão pôs a culpa nele. Todo mundo crê que Caim matou Abel. Menos o Paranóico. Ele acredita que foi um agente da NSA, que teria envolvido Caim, plantando falsas evidências. Caim, por sua vez, teria dedurado o Paranóico para o pregador. O Paranóico toma o café da manhã enquanto o pregador olha para a câmera e grita: “- Você matou Abel!”. Pronto, o domingo do Paranóico azeda.

O Paranóico não almoça fora, pois crê que o governo, leia-se NSA, coloca substâncias alienantes da realidade na comida dos restaurantes. Deu no Arquivo X. Ele come somente determinados produtos orgânicos, que ficariam livres da terrível substância hefedrexedrina cis-halobárica, depois de convenientemente manipulados. Há somente dois alimentos nessa classe, a crucífera couve-flor e o não-crucífero ovo. Ambos devem ser cozidos levemente em água fervente, evidentemente, e embalados num pote hermético de plástico, cuidando-se para manter algum ar no interior da embalagem. O tempo de maturação necessário à destruição total da hefedrexedrina cis-halobárica é de quatro dias, quando a substância alienadora se transforma em um gás com forte e marcante cheiro de pum. O alimento estará próprio para o consumo. Consumo, apenas. Humano, seria exagero.

O Paranóico lê com satisfação as manchetes do dia. Pudera, o que tem saído nos jornais, sobre os infindáveis escândalos, fede mais do que o subproduto da conversão da hefedrexedrina cis-halobárica em gás de pum. Fedendo tanto, só pode ser orgânico. Só pode ser bom!


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1.6.08

406 - Uma questão de imputabilidade

Foto: Funai
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Uma questão de imputabilidade


Por Paulo Heuser



Quem é criminalmente imputável, afinal? Todo mundo que goza de perfeita saúde mental, não está sob o efeito de drogas, não é parlamentar, e foi civilizado. Este é o entendimento jurídico reinante. Ou seja, há bem mais inimputáveis do que se imagina. O grande problema é a convivência entre imputáveis e inimputáveis. Eles não devem habitar o mesmo ambiente, sob pena de alguém dar uns talhos no outro alguém, e livrar-se da encrenca. Os inimputáveis deveriam ficar fisicamente separados do resto da população - os imputáveis. Os detentores de cargos eletivos, que gozam de imunidade, ficariam confinados às reservas parlamentares. Os não-civilizados ficariam confinados às reservas indígenas, na companhia de membros de ONGs estrangeiras, representantes das madeireiras, garimpeiros, pesquisadores de laboratórios, guerrilheiros de nações amigas e vendedores de facões abençoados. Os inimputáveis que sofrerem das faculdades mentais, ou estiverem sob a influência de drogas, ficariam confinados ao mundo, às ruas, às praças e as suas casas.

Cabe aos imputáveis a percepção da condição de inimputáveis dos outros. Por isso, todo cuidado é pouco, ao passar por eles. Esta é uma regra de sobrevivência do mundo moderno. As mamães ensinam os filhos a evitarem aqueles sujeitos de aparência exageradamente rústica, que vêm pela rua, babando e sorrindo, com os olhos esbugalhados.

Haram pensa assim. Ele sempre foi favorável à manutenção dos não-civilizados em ambientes isolados. Somente quem compartilha da mesma ética, pode viver em comum. A convivência religiosa dos ditos civilizados não é nada, digamos, civilizada. Assim, fica difícil definir o que é civilização. Haram tem consciência desses problemas éticos, surgidos nos contatos com civilizações primitivas não-civilizadas. Eles não vêem a morte do outro como algo necessariamente ruim, desde que possam comê-los. Faz parte da sua natureza e das suas religiões. Suas relações com o ambiente também são diversas daquelas dos civilizados. Os inimputáveis não têm escrúpulos, em venderem as riquezas naturais das suas reservas aos imputáveis que convivem com eles. Os imputáveis, também não. Mais um motivo para viverem isolados – acredita Haram.

Terom é um otimista. Acredita que os não-civilizados têm apenas boas intenções. Eles deveriam ser ajudados a progredir aos patamares mais altos da civilização. Terom defende os missionários que se aventuram pelas reservas, catequizando e fornecendo a tecnologia mais avançada da civilização mais desenvolvida. Ele acredita na integração social do não-civilizado, através de empurrõezinhos na escala evolutiva. Forneçam-lhes tecnologia e eles saberão o que fazer com ela – este é o seu lema.

Não é de hoje, que Haram e Terom trocam farpas a respeito da conveniência do contato com os inimputáveis não civilizados. A rusga começou em 1938, quando Terom participou de um contato direto com um não-civilizado chamado Otto Hahn. Num gesto de boa vontade, mostrou ao sujeito o que acontecia quando se bombardeavam átomos de urânio com nêutrons térmicos. Deu no que deu. Acabaram construindo uma bomba atômica. Não é para isso que se transfere tecnologia aos primitivos. Haram defende a manutenção dos terráqueos na sua reserva planetária. Eles que façam bom uso dela.

Terom não desiste de tentar civilizá-los. Aparentemente, não aprendeu nada com seu primeiro fracasso. Continuou transferindo tecnologia, e os primitivos criaram o Orkut e o YouTube.

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