4.6.08

408 - Couve, farofa e tiro


Foto: Wikipedia
.
Couve, farofa e tiro


Por Paulo Heuser


Quando eu era criança, acreditava ser americano. Não um americano qualquer, como os brasileiros, argentinos, bolivianos ou mexicanos. Um norte-americano, dos legítimos. Os filmes das sessões vespertinas nos induziam a esse pensamento. Os norte-americanos eram os bons, os mocinhos. Portanto, também éramos norte-americanos, pois éramos bons. Um exercício simples de lógica remetia a essa conclusão. Nossos inimigos eram os japoneses, os alemães e os índios. Essa crença se foi, junto com os filmes ufanistas onde os filhos do Tio Sam resolviam tudo à bala. Eles continuam resolvendo à bala, mas os inimigos mudaram de cara e de postura.

O pior aspecto em ser americano era acreditar que as coisas se resolveriam à moda de lá. As casas das revistas em quadrinhos não tinham cerca, e os bandidos se resumiam aos Irmãos Metralha, ao Mancha Negra e à dupla João Bafo de Onça e Zé Honesto, perfeitamente identificáveis pela aparência. Havia hidrantes vermelhos nas esquinas, que não eram roubados, e quem estacionava diante deles era multado. Nos filmes, quando era chamada, a polícia vinha. Bastava discar 911.

Hoje, muitos anos depois, me convenceram a almoçar a feijoada do Jacó. Já não me restava dúvida alguma, quanto à condição de não-americano. Se ainda houvesse alguma, teria se dissipado de pronto. Não pela feijoada, pois há tantos brasileiros lá fora, que já devem considerá-la prato genuinamente nova-iorquino. A última dúvida seria terraplenada pelo espetáculo improvisado do lado de fora do Jacó: um assalto com direito a tiro e ferido. O assalto em si, não espantou ninguém, pois se incorporou à rotina da cidade. O que mais me espantou, foi a reação dos clientes.

Em outros tempos, todos se jogariam sob as mesas, procurando evitar as balas perdidas. Hoje, não. Um freguês recostado à parede, com ares de quem havia avançado com gosto na feijoada, comentou, sem entusiasmo:

- Foi tiro. – bocejou longamente, enquanto falava.

Outro cliente, sentado à mesa junto à porta, concordou:

- Foi. O presunto está caído.

A mesma falta de entusiasmo, do outro, foi denunciada pela garfada deste na feijoada. Um grão de feijão tentou escapulir, gravata abaixo, mas foi interceptado a tempo, pelo golpe certeiro com a língua. Reflexo típico daqueles que já almoçaram muitas feijoadas e mocotós. Os anos de experiência ensinam.

- Morreu? – perguntou a morena de botas de cano alto, casaco roxo peludo e calça justíssima, que se servia de couve e farofa. Sequer virou-se, para perguntar.

- Não. Levantou-se, e está sangrando na perna. Está vivo, por enquanto.

Sentado ao lado da porta, o sujeito grisalho dos óculos redondos narrava o acontecido como se estivesse narrando uma partida de xadrez. Não emprestava emoção alguma à narrativa. O outro, encostado à parede, mudou de assunto, passando a olhar para a morena da couve com farofa. Analisou o norte do cano das botas e disse:

- Fulana, não vá muito na couve, senão engorda!

Do lado de fora, a vítima cansou de esperar pelo socorro, sabe-se lá de quem. Colocou uma toalha sobre o assento do carro e se foi, deixando uma mancha de sangue no pavimento.

O guardião da porta gritou para o Jacó, entre garfada e outra:

- Só não vá cobrar couvert artístico!

Marcadores: , , , , , , , ,