2.6.08

407 - O Paranóico

James Tissot
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O Paranóico

Por Paulo Heuser


Não sobrará pedra sobre pedra, no dia do Juízo Final. Faltará mármore no Inferno, para tanta gente arder. Este seria um discurso de púlpito, antigamente. O fato é que os sermões mudaram com o tempo. Naquele tempo, em que os fiéis iam ao templo, o pregador subia ao púlpito e despejava a lava da culpa sobre eles, que saíam do templo rastejando em meio às cinzas do arrependimento. Até a esquina, bem entendido. Afinal, era domingo, dia de zerar as culpas e partir para outra. Havia dia e hora para ouvirem a reprimenda. Todos os presentes ficavam de olho no pregador, tentando identificar se o olhar dele se fixava em alguém, enquanto falava. Sabe como é, a carapuça sempre poderia servir.

O pregador de púlpito vem dando lugar ao pregador televisivo, que anda de um lado para o outro, enquanto prega. O olho no olho deu lugar ao olho na câmera. Talvez por isso haja mais referencias a um você, especificamente, que fez besteira ou deixou de fazer virtude. Aí reside a grande diferença entre o pregador de púlpito, com público reduzido, e o pregador de massa, que não vê seus seguidores. Para o do púlpito, basta o olhar. Para o das massas, há necessidade de personificar quem ele não vê. É você, dirá, mesmo sem nunca tê-lo visto.

Para o Paranóico, tanto faz. Ele sempre é o culpado, de púlpito ou de massa. O pregador sempre estará olhando para o Paranóico, e falando para ele. Ainda não se livrou da culpa pela expulsão do Paraíso. Sequer conheceu Eva, mas acredita que Adão pôs a culpa nele. Todo mundo crê que Caim matou Abel. Menos o Paranóico. Ele acredita que foi um agente da NSA, que teria envolvido Caim, plantando falsas evidências. Caim, por sua vez, teria dedurado o Paranóico para o pregador. O Paranóico toma o café da manhã enquanto o pregador olha para a câmera e grita: “- Você matou Abel!”. Pronto, o domingo do Paranóico azeda.

O Paranóico não almoça fora, pois crê que o governo, leia-se NSA, coloca substâncias alienantes da realidade na comida dos restaurantes. Deu no Arquivo X. Ele come somente determinados produtos orgânicos, que ficariam livres da terrível substância hefedrexedrina cis-halobárica, depois de convenientemente manipulados. Há somente dois alimentos nessa classe, a crucífera couve-flor e o não-crucífero ovo. Ambos devem ser cozidos levemente em água fervente, evidentemente, e embalados num pote hermético de plástico, cuidando-se para manter algum ar no interior da embalagem. O tempo de maturação necessário à destruição total da hefedrexedrina cis-halobárica é de quatro dias, quando a substância alienadora se transforma em um gás com forte e marcante cheiro de pum. O alimento estará próprio para o consumo. Consumo, apenas. Humano, seria exagero.

O Paranóico lê com satisfação as manchetes do dia. Pudera, o que tem saído nos jornais, sobre os infindáveis escândalos, fede mais do que o subproduto da conversão da hefedrexedrina cis-halobárica em gás de pum. Fedendo tanto, só pode ser orgânico. Só pode ser bom!


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