16.5.08

398 - Estertor de sexta-feira

Foto: Wikipedia
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Estertor de sexta-feira

Por Paulo Heuser


Essas coisas sempre acontecem nas sextas-feiras. Hoje tive que entrar num prédio público, logo cedo. Cheguei ao guichê, para identificação, quando reparei que havia algo errado por lá. Havia grande burburinho, com gente andando em todas as direções, alguns dando palpites para si mesmos. Um anão gritava “ó de baixo!”, desesperado. Rebobinando um pouco, reparei que, no lado de fora do prédio, três sujeitos em ternos pretos, estilo MIB, tentavam desesperadamente catar um táxi. Seguranças do prédio, provavelmente.

Fui atendido por uma moça que sequer olhou para a minha identidade. Ela me alcançou um crachá, de pronto, sem sequer questionar o motivo da minha visita. A moça tremia, e olhava para os sofás no canto do saguão. Lá estava o foco do burburinho, escondido pela protomultidão que adensava.

- Coitado! – gritou a moça trêmula.

A essas alturas eu já pude constatar que se tratava de alguém doente. Assalto não seria, pois nessas situações o pessoal costuma debandar, apesar da curiosidade tentar atraí-los feito magneto. Os mais curiosos tentariam entabular uma conversa com o ladrão, perguntando-lhe sobre a arma, se está nervoso, se a mãe dele sabe o que ele faz, etc. Mas, assalto não poderia ser, pois o que haveria para se roubar num prédio público? Formulários, guias de fila e carimbos?

O estertor veio forte, profundo, como qualquer estertor deveria vir. Veio do meio do burburinho, esclarecedor, pois denunciou se tratar realmente de alguém doente, muito doente. Estertores falam por si próprios. Quem os emite, inicia a viagem para o outro lado.

- Será que não dá para se chamar algum parente? – gritava uma senhora de cabelos azulados e óculos de gatinha.

- Nós já chamamos um táxi! – respondeu-lhe um dos três homens de preto.

O estrebuchante cessou os estertores, por um momento, para gritar, em voz profunda e rouca:

- Não, deixe-me morrer em paz! – e voltou a estertorar, para satisfação da protomultidão, que só fazia crescer.

Estranho. O sujeito queria morrer, ou teria construído mal a frase? A vírgula estaria mal colocada? As vírgulas dos moribundos por vezes se deslocam. Nisso os homens de preto vieram buscá-lo, pois o táxi chegou. Por que não chamaram uma ambulância? Call nine-one-one, recomendavam os cinéfilos americanófilos. Quando a protomultidão abriu um corredor, para a passagem dos homens de preto, pude finalmente ver a fonte dos estertores. Um homem jazia, quase que literalmente, sobre uma fileira de cadeiras. Aparentava 70 anos, e vestia-se de forma simples. Quando os homens de preto tentaram levantá-lo, o homem se agarrou às cadeiras, com unhas e dentes. A protomultidão gritava para que ele aceitasse ajuda. Estaria ele com medo das vestimentas pretas? Normalmente, quem vem salvar, está de branco. Eles acabaram arrastando o homem, com cadeiras e tudo, porta afora, seguidos pela protomultidão, ávida pelo último estertor. Quando chegaram ao táxi, o moribundo pôs-se de pé, furioso, repelindo os seus salvadores com violentos empurrões.

- Nós só queremos ajudá-lo! - disse-lhe um dos homens de preto.

- Que nada! – gritou o então ex-moribundo.

- Nós vamos levá-lo ao pronto-socorro...

- Sim, e eu perderei a única oportunidade de ganhar algum dinheiro!

- Como? – perguntou-lhe um dos homens de preto.

- Eu nunca ganhei dinheiro na vida! Eu quero meu auxílio-funeral!



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