397 - Qual é a cor dos meus olhos?
Herbert James Draper
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Qual é a cor dos meus olhos?
Por Paulo Heuser
O Zé andava numa fase atlética da vida, próximo da virada dos 40. Entre outras atividades, nadava milhares de metros por dia. Fizesse chuva ou sol, lá estava ele, junto à piscina. Após um minucioso alongamento, metia-se a dar braçadas e pernadas, intercalando quatro estilos e exercícios específicos para pernas e braços. Com o tempo, conhecia cada azulejo do fundo da piscina, quase os chamando pelo nome. Poderia sair da piscina e avisar ao responsável pela manutenção que “o Aurélio 72B está trincado!”. Zé já passara há muito daquela fase em que os novos nadadores contam chegadas (50m) usando as bóias da raia como ábaco. Ele já contava inconscientemente as chegadas, pelo menos 60 por dia.
As águas das piscinas ficam turvas, à medida que são utilizadas. Quanto mais gente houver, mais cara de xixi a água terá, até por contê-lo, às vezes. O Zé adorava as piscinas na primeira hora da manhã, especialmente aos domingos. Quem acordaria às sete da manhã de um domingo para ver azulejos passar? Apenas o Zé. Ele adorava sentar na borda da piscina e observar aquele mundo de água transparente, sem marola, lisa como um espelho. Ao deixar o corpo escorregar para dentro d’água, provocava aquelas primeiras ondas mecânicas, que batiam suavemente nas raias.
Era uma manhã de domingo, no inverno. Zé cumpriu o ritual de alongamento na piscina límpida e espelhada. Pôs-se a nadar crawl, estudando cuidadosamente cada movimento. Não havia nadado mais do que quatro chegadas, quando observou algo diferente na raia ao lado, enquanto fazia a virada. Parecia haver um pé n’água. Cinqüenta metros depois – era uma piscina de 25 -, pode observar que havia dois pés balançando n’água. Pés femininos, pelo tamanho e formato. A curiosidade não matou o gato, ou o Zé, no caso. Ele continuou firme, nadando na direção de uma meta abstrata, situada 2750 metros à frente. Na virada para os 300m, aqueles pés haviam ganhado um par de pernas torneadas. Deixando os 350m para trás, Zé observou que nada mais havia na raia ao lado. A surpresa fê-lo parar intempestivamente. Onde fora parar a sereia matinal dominical? A resposta veio em forma de uma figura esguia que executou uma perfeita largada, a partir da borda da piscina. Zé ainda pode observar o alinhamento correto dos braços e pernas. Ao invés de continuar nadando em frente, a sereia retornou à borda, emergindo ao lado do Zé. Ela ainda não havia vestido a touca, deixando à mostra os longos cabelos pretos, ajeitados rapidamente em forma de coque, enquanto cumprimentava o Zé com um sorridente “Oiiiii!!!”.
O Zé engasgou, frente àquela linda jovem que escancarava um sorriso de dentes perfeitos. O máximo que conseguiu externar foi um “Ãhm”. Os olhos da sereia hipnotizavam. Brilhavam intensamente, em tons verde-azulados. Ele mal notou o maiô colante que mal cobria o corpo da sereia. Os olhos dela fizeram-no sentir-se o Homero da Odisséia, encantado pelas terríveis sereias. Se houvesse mais alguém, além deles, naquela piscina, imploraria para que lhe amarrassem às raias, para não enlouquecer.
- Qual é a cor dos meus olhos? – perguntou-lhe a jovem.
- Ãhm... Bem, são lindos... – foi o máximo que ele conseguiu balbuciar.
- Sim, mas de que cor? – insistiu ela, encarando-o firmemente. Faria parte do feitiço? Ao responder à pergunta, ficaria eternamente preso na piscina? Nunca mais poderia ir ao vestiário?
- Er... Verde-azulados, creio eu... Lindos, para dizer a verdade...
- Oh, que bom! – ela exclamou, ampliando o sorriso divino. E continuou, após piscar os olhos encantadores:
- Significa que não perdi as lentes de contato. Esqueci de tirá-las antes de entrar na piscina. Valeu, tio!
A ex-sereia, agora sobrinha, deixou a piscina, cuja água pareceu subitamente gelada, com um impulso, em direção à escada do vestiário, de onde retornou após alguns minutos. O Zé nem se interessou mais pela cor dos olhos da nova sobrinha. Azuis, verdes, pretos, castanhos, que diferença isso faria, então? Aquela foi a última vez que ele entrou numa piscina, para nadar. Hoje se limita a molhar o corpo, agarrado à bóia em formato de cavalo marinho, rezando para que nenhuma jovem o chame de vovô. Pensa em jogar xadrez.
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