12.5.08

396 - A libertação


Desenho: Wikipedia
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A libertação

Por Paulo Heuser


Há poucos lugares no mundo que se transformam tanto quanto a Voluntários da Pátria. Nos domingos pela manhã, aquela loucura do comércio-formiga dos dias da semana dá lugar a uma calmaria quase interiorana. Onde há vendedores de vale-vale-vale-..., de segunda à sexta, nos domingos vê-se apenas famílias em trânsito, entre os terminais de ônibus. Os gritos de “fááááábca de calciiiiinhas”, ou corto cabelo e compro ouro, dão lugar ao silêncio. No lugar dos vendedores de Windows Vista tropicalizado, aparecem vendedores de algodão doce que migram para os parques.

Quem gosta de fotografar a arquitetura antiga do Centro, não pode perder a Volunta nos domingos pela manhã, quando a luz é boa e a calmaria permite fotografar e sair vivo, inclusive com a câmera, se tiver sorte e uma certa dose de juízo. Em frente à loja fechada, com a cortina cerrada, estava o Moisés. Não havia como não notá-lo. Ele destoava da multidão de esquecidos maltrapilhos. Um mendigo sentado na soleira da porta de uma loja fechada, não constitui cena rara. Moisés ocupava um dos cantos da porta, o que ajudaria muito na composição da foto, que poderia intitular-se “Cartões de crédito são bem-vindos”, pois a cortina metálica estava repleta de adesivos de propaganda de cartões de crédito. O que destacava o Moisés, era o coquetel de frutas. Ninguém espera ver um sujeito daqueles tomando um coquetel de frutas cor de rosa, na Volunta, em pleno domingo de manhã. Ele mexia freneticamente o coquetel com o canudo, enquanto lia um livro preto colocado entre as suas pernas. Os poucos passantes, muitos acompanhados de crianças, desviavam da figura estranha, passando rente à rua. Subitamente, Moisés gritou algo que pareceu “Corinthians!”. Isso explicava muito. Era um daqueles fanáticos por futebol que descera a ladeira da vida, após uma perda de campeonato.

Havia algo mais que chamava a atenção no Moisés: o livro preto. Era a Bíblia. Associando com o grito, concluí que o este seria “Coríntios” – o livro -, e não Corinthians. Uma senhora roliça que vendia frutas gritou: “Cala a boca, Moisés! Todo mundo tá cheio dessa história!”. Eu deixaria por isso mesmo, e seguiria meu caminho. Mas, não o Zé. Como ele adora uma encrenca, meteu-se a falar com a mulher da fruteira, pedindo detalhes sobre o Moisés. Lá veio outra lenda urbana. A mulher contou que o Moisés foi atropelado pelo ônibus de uma excursão de beatos, na antiga Rodoviária da Conceição, na década de 60. Moisés teve uma revelação, enquanto convalescia na Beneficência Portuguesa. Quando teve alta, com alguns parafusos a menos, outros tortos, ele passou a perambular pela Volunta, arrebanhando um contingente de maltrapilhos que seria libertado da cidade grande. Moisés fracassou, ao contrário do seu antecessor bíblico, o Moises (sem acento, para diferenciá-los).

Moisés até que tentou. Porém, quando se pôs em marcha, seguido pelos treze que compunham seu povo, em direção a Terra Prometida, além das ilhas do Guaíba, teve sua marcha confundida com uma passeata subversiva. Apanharam a rodo, acabando no xilindró. De nada adiantou Moisés ameaçar as autoridades com as Pragas do Guaíba. Foram fichados por vadiagem. As pragas acabaram vindo. Primeiro veio a de pernilongos, depois a da Borregaard, que encheu o ar da cidade com o cheiro de flatos, para não dizer que falei de algo pior. Os anos 70 trouxeram nova esperança, com os ventos da democracia. Moisés e sua trupe enquadraram-se na classificação de movimento social, e receberam autorização para empreenderem a longa marcha, não tão longa como a de Mao, desde que não obstruíssem completamente a rua. No caminho foram interceptados pelo fiscal do sindicato das empresas de turismo. Moisés foi autuado por não contar com o auxílio de um guia turístico credenciado, problema solucionado apenas no início dos anos 80. Uma das novas igrejas emprestou um guia. Lá foram os onze. Não eram mais treze, pois dois haviam morrido e um fora tentar a sorte no Nordeste. Restaram dez, mais o guia. Algo falhou, na tentativa de abrir as águas do Guaíba. Moisés nem chegou a tentar, pois o fiscal do meio ambiente o impediu. Preencheu papelada, daqui e dali, apresentou projeto de impacto ambiental, ISO 14001 e todas aquelas coisas, e nada. Não autorizaram Moisés a abrir as águas do Guaíba. Os sete restantes seguiram de ônibus, através das pontes. Dos onze, dois haviam se aposentado, um alistara-se na Legião Estrangeira e outro virara despachante aduaneiro, com toda experiência de preenchimento de formulários.

Passados 40 anos, finalmente chegaram a Terra Prometida, em Eldorado do Sul, para descobrirem que ela havia sido invadida pelo MST. Voltaram a pé, espalhando-se em todas as direções. Moisés ficou na Volunta, lendo repetitivamente as Cartas aos Coríntios. Durante a semana, perde-se em meio ao burburinho. Vez por outra, uma comiserada moça faceira, que sai de uma casa noturna, lhe dá um coquetel de frutas. Com canudinho.

Falei para o Zé que essa história era muito absurda. Ele ponderou, no entanto, que os detalhes a respeito da burocracia parecem bastante críveis. Tem razão.

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