16.7.08

426 - O despertar

Foto: Wikipedia
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O despertar
Por Paulo Heuser


Talvez seja apenas outra dessas lendas urbanas que contam histórias fantásticas e inverossímeis a respeito de mendigos. Esta conta a história do Nestor, atual personagem número 1 da Praça da Alfândega. Ele sucedeu o antológico Penúltimo Caudilho, que foi varrer os quartéis da Rua da Praia. A praça andou meio sem dono. Foi-se também aquela senhora volumosa que agenciava as moças faceiras. Foi-se também a inocência dos jogos de damas, nos tabuleiros da Capitão Montanha. Deram lugar ao informal Cassino Alfândega, ironicamente vizinho do grande cassino do Governo. No horário de lagartear, após o almoço, Peru Louco e Tio Funério reinavam absolutos. Porém, faltava alguém que tomasse conta da praça em tempo integral. Um residente, portanto.

Nestor foi se chegando, durante o ocaso do Penúltimo, faz uns três anos. Começou com o característico me-dá-me-dá. Desfia uma interminável súplica, digna de derrotar uma equipe de beatas disputando uma novena olímpica. Ele é um sujeito moreno e calvo, que reparte as atenções das suas duas mulheres, uma jovem, outra mais castigada pela vida na rua. Com o tempo, Nestor ficou. Morar nessa praça, apresenta vantagens. O povo que circula por lá é mais abonado, pertence à classe média média. São os melhores para dar esmolas. Sempre sobra um pouco, ao contrário do que acontece com os pobres, e o coração deles é um pouco mais mole do que o dos ricos. Especialmente o das mulheres que vestem taieur claro. Azul claro é o melhor. São as vítimas preferidas para o achaque do Nestor. Ele gruda ao lado delas, que tentam se equilibrar sobre os sapatos de salto alto, enfiados nas frestas daquele infame calçamento da praça. Dão qualquer coisa, para se livrarem dele. Assim ele toca a vida, provendo casa e comida para as suas famílias. A casa varia de lugar, conforme sopra o vento.

Agora, vamos à lenda. Ela reza que o Nestor foi um empresário de sucesso, que sofreu grave acidente, em 1985. Ele havia angariado tal capital, que já se permitia viver de rendas, sem necessariamente tricotar. Nestor estava de malas prontas para viver em Bombinhas, Santa Catarina. Praia pequena, calma, com natureza exuberante, muito diferente da badalação que destruía o paraíso da Ilha de Santa Catarina. Nestor havia investido pesado no mercado de telecomunicações. Ele comprou mais de cem linhas telefônicas, algumas por quatro mil dólares, para viver da renda do aluguel. Homem calejado, no ramo dos negócios, ele investiu outro tanto na compra de uma rede de locadoras de fitas de videocassete. O homem estaria garantido, até o fim dos seus dias.

Então, veio o acidente, e Nestor ficou em coma durante os 20 anos seguintes. O maior azar dele foi acordar, finalmente. Havia perdido a mulher, que juntou os trapos com alguém que não passava os dias e as noites dormindo. Foi assim, do nada, que Nestor se viu acordado. Da centena de linhas telefônicas, sobraram as contas pendentes. A rede de locadoras quebrou antes da virada do milênio. Os antigos amigos fugiram dele. Nestor foi previdente, e guardou um milhão de dólares. Numa conta em um banco argentino. Da ex-mulher só ouviu uma frase:

- Eu vou enchê-lo de formigas, num canteiro de urtigas! – gritava ela, enquanto lhe dava guarda-chuvadas a rodo.

Só e desiludido, Nestor se mandou para a sua nostálgica Bombinhas. Viveria feito hippie, na beira da praia. Voltou, a pé. E na praça, conquistou novos amores.


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18.6.08

414 - Atrasado!



Foto: Paulo Heuser
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Atrasado!

Por Paulo Heuser


Eu adorava sardinhas, quando criança. Não pelas sardinhas, pela lata. O atum relegou as sardinhas ao esquecimento. As pizzas de sardinha foram prato de todas as festas de aniversário da década de 70. Os rapazes levavam a bebida, as moças a comida. As mamães das moças preparavam pizzas de sardinha, invariavelmente, e os papais se livravam das bebidas que haviam recebido de brinde, seja quais fossem.

As latas de sardinhas vinham com aquela chave que pretendia facilitar a abertura. Era uma chave metálica que se encaixava numa aba, e permitia, em tese, que a tampa da lata fosse enrolada na direção de uma das extremidades. Já as pobres latas de atum, além de caras, apresentavam superfície lisa, quase desprovida de encaixes para o abridor. Para dificultar mais a abertura, sempre foram cilíndricas, exigindo que o abridor de latas ande em curva. Os abridores geralmente descarrilam. Algumas já contam com abertura através de um anel que, quando puxado, traz a tampa consigo.

As latas de sardinhas me causaram tamanho fascínio, que passei anos projetando um sistema de abertura instantânea, sem riscos à saúde. Descartei o canhão laser, pelos custos envolvidos. Deixei também de lado o rolo compressor, pois saía apenas purê de sardinhas. O modelo que chegou mais próximo da realidade foi um cortador, no formato da lata, que guilhotinava a tampa, de um só golpe. Naturalmente, tamanho e formato da lata deveriam se manter padronizados. Estava dando tudo certo. O equipamento era barato, de fácil operação, e de tamanho relativamente compacto, podendo ser afixado à parede. Então, veio o Collor. A segunda abertura dos portos, promovida por elle (sic), trouxe as latas de sardinhas portuguesas. Nada contra a nacionalidade delas. O problema foi o formato das latas, completamente diferentes das nossas. Depois, os pobres passaram a comer atum, graças à distribuição de renda do Lula. Atacado por direitistas, socialistas e portugueses, joguei a toalha. Desisti, pois cheguei atrasado. Meu invento foi natimorto. Não como mais sardinhas, e passei a odiar as latas.

As grandes corporações também chegam atrasadas. A France Telecom montou uma rede para acesso pago, sem fio, a Internet, cobrindo toda Paris, enquanto a prefeitura da cidade montava uma rede semelhante, com acesso gratuito.

Descobri que cheguei novamente atrasado. Investi nas eleições, tarde demais. Projetei postes telescópicos, que poderiam ser encolhidos até a altura de apenas dois metros, para facilitar a colocação e a retirada de propaganda eleitoral. Nos hiatos entre eleições, que não são tão longos assim, o sistema poderia abrigar a propaganda não-eleitoral. Todos ficariam felizes. Os candidatos poderiam colar sua propaganda sobre a dos outros, todas as noites. As gráficas operariam a plana capacidade. Alguém fabricaria e venderia os postes. As empresas de publicidade venderiam novos espaços. As prefeituras poderiam alugar os postes. Eu ficaria rico com a patente. Proibiram a propaganda eleitoral nos postes. Novamente, cheguei atrasado!

Não desisti, no entanto, de continuar inventando. A motivação veio de um grupo de sete miseráveis que aguardavam a morte, sentados sob uma marquise, nesta noite de frio glacial. Morrerão de frio, mas mantêm algum humor. O primeiro deu boa noite. O segundo pediu desculpas por darem boa noite, enquanto o último comentava que, de qualquer forma, eles não existiam. Como todo CSM – cidadão sem marquise -, passei olhando para o chão. Não é bom encarar a realidade. Percebi, então, por que as lojas passaram a colar propaganda sobre o passeio público. Todo mundo passa olhando para o chão, com se usassem um cabresto vertical. Foi então que nasceu meu novo projeto. São os OVU – Óculos de Visão Ufanista. Eles convertem a realidade local à realidade dos discursos. Esses óculos transformarão a passagem pelo Centro num passeio agradável, como se estivéssemos naquele lugar que os discursos políticos projetam. Através deles, veremos apenas marquises desabitadas. Não haverá caixas de papelão e cobertores sujos. Na Padre Chagas, os flanelinhas sumirão. Infelizmente, ainda não achei uma forma de sumir com os parquímetros. Os OVU eliminam apenas a imagem. O me-dá-me-dá-me-dá, permanecerá. Nada que um MP3 não resolva.

Sei que o produto tem tudo para se tornar um sucesso. Só temo chegar atrasado, novamente. Se o Brasil se tornar, finalmente, aquilo que nos vendem nos discursos, os OVU serão inócuos, inservíveis. Mostrarão a mesma agradável realidade que a visão a olho nu nos proporcionará. Assim, torço pelo atraso. Adoraria jogar os OVU fora. Porém, meu medo maior é da visão das ruas vazias, completamente desabitadas, através dos OVU, ao meio-dia, em pleno Centro, num dia comum da semana, apesar do ruído intenso.

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17.5.08

399 - Esmolcard

Foto: Paulo Heuser
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Esmolcard

Por Paulo Heuser


O Nestor pode ser mendigo, louco, incômodo e piolhento, porém não é burro. Como ele mora ao relento na Wall Street dos pampas, sabe dar seus pitacos, quando o assunto é dinheiro. Ele observou o pessoal pagando o engraxate de cadeira da praça, usando o cartão de débito. O engraxate tem uma daquelas máquinas paga pagamento com cartão, sem fio. Coisa de primeiro mundo. No Primeiro Mundo já conseguiram mandar todos os empregos ao Quarto Mundo, através da automação de todos os pequenos serviços. Dos assentos de vasos sanitários autolimpantes da Alemanha, aos hotéis de auto-serviço da França, tudo é automático. O Nestor viajou muito, antes de enlouquecer e optar pela vida franciscana na praça, com suas duas novas mulheres.

As esmolas vêm caindo, dia a dia. Caem em outro lugar, não na mão do Nestor. Ele percebeu o fenômeno, ainda mais depois que assumiu a segunda esposa. E ele conhece os culpados: os governos municipal e federal. O primeiro colocou os parquímetros, exigindo que o pessoal tenha moedas no bolso, o segundo substituiu as cédulas de baixo valor pelas moedas, colocando estas em circulação. Assim, quem tem moedas no bolso pensa duas vezes, antes de dá-las a um mendigo. Foram duros golpes na mendicância. As revoluções tecnológicas extinguem profissões, como as de digitador, caixa e mendigo. Nestor já andava pensando em alguma coisa, há algum tempo. Considerou até um investimento num parquímetro falso, de uso próprio. Colocaria o equipamento junto ao meio-fio, pela manhã, e contaria a féria após o expediente, ao retirá-lo.

Foi o pagamento do engraxate que lhe deu a luz à idéia do Nestor. Ora, um esmoleiro de talento, como ele, fatura mais do que o engraxate, além de não suportar custos fixos. Não compra graxa, jornal, nem qualquer outro insumo para exercer sua milenar profissão. Basta-lhe a cara de louco miserável que o destino lhe deu de graça. Quanto pior estiver vestido, melhor. O resto a comiseração faz. Se o engraxate pode ter uma máquina daquelas, por que não ele? O problema tem sido a aparência rústica, digamos, do Nestor. Conhecido como Senhor dos Piolhos, ele não conseguiu acesso a quem vende o serviço dessas maravilhosas caixas ambulantes sem fio. É uma pena, pois poderia lançar o produto Esmolcard, cartão múltiplo, de débito e descrédito. O cartão de débito é aquela coisa que todo mundo conhece. O cartão de descrédito, no entanto, é algo revolucionário. O portador do Esmolcard pode dar esmola parcelada, em até doze vezes, deixando de ser abordado pelo mendigo durante um ano. O mendigo receberá a esmola em parcelas mensais, o que lhe dará mais tranqüilidade quanto ao futuro.

Boas idéias não ficam escondidas. O flanelinha da esquina – aquele que faz rodízio de carros na área tarifada – gostou da idéia. Está cansado do pessoal que diz não ter troco na sexta-feira, prometendo dar algum no dia seguinte. Com o sábado e o domingo vem a amnésia. Na segunda, de nada se lembram. O Flanelcard está caindo de maduro. Nestor já está sendo cotado para a presidência do Sindesmola, agremiação de classe dos mendigos.

Nesta nossa sociedade tão marcada pela flexibilidade institucional, o governo copiou a idéia do Nestor. Porém, não deu muito certo. Criaram um cartão, mas pensam em substituí-lo, dando um salário mínimo ao portador. Por dia. Quanta miséria, dirão.


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12.5.08

396 - A libertação


Desenho: Wikipedia
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A libertação

Por Paulo Heuser


Há poucos lugares no mundo que se transformam tanto quanto a Voluntários da Pátria. Nos domingos pela manhã, aquela loucura do comércio-formiga dos dias da semana dá lugar a uma calmaria quase interiorana. Onde há vendedores de vale-vale-vale-..., de segunda à sexta, nos domingos vê-se apenas famílias em trânsito, entre os terminais de ônibus. Os gritos de “fááááábca de calciiiiinhas”, ou corto cabelo e compro ouro, dão lugar ao silêncio. No lugar dos vendedores de Windows Vista tropicalizado, aparecem vendedores de algodão doce que migram para os parques.

Quem gosta de fotografar a arquitetura antiga do Centro, não pode perder a Volunta nos domingos pela manhã, quando a luz é boa e a calmaria permite fotografar e sair vivo, inclusive com a câmera, se tiver sorte e uma certa dose de juízo. Em frente à loja fechada, com a cortina cerrada, estava o Moisés. Não havia como não notá-lo. Ele destoava da multidão de esquecidos maltrapilhos. Um mendigo sentado na soleira da porta de uma loja fechada, não constitui cena rara. Moisés ocupava um dos cantos da porta, o que ajudaria muito na composição da foto, que poderia intitular-se “Cartões de crédito são bem-vindos”, pois a cortina metálica estava repleta de adesivos de propaganda de cartões de crédito. O que destacava o Moisés, era o coquetel de frutas. Ninguém espera ver um sujeito daqueles tomando um coquetel de frutas cor de rosa, na Volunta, em pleno domingo de manhã. Ele mexia freneticamente o coquetel com o canudo, enquanto lia um livro preto colocado entre as suas pernas. Os poucos passantes, muitos acompanhados de crianças, desviavam da figura estranha, passando rente à rua. Subitamente, Moisés gritou algo que pareceu “Corinthians!”. Isso explicava muito. Era um daqueles fanáticos por futebol que descera a ladeira da vida, após uma perda de campeonato.

Havia algo mais que chamava a atenção no Moisés: o livro preto. Era a Bíblia. Associando com o grito, concluí que o este seria “Coríntios” – o livro -, e não Corinthians. Uma senhora roliça que vendia frutas gritou: “Cala a boca, Moisés! Todo mundo tá cheio dessa história!”. Eu deixaria por isso mesmo, e seguiria meu caminho. Mas, não o Zé. Como ele adora uma encrenca, meteu-se a falar com a mulher da fruteira, pedindo detalhes sobre o Moisés. Lá veio outra lenda urbana. A mulher contou que o Moisés foi atropelado pelo ônibus de uma excursão de beatos, na antiga Rodoviária da Conceição, na década de 60. Moisés teve uma revelação, enquanto convalescia na Beneficência Portuguesa. Quando teve alta, com alguns parafusos a menos, outros tortos, ele passou a perambular pela Volunta, arrebanhando um contingente de maltrapilhos que seria libertado da cidade grande. Moisés fracassou, ao contrário do seu antecessor bíblico, o Moises (sem acento, para diferenciá-los).

Moisés até que tentou. Porém, quando se pôs em marcha, seguido pelos treze que compunham seu povo, em direção a Terra Prometida, além das ilhas do Guaíba, teve sua marcha confundida com uma passeata subversiva. Apanharam a rodo, acabando no xilindró. De nada adiantou Moisés ameaçar as autoridades com as Pragas do Guaíba. Foram fichados por vadiagem. As pragas acabaram vindo. Primeiro veio a de pernilongos, depois a da Borregaard, que encheu o ar da cidade com o cheiro de flatos, para não dizer que falei de algo pior. Os anos 70 trouxeram nova esperança, com os ventos da democracia. Moisés e sua trupe enquadraram-se na classificação de movimento social, e receberam autorização para empreenderem a longa marcha, não tão longa como a de Mao, desde que não obstruíssem completamente a rua. No caminho foram interceptados pelo fiscal do sindicato das empresas de turismo. Moisés foi autuado por não contar com o auxílio de um guia turístico credenciado, problema solucionado apenas no início dos anos 80. Uma das novas igrejas emprestou um guia. Lá foram os onze. Não eram mais treze, pois dois haviam morrido e um fora tentar a sorte no Nordeste. Restaram dez, mais o guia. Algo falhou, na tentativa de abrir as águas do Guaíba. Moisés nem chegou a tentar, pois o fiscal do meio ambiente o impediu. Preencheu papelada, daqui e dali, apresentou projeto de impacto ambiental, ISO 14001 e todas aquelas coisas, e nada. Não autorizaram Moisés a abrir as águas do Guaíba. Os sete restantes seguiram de ônibus, através das pontes. Dos onze, dois haviam se aposentado, um alistara-se na Legião Estrangeira e outro virara despachante aduaneiro, com toda experiência de preenchimento de formulários.

Passados 40 anos, finalmente chegaram a Terra Prometida, em Eldorado do Sul, para descobrirem que ela havia sido invadida pelo MST. Voltaram a pé, espalhando-se em todas as direções. Moisés ficou na Volunta, lendo repetitivamente as Cartas aos Coríntios. Durante a semana, perde-se em meio ao burburinho. Vez por outra, uma comiserada moça faceira, que sai de uma casa noturna, lhe dá um coquetel de frutas. Com canudinho.

Falei para o Zé que essa história era muito absurda. Ele ponderou, no entanto, que os detalhes a respeito da burocracia parecem bastante críveis. Tem razão.

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5.6.07

Os Indianos e o Luis

* Mendigos, de Ignácio Mora

Publicada na Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 16/06/2007:
Os Indianos e o Luis

Por Paulo Heuser


Há quem diga que eu tenho fixação por mendigos. Pode ser verdade. Talvez eu tenha medo de me transformar num deles. Ou, talvez, não possa deixar de ler a mensagem implícita na imagem deles: algo está muito errado por aqui. Não só por aqui, diga-se de passagem. Como diz alguém que conheço:

- Grandes cidades são todas iguais, têm teatros, têm praças, têm monumentos e têm mendigos.

Verdade. Nem os cartões postais do Primeiro Mundo, como Paris e Roma escapam da chaga social. Lá se vêem verdadeiras favelas, basta andar pelos arredores. Tudo bem escondido do turista convencional. Mas estão lá, para quem quiser ver.

Hoje cruzei novamente pelo mundo dos indigentes, o Centro. Aí reside uma grande diferença entre o Primeiro e o Terceiro Mundo. Lá expulsam os indigentes para a periferia. Aqui, vivem no Centro. Ponto para os d’além mar, pois os turistas nada percebem.

Nas manhãs frias, como as deste outono, os habitantes desse mundo intangível, para nós que estamos do lado de cá da amurada social, tornam-se muito mais visíveis. Saúdam o nascer do sol como uma dádiva, enquanto discursam coisas sem sentido. Sem sentido para nós. Para eles, quem sabe? Comemoram o fim da longa noite. Vivos, ainda. Até a próxima noite. Uma mulher caminhava sem rumo, comentando que teria avisado alguém sobre a cortina, que não estaria bem alinhada. Insistia na tese de a ter avisado. Azar da outra, que não ouviu.

Ainda não entendo por que não exploramos economicamente o mundo deles, já que aparentam se transformar em maioria. Poderíamos criar slogans voltados àquela classe socioeconômica. “Hipovitaminose A? Tome Figadol, preparado com selecionados fígados de pombos de praça!”. Ou então, “Anemia, bócio? FerroIodil neles!”. Os ignoramos completamente porque não têm como nos pagar. Poderíamos aceitar lixo seco, por exemplo. Poderíamos trocar um frasco de Figadol por 147 latas de alumínio.

Até a classe política os ignora. Não votam, e, definitivamente, não são formadores de opinião, pelo menos no nosso mundo. No deles, não sei. Apenas os cães parecem gostar deles. E os cães de mendigos parecem felizes. São os vira-latas simpáticos, de olhar bondoso, aqueles que nunca aparecerão nas manchetes por atacar alguém. Dividem passivamente a miséria com seus companheiros humanos.

Há tentativas isoladas de comunicação intermundos. Percebi uma delas hoje de manhã, na praça. Um sujeito enrolado em um cobertor imundo gritava:

- Quando Nosso Senhor descer da cruz, os indianos reverenciarão o Luis Inácio Lula da Silva, nosso Presidente!

O que estarão gritando os miseráveis indianos?



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30.5.07

Atores da Vida Real


Atores da Vida Real

Por Paulo Heuser

Num mundo onde a miséria grassa, a mendicância tornou-se uma arte. Todo mendigo bem sucedido é um ótimo ator. Consegue exprimir dor e desespero como ninguém. Para superar a concorrência, apelam para efeitos dramáticos que toquem no fundo da alma das pessoas que ainda conseguem ser caridosas. Além dos verdadeiros mendigos, aqueles que foram jogados fora do nosso mundo social por deficiências físicas, mentais ou falta de competitividade social, há uma casta de fantásticos atores sociais especializados em subtrair algum de outrem.

O pedinte especialista conhece bem os segredos das artes cênicas. A começar pelo figurino. Roupas esportivas ou de vanguarda, mesmo quando sujas ou esfarrapadas, não causam boa (ou má?) impressão. Velhos ternos rasgados e pruridos dão melhores resultados, especialmente os de tamanho menor que o necessário. Calças e mangas curtas projetam humildade, condição necessária para despertar a comiseração.

A higiene pessoal também é fundamental. Devem parecer pobres, não sujos. Os muito sujos espantam os clientes pelo asco. Nada de perfumes, no entanto. Passarão uma imagem de perdulários. Perfume, bom ou vagabundo, é supérfluo. Os cabelos não podem se parecer com campos para criação de piolhos. Os curtos causam boa impressão. Nada de corte zero, porém, pois parece eliminação de pragas. Lenço no cabelo pega bem para as mulheres.

O toque pessoal deve ser evitado a qualquer custo. Ninguém gosta de ser tocado por um mendigo. Mãos espalmadas para coletar a féria também não fazem muito sucesso. O ideal é um prato ou bacia pequena. O prato sugerirá subliminarmente que as contribuições se destinarão à alimentação. Caso esta apareça em cena, apenas pão ou frutas, com exceção de abacaxis, cerejas ou morangos. Fruta de pedinte é banana ou, na melhor das hipóteses, laranja. O resto parecerá ostentativo, o que não é bom para os negócios. Sim, a mendicância é um negócio, como qualquer outro. Para o sucesso do empreendimento far-se-ão necessários a prospecção de mercado, planejamento estratégico, divulgação, e outras tantas coisas comuns aos negócios assim chamados de ortodoxos.

A escolha do ponto é fundamental. Os mais valiosos e disputados são aqueles ao lado de pontos turísticos e igrejas. Nesses locais o coração amolece e o bolso se escancara. Grandes catedrais são os pontos mais altos da carreira do mendigo de sucesso. Vi um rapaz defronte uma catedral que fatura grandes quantias todos os dias. Falta-lhe um dos braços, tragédia que se reverte um lucro, no caso. Um sujeito que trabalha, sem um dos braços, causa admiração, mas nada mais receberá do que um que tem os dois braços. Já na mendicância não. Quanto maior a deficiência, melhor será a féria, potencialmente. O rapaz da catedral ajoelha-se sobre uma almofada, frente ao templo, ficando imóvel, estático. Não fala, não geme nem suplica. O efeito cênico, no entanto, é impressionante. Chove moedas e cédulas a sua frente.

Também defronte uma catedral, havia um sujeito que deveria ser primo do Quasímodo, o Corcunda de Notre Dame. Era a imagem que eu fazia do Quasímodo, apenas um pouco menos torto. De resto, inclusive dos olhos se revirando nas órbitas, era perfeito. Outro sucesso de carreira.

A campeã absoluta é uma senhora idosa que se move como uma lesma, em câmera lenta, curvada sobre uma bengala. Um capuz esconde as partes superiores do rosto, deixando visível apenas a boca, que murmura palavras inaudíveis. O posicionamento em quadra é perfeito. À noite, estranhos fenômenos ocorrem, pois ela se desloca quilômetros, de um ponto turístico para outro.

Desconfio até que já existam cursos de especialização em mendicância, nas faculdades de publicidade e propaganda. Se os há, esses três serão mestres.





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