17.5.08

399 - Esmolcard

Foto: Paulo Heuser
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Esmolcard

Por Paulo Heuser


O Nestor pode ser mendigo, louco, incômodo e piolhento, porém não é burro. Como ele mora ao relento na Wall Street dos pampas, sabe dar seus pitacos, quando o assunto é dinheiro. Ele observou o pessoal pagando o engraxate de cadeira da praça, usando o cartão de débito. O engraxate tem uma daquelas máquinas paga pagamento com cartão, sem fio. Coisa de primeiro mundo. No Primeiro Mundo já conseguiram mandar todos os empregos ao Quarto Mundo, através da automação de todos os pequenos serviços. Dos assentos de vasos sanitários autolimpantes da Alemanha, aos hotéis de auto-serviço da França, tudo é automático. O Nestor viajou muito, antes de enlouquecer e optar pela vida franciscana na praça, com suas duas novas mulheres.

As esmolas vêm caindo, dia a dia. Caem em outro lugar, não na mão do Nestor. Ele percebeu o fenômeno, ainda mais depois que assumiu a segunda esposa. E ele conhece os culpados: os governos municipal e federal. O primeiro colocou os parquímetros, exigindo que o pessoal tenha moedas no bolso, o segundo substituiu as cédulas de baixo valor pelas moedas, colocando estas em circulação. Assim, quem tem moedas no bolso pensa duas vezes, antes de dá-las a um mendigo. Foram duros golpes na mendicância. As revoluções tecnológicas extinguem profissões, como as de digitador, caixa e mendigo. Nestor já andava pensando em alguma coisa, há algum tempo. Considerou até um investimento num parquímetro falso, de uso próprio. Colocaria o equipamento junto ao meio-fio, pela manhã, e contaria a féria após o expediente, ao retirá-lo.

Foi o pagamento do engraxate que lhe deu a luz à idéia do Nestor. Ora, um esmoleiro de talento, como ele, fatura mais do que o engraxate, além de não suportar custos fixos. Não compra graxa, jornal, nem qualquer outro insumo para exercer sua milenar profissão. Basta-lhe a cara de louco miserável que o destino lhe deu de graça. Quanto pior estiver vestido, melhor. O resto a comiseração faz. Se o engraxate pode ter uma máquina daquelas, por que não ele? O problema tem sido a aparência rústica, digamos, do Nestor. Conhecido como Senhor dos Piolhos, ele não conseguiu acesso a quem vende o serviço dessas maravilhosas caixas ambulantes sem fio. É uma pena, pois poderia lançar o produto Esmolcard, cartão múltiplo, de débito e descrédito. O cartão de débito é aquela coisa que todo mundo conhece. O cartão de descrédito, no entanto, é algo revolucionário. O portador do Esmolcard pode dar esmola parcelada, em até doze vezes, deixando de ser abordado pelo mendigo durante um ano. O mendigo receberá a esmola em parcelas mensais, o que lhe dará mais tranqüilidade quanto ao futuro.

Boas idéias não ficam escondidas. O flanelinha da esquina – aquele que faz rodízio de carros na área tarifada – gostou da idéia. Está cansado do pessoal que diz não ter troco na sexta-feira, prometendo dar algum no dia seguinte. Com o sábado e o domingo vem a amnésia. Na segunda, de nada se lembram. O Flanelcard está caindo de maduro. Nestor já está sendo cotado para a presidência do Sindesmola, agremiação de classe dos mendigos.

Nesta nossa sociedade tão marcada pela flexibilidade institucional, o governo copiou a idéia do Nestor. Porém, não deu muito certo. Criaram um cartão, mas pensam em substituí-lo, dando um salário mínimo ao portador. Por dia. Quanta miséria, dirão.


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