29.11.06

Assunto Pendente

Assunto Pendente

Por Paulo Heuser

Alguns dias começam como qualquer outro. Levantamos, tomamos banho, tomamos café e vamos trabalhar. Nada de excepcional até aí. Até que o telefone toca. Com o mesmo toque de sempre, apenas mostrando um número de telefone estranho, de alguma cidade do sul do Estado.

Trim... trim... trim...

- Alô.

- Vocês me ligaram ontem e estou retornando.

- Desculpe, com quem a senhora deseja falar?

- Com vocês mesmo. Disseram para retornar a ligação com urgência, pois era do meu interesse.

- Desculpe, minha senhora, deve se tratar de um engano, pois não ligamos para clientes a partir deste departamento, tenho certeza de que não ligamos.

- Disseram para o meu cunhado para eu ligar com urgência para esse número!

- Daqui não foi, minha senhora, tenho certeza.

- Mas, o que eu vou fazer? Alguém aí tem de resolver isso. Eu quero uma solução!

- Quem sabe o seu cunhado não anotou mal o número?

- Não, tenho certeza de que o número é este!

- Qual é o número que a senhora discou?

- É este mesmo...

- Sim, mas a senhora pode lê-lo para eu conferir?

- É... 0-código-da-operadora-código-da-cidade-five-five-five.....

- Bem, minha senhora, este não é o número daqui. Aqui é five-five-mais-fives....

- Pode ser, mas sei que ligaram daí. Eu quero resolver isso...

- A senhora é cliente?

- Cliente do quê?

- Da nossa empresa.

- Não sei de empresa nenhuma, mas preciso resolver isso logo, estou gastando muito, ligando do celular. Estou ligando de Cafundó da Baranga!

- Lamento, mas nada posso fazer para ajudá-la, minha senhora. Infelizmente não dispomos de um cadastro de não-clientes.

- Não pode olhar no computador e me ajudar?

- Não, minha senhora, mas vou transferir a sua ligação para nossa central de relacionamento com clientes duvidosos. Até logo!

Trim... trim... trim... De novo não! ... trim... trim...

- Alô!

- Moço, o senhor precisa me dizer o que querem comigo! Eu tenho de resolver isso logo!

- Mas eu já lhe disse, a senhora está ligando para o número errado. Ninguém lhe ligou daqui...

- Eu sei que foi daí, tenho certeza... Alguém tem de me ajudar a resolver isso logo!

- Resolver o que, minha senhora?

- Se eu soubesse, não estaria ligando, já estou desesperada!

- Se for tão urgente, lhe ligarão novamente.

- Como vão ligar, se você diz que não ligou? Quem vai resolver esse caso?

- Que posso eu fazer para ajudá-la? Realmente não sei mais o que...

- Vou eu saber, se foi você quem ligou? Eu exijo uma explicação.

Trim... trim... trim... trim... trim...

Não atendi mais o telefone, quando aquele número chamava. Ao final do expediente, voltei para casa, pensando naquelas estranhas ligações. Ela parecia tão aflita! Mas, o que eu poderia fazer? Cheguei em casa, ainda pensando no assunto. Ela provavelmente não dormiria esta noite, de tão apavorada com o assunto. Qual seria o assunto, afinal?

Trim... Trim... Trim...

- Alô.

- O senhor saiu sem resolver meu assunto. Ainda bem que me deram seu número de casa. Como é que vamos resolver isso? Eu preciso de uma solução!

E-mail: prheuser@gmail.com

28.11.06

Inimigo Oculto

Inimigo Oculto

Por Paulo Heuser

Alguns inimigos não anunciam o ataque, como os terroristas. Outros atacam conforme as fases da Lua, como os lobisomens. Alguns atacam sazonalmente, como os inimigos, digo, amigos secretos. Levam outros nomes, em outras paragens, como amigo oculto. Não sei de onde veio essa idéia, mas há quem defenda que surgiu de um costume escandinavo. Provavelmente quebravam crânios de inimigos para festejar o solstício de inverno, trocando-os entre si após os brindes: Skol! – Skal com uma bolinha sobre o “a” -, como os suecos tanto gostam.

Do primeiro amigo secreto ninguém se esquece. O meu foi um sujeito um tanto estranho, colega de trabalho. Eu estava na empresa fazia apenas uma semana, não conhecia ninguém, portanto. Cada um colocava seu pedido num quadro de avisos, facilitando a vida dos sorteados. Minha vítima pedia um par de meias brancas – barbada, né? – e, acreditem, soldadinhos de chumbo. Acabei comprando clones de plástico. Se ele gostou, não sei. Mas, quem pede algo como isso, pode esperar qualquer coisa.

Aí começa o problema dos presentes de amigos secretos. Estabelecem um teto de 10 reais e pedem um DVD duplo do U2. Acabam levando um CD da dupla sertaneja Camelo e Dromedário, em liquidação no balaião. A técnica é guardar os presentes, para dá-los a outrem, nos próximos amigos secretos, o que poderá até ocorrer no mesmo dia. Fica mais em conta desta forma. Também não se fica com o mico-preto na mão.

Criaram formas mais sádicas de amigo secreto, como o invertido, onde somente a vítima da vez ignora quem é seu amigo secreto. Os demais lhe passam dicas sobre o dito cujo, como: “tem a cara cheia de cravos e espinhas”, “a barriga cai sobre o cinto” ou “tem olhos de defunto”. O Amigo da Onça é outra forma menos inocente de homenagear os amigos. Nesta, se tenta constranger a vítima, lhe dando presentes que nada têm a ver, ou têm tudo a ver, com a personalidade da pessoa. Dão calcinhas de pompom para o machão da turma, que corre o perigo de deixar escapar um “oh, que luuuxo!”, mal disfarçado.

Assim como há quem goste das filas de churrascarias, lá pelas 14 horas de domingo, há quem goste de organizar os jogos de amigo secreto. Começam a planejar a coisa na Páscoa, para o Natal. Logo após o do Natal, planejam o da Páscoa. Já tentam criar uma variante chamada Eminência Parda, para o dia da República.

Considero a brincadeira de amigo secreto muito boa para as famílias grandes, pois traz uma economia importante nos gastos com presentes e facilita tremendamente as compras de Natal. As outras 47 festas de Natal, com amigo secreto, julgo dispensáveis. Não gosto tanto assim das lojas de 1,99. Dá para fazer uma lista grande das festas, tem a do trabalho, da escola, do clube, da pet shop, onde se trocam ossos, da garagem no centro, dos mendigos de rua. Na semana passada me convidaram para ingressar num grupo diferente. Cada participante dá um quilograma de alimento não perecível para o amigo sorteado. Lindo não é, dou um quilo de feijão e recebo um de farinha. Quando perguntei à pessoa sobre o que faríamos com os presentes, esta me fitou intrigada, como quem responde mudamente: “Ora, que burro, eu faço a feijoada, você a farofa”. Saí sem a resposta. E sem o feijão.

E-mail: prheuser@gmail.com

27.11.06

As Orelhas

As Orelhas

Por Paulo Heuser

Dizer que o ser humano é imperfeito, é chover no molhado. Vivemos além do prazo de garantia. Os ortopedistas não estão dando conta dos bicos de papagaio, hérnias de disco, e inúmeros outros problemas estruturais que o nosso corpo começa a apresentar quando ultrapassamos o tempo de duração projetado inicialmente. Ortopedistas são os mecânicos que tentam consertar mecanismos sem peças de reposição.

Recentemente, sofri um problema no pé e procurei o socorro de um ortopedista. Após receber estacionamento privilegiado, cadeira de rodas, empáticas atendentes sorridentes, formulários de todos os tamanhos, formatos e cores – nessa hora assinamos tudo sem ler –, encontrei o tão aguardado ortopedista. Considero desagradável quando alguém fala comigo sem me olhar nos olhos. O médico não cometeu tal indelicadeza, mas exagerou na educação. Eu esperava que ele olhasse um pouco para o meu pé inchado, um pouquinho que fosse. Educadamente, olhou apenas para os meus olhos, com toda atenção do mundo, enquanto me mandava para o setor de radiologia.

Lá, após a escada – sempre há uma escada –, uma sorridente e atenciosa técnica em radiologia me aguardava, para me bombardear com raios X, enquanto criava as posições mais criativas para se permanecer durante um minuto, até o clic que traz o alívio. Quem projeta os equipamentos radiológicos deveria levar em conta as articulações dos seres humanos, que apresentam certas limitações de movimentos, principalmente quando as articulações estão comprometidas. Após alguns movimentos de contorcionismo, e ginástica rítmica desportiva sem música, vem a recomendação fatídica: “fique completamente imóvel!”. Barbada, se a dor não fosse tanta. Segurei a tremedeira que se anunciava, graças ao medo de que o processo viesse a se repetir. Fiquei imaginado as notas dos jurados: “Originalidade – 9,3; Dificuldade: 10,0; Execução – 8,9”.
.
Após a tortura, voltei ao médico, que desviou os olhos dos meus pelo tempo suficiente para encarar a radiografia. Sem passar pelo pé abandonado, ele voltou a me encarar fixamente enquanto dava a sentença. Poderiam ter uma pessoa apenas para olhar o pé e comentar: “Nossa, que pé mais inchado! Está doendo muito?”. Daria conforto psicológico.

Pés à parte, as orelhas incomodam. Ou porque são de abano, ou porque atrapalham os fones de ouvido. É impressionante o número de pessoas que usa fones de ouvido, seja no trabalho, seja na rua. Há fones com design mais arrojado, prateados, que emprestam um visual Jornada nas Estrelas aos usuários, notadamente aos que estão completamente calvos. Alguns são, a maioria está. Virou moda raspar a cabeça. As orelhas incomodam porque não são padronizadas, dificultando o projeto dos fones.

A evolução darwiniana trará algumas modificações, tardias para nós, como as juntas universais, no lugar das limitadas articulações. Os cabelos desaparecerão de vez, já que raspam os poucos que lhes restam. Os cabeleireiros poderão se transformar em grafiteiros de calvas. As orelhas deverão dar lugar aos acopladores acústicos padronizados pelo IEEE. Os ortopedistas terão olhos com movimentos independentes, um olhando para os olhos do paciente, outro podendo olhar para o pé.

E-mail: prheuser@gmail.com

24.11.06

Infortúnio dos Afortunados

O Infortúnio dos Afortunados
Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 27/11/2006
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=65743&intIdEdicao=1017

Por Paulo Heuser


“Não é reduzindo o salário dos parlamentares que vamos compensar o salário de todas as pessoas que recebem o mínimo.” – elucidativa manifestação de um nobre representante do povo na Câmara Federal. A tese defendida pelo nobre representante é a de que o acréscimo representado pelo aumento do salário dos congressistas, que passaria de R$ 12,8 mil para R$ 24,5 mil, nada representa, quando comparado com a soma dos vencimentos daqueles que percebem o salário mínimo.

Pobres parlamentares, eternamente incompreendidos pelo povo que lhes outorgou o poder de legislar em nome de outros, não propriamente daqueles que lhes conferiram este poder. O que poderia esperar esse povo – esse de distante – se os conduz repetidamente ao Congresso, apesar de tudo que se vê, se ouve e se lê? Isto quando se lê, já que esta capacidade funcional foi subtraída da maior parte da população. Se não bastasse a incompreensão por parte dos seus representados, soma-se a de algum colega de infortúnio que se levanta, incompreensivelmente, contra o mais do que justo aumento. Será um louco travestido de São Francisco de Assis? Logo às vésperas do Natal? As compras de dezembro só aparecerão na fatura do cartão no ano que vem.

O infortúnio dos nobres representantes do povo não cessa por aí. Há incompreensão também por parte da imprensa internacional. O Jornal El Pais, da Espanha, publicou matéria com o título: “La fortuna de ser diputado” – A sorte de ser deputado -, em 15 de novembro de 2006, a respeito da situação econômica invejável dos deputados brasileiros, na opinião daquele periódico. Como alguém que vive num continente como a Europa vai poder julgar se R$ 8,3 mil por mês para pagamento de passagens é um exagero? Sabem lá eles o que é voar nos céus brasileiros nos dias de hoje? Emoção comprável através do cartão de crédito. Poderá um espanhol dizer que R$ 92,9 mil mensais, acumuladas todas as benesses que cominuem o sofrimento parlamentar, é um rendimento exagerado? O artigo de El Pais menciona um manual de 330 páginas que explicaria como utilizar os cerca de 180 serviços oferecidos pelo Congresso aos seus infortunados membros.

Fico a imaginar como seria o MBP – Manual de Benefícios do Povão. Um planejamento econômico de como se deve gastar R$ 350 por mês. Discute-se o novo mínimo, que será de R$ 367, pela proposta do governo. Colocados lado a lado, o manual do congressista e o MBP, comporiam um díptico hiper-realista entre a boa fortuna e o infortúnio.

Afortunados somos nós, pois além dos inestimáveis serviços prestados pelo Congresso, contamos também com os serviços prestados pelos bombeiros. Quanto perceberá um bombeiro, que arrisca diariamente a própria vida para salvar a vida dos usuários do estranho díptico formado pelos dois manuais?

E-mail: prheuser@gmail.com

22.11.06

Destruição em Massa

Destruição em Massa

Por Paulo Heuser

Encontrei uma bela oferta de computadores de boa marca. Nada parecido com aqueles montados no fundo de quintal utilizando pedaços de origem duvidosa. Coisa boa mesmo, lá da terra do Tio Sam. Não estava procurando um, mas quando abri hoje o jornal, deparei-me com um anúncio realmente tentador.

Coisa maravilhosa a configuração de um equipamento através do sítio do fabricante na Internet. Basta escolher um modelo básico e adequá-lo às minhas necessidades, e ao meu bolso. Escolhidos modelo, processador e memória, fui aos outros dispositivos. Rede sem fio, monitor, etc.

Tenho de dar a mão à palmatória, a venda pela Internet é uma realidade. Após meia dúzia de minutos, estava com um equipamento especificado e orçado. Colocá-lo no carrinho virtual, foi apenas um clique adicional. Veio então o momento do preenchimento do cadastro. Nome, endereço, CPF e duas perguntas sobre o uso do equipamento. “Qual o tipo de pessoa e/ou usuário final a quem se destina este produto?”. Algumas opções de respostas à pergunta. Haveria opções para usuário doméstico, escritor de asneiras, pessoa física, contribuinte, ou similar? Não, havia opções para governos, militares ou polícia. Ainda bem que havia uma opção para “outros”. Certamente sou um “outro”. Contribuinte, mas “outro”. Estranho, solicitei a configuração de um equipamento para uso doméstico e me perguntam sobre usos policiais ou militares. Tudo bem, não me importa ser um “outro”.

A segunda pergunta: “Qual é o uso final ou propósito de utilização deste produto?”. A primeira opção, aeronaves, não serviria. Em se tratando de um portátil até daria para entender, mas usar um desktop a bordo de uma aeronave não é muito prático, nem cômodo. “Aeromoça, há uma tomada 120 V AC disponível na minha poltrona?”. É meio pesado para ser carregado. No colo, não se ajeita bem. Não servindo a opção, fui à próxima. Céus! Era “Armas biológicas”! Confesso que já produzi chucrute em casa, mas não utilizei o computador para fazê-lo.

Juro que não entendi. Entendi menos ainda quando vi as próximas opções, incluindo “Armas de destruição em massa” e “Armas químicas”. Será que o Saddam andou jogando essas máquinas nos curdos? Verifiquei novamente se havia entrado no sítio correto, poderia ser alguma pegadinha. Ou, então, teria entrado por engano no sítio www.mercenariodomestico.com.br. Não, tudo estava correto.

Pelas perguntas a mim feitas, sobre a utilização do equipamento, dá para se ter uma noção do perigo que o usuário doméstico representa à maior potência do mundo. A Dona Maria se transforma, de pacífica professora, em uma terrível projetista de armas de destruição em massa. Só se fizer a massa com ovos estragados. Aí teremos uma pestilenta destruição com a massa. Arma química também, por que não?

A indagação que me fiz foi sobre o que aconteceria se eu respondesse à pergunta com a opção das armas de destruição em massa. Em segundos, peruas – carros, não dondocas – GMC pretas estariam cercando meu prédio, despejando agentes MIB – Homens de Preto – da CIA e de alguma agência de segurança secreta, cuja existência é ignorada até pelo chefe. Antes disso, um furgão com os vidros opacos estaria parado nas proximidades, tripulado pelos agentes que comem pedaços de pizza regados com copos de café aguado, disfarçados de técnicos em telefonia. Estariam esperando pelo meu Enter, o fatídico Enter.

Entendo que os terroristas e agentes de destruição em massa, a serviço de qualquer bandeira, não agem em sã consciência. Contudo, alguém responderia com aquela opção, àquela pergunta, mesmo em insana inconsciência? As empresas tio-sâmicas que exportam para as repúblicas bananescas necessitam psiquiatras bélicos para compor os formulários de vendas. Se o comprador responder afirmativamente à pergunta das armas, e negativamente à outra, subliminar, sobre o gosto do mel de cactos, teremos um sério problema de segurança nacional. Algo que mereceria um Defcon-3 (Condição de Defesa), por baixo. E de nada adiantaria a Dona Maria alegar que procurava uma receita de massa no sítio da revista Dela, publicação voltada às professoras com dupla jornada.

Há outras opções interessantes, em resposta àquela pergunta, como “Tecnologia de míssil” e “Nuclear”. A Dona Maria sempre poderá jogar “SimScud” e “SimNuc”, revolucionários e educativos passa-tempos de simulação de holocausto nuclear. Novamente há uma opção “outros”. Certo, serei um “Outro/Outro”, a mais outra das espécies de outras pessoas. Não apenas um mero “outro/outro”. Mas, e se, apenas e se, meu dedo escorregar no camundongo apontador e eu escolher alguma daquelas opções cataclísmicas? Algum crime contra a humanidade? Faltou apenas o conjunto “Hecatombe” e “Aquecimento Global”.

Só de pensar, me treme a mão. Melhor não arriscar. Minha opção pacifista de “Outro/Outro”, não declarado, me fez economizar um bom dinheiro. Afinal, o velho pacifista ainda me atende, mesmo sem tanta grife. E não exige declarações de intenções.

E-mail: prheuser@gmail.com

18.11.06

Aqui Fala o Seu Presidente

Aqui Fala o Seu Presidente

Por Paulo Heuser


Trimmm...

- Alô!

- Boa tarde! Aqui fala o seu Presidente.

- Droga, aquela gravação novamente!

- Isto não é uma gravação, estamos conversando ao vivo!

- É um trote, então. Vá incomodar outro.

Trimmm....

- Alô!

- Boa tarde! Aqui fala...

- Você, de novo!

- É que a ligação deve ter caído...

- Caído não, eu desliguei na sua cara mesmo, como fiz das outras vezes em que me ligou a esta hora!

- Mas, aquelas eram gravações, meu senhor, agora sou eu, ao vivo!

- Ao vivo, às 11 da noite, nem lobisomem.

- Hora não é algo que realmente existe para um presidente. Trabalhamos 24 horas por dia, sete dias por semana...

- A eleição já passou, está pedindo voto para o quê? Rainha da primavera?

- Esta eleição passou, mas outras virão, em breve. E, não posso me descuidar um minuto sequer. Na verdade, estamos sempre em campanha.

- Que história é essa de boa tarde, se a noite já vai longe?

- É da gravação...

- Espere aí, não era ao vivo?

- É, mas tem a força do hábito...

- Diga de uma vez o que quer, pois quero voltar a dormir.

- Queria contar novamente com o seu voto.

- Como novamente, e qual voto? Eu nem votei em você!

- Nossa pesquisa interna indica que 83,7 por cento da população dessa cidade votou em mim. A probabilidade de o senhor ser um dos meus eleitores é muito grande. Ainda mais que minha gravação tocou aí na sua casa em duas ocasiões.

- Tocou nada, tentou tocar. Desliguei, de raiva, e não votei em você porque me acordou duas vezes. Esta já é a terceira!

- Não compreendo por que o senhor reluta em admitir que votou em mim, mas os números não mentem, são desapaixonados, frios mesmo, e têm um intervalo de confiança bem confiável.

- Confiável é a descarga da minha latrina! Para lá que vai o voto de quem me liga enquanto durmo.

- Não se exalte, senhor, não precisamos brigar. Eu apenas lhe peço que ouça o clamor popular dos 83,7 por cento da sua pessoa que querem desesperadamente me honrar novamente com o seu sufrágio.

- Por mim, será o seu naufrágio!

- Meu eleitor, é até de se esperar que alguns cidadãos relutem em aceitar o inevitável. Mas, dar ouvidos apenas aos 16,3 por cento da sua pessoa que insistem em se opor a minha proposta, convenhamos, não é nada democrático.

- Por acaso é democrático acordar um trabalhador a esta hora, para pedir voto de uma eleição que já passou?

- Meu relutante eleitor, a democracia está presente em cada minuto, em cada segundo, da nossa vida. O fato de a eleição, essa eleição, ter passado, em nada diminui o clamor popular pela próxima. Logo a próxima já será esta eleição. Enquanto isso, tudo farei para não trair a confiança que o senhor depositou em mim, através do seu voto.

- Pare de insistir nessa tese, eu sei em quem votei, e não foi em você!

- Seja como for, Seu Armando, quero deixar um grande agradecimento, em meu nome, do meu partido, dos partidos aliados, e da minha nação.

- E agora, quem é esse tal de Armando?

- É o senhor, Seu Armando...

- Não sou Armando! Deve ser um engano, como tudo nesta história!

- Ora, Seu Armando, quanta resistência, saiba que a nossa pesquisa interna indica que existe uma probabilidade de ....
.
Click...

- Alô, alô? Seu Armando?

Das Mentiras

Das Mentiras

Por Paulo Heuser

Abri uma embalagem de refil de lâminas de barbear. Refil – não há um não-anglicismo que substitua esta palavra? O Aurélio traduz como “que substitui o que se gastou”. Pois bem, abri uma embalagem do que substitui as lâminas de barbear que se gastaram e... Espere! Embalagem - um galicismo! Invólucro, então, por que não? Latinismo pode, não pode? Veio tudo de lá mesmo. Finalmente, abrindo um invólucro do que ... que se gastaram, descobri que havia apenas duas lâminas num cassete (de novo não!), digo, estojo para cinco. Certo, não posso me queixar, havia um pequeno aviso, realmente pequeno, “contém duas lâminas”. Portanto, não é uma mentira. Antes, uma pequena, põe pequena nisso, verdade. Os homens de marketing, digo, mercadologia,... Aberto longo parêntese.

Indo à mercadologia, no Aurélio, tropecei na maromba. Sim, na maromba se tropeça. Pelas outras palavras se passa, por algumas, ao largo. Pela maromba não se passa, ela evoca algo tão intenso que nos faz tropeçar. Enchemos a boca para dizer maromba. Esta não deveria aparecer em nenhum início de frase, apenas no final, no grande final – olhe a tentação. O que os funâmbulos e arlequins utilizam para se equilibrar, sobre a maroma, é a maromba. Com ô bem tônico, tão tônico como o ô do próprio tônico. Arabismo fantástico a maromba.

Eis que chega a hora de fechar parêntese, após tão longo interregno, que cruza parágrafos. Fechado, continua a mentira – Os homens de mercadologia são mentirosos por formação e por ciência. Nos levam a comprar aquilo de que não precisamos. E colocam apenas duas lâminas no espaço para cinco. Qualquer dia, lhe venderão latas de cerveja com dois quintos de 355 ml. O homem social é um mentiroso. Se não o fosse, tornar-se-ia insuportável. Os eufemismos e as mentiras fazem parte das relações sociais. Os excessivamente sinceros são chatos, e machucam as pessoas das suas relações. Ao plenamente sincero falta a empatia. O empático se força ao uso dos eufemismos e das verdades fracionadas. Sim, genericamente fracionadas, pois não há apenas as meias verdades, há também os terços, quartos, oitavos e infinitésimos da verdade. O empático fraciona a verdade com arte e maestria, próprias daquele que consegue se colocar no lugar do outro. É o bom mentiroso? Nem sempre. Há o lado negro da empatia, exercido pelos mercadologistas (marketeiros?), pelos políticos e pelos profissionais que defendem o indefensável. Os primeiros e os terceiros estudam a arte da engambelação. Os segundos engambelam o útero e nascem engambelando a todos que se seguem. Narcisistas, se não patológicos, andam pelas fronteiras da normalidade. É um dom que lhes foi concedido. Dizer se exercem o lado branco, ou o lado negro, da empatia é uma questão de identificação do lado no qual nos encontramos, ou que nos ausentamos, politicamente. O fato é que os aceitamos, institucionalmente. Como também aceitamos a prostituição, suprema arte da mentira do orgasmo improvável.

Se um dia me entrevistarem, para um daqueles retratos de perfil pessoal, e me perguntarem sobre a minha palavra preferida, da língua portuguesa, responderei com um arabismo: maromba. Sem engambelação, pois da maromba – a vara – me valho diariamente para andar sobre a maroma – a corda bamba.

E-mail: prheuser@gmail.com

17.11.06

George de Tróia

George de Tróia

Por Paulo Heuser

A história se repete. Os chineses construíram aquela muralha de 3000 km, a partir de 220 AC. Agora o George W. vai construir a sua, de 1100 km. Sinais de que a insegurança não é assunto novo, mas continua atualíssimo. Os aglomerados humanos se transformam em condomínios, de todos os tamanhos. Também não é fato novo. As cidades milenares ainda apresentam resquícios das amuradas, que protegiam reis e cortes. Mais ou menos como hoje. Surgem novas Tróias diariamente, por todos os lados.

Há Tróias para uma só família, Tróias coletivas e novas cidades de Tróia. Belo nome para o novo condomínio: Residencial Nova Tróia. Na portaria, um aviso: “Não aceitamos cavalos, favor não insistir!”. Razões para tal aviso não faltaram. Um condômino chamado Páris andou levando a Dona Helena, mulher do Seu Menelau do Armazém Esparta, para dentro do condomínio. Deu o maior banzé. Páris era filho do síndico, Seu Príamo, que proibiu o descornado Menelau de adentrar muros, para buscar sua infiel Dona Helena. Nas atas das assembléias do condomínio, redigidas por um tal de Ulisses, da Imobiliária Ilíada, consta algo sobre uma invasão protagonizada pelo compadre do Seu Menelau, de nome Odisseu. Simulando uma tele-entrega de filé, a cavalo, o homem invadiu o condomínio e promoveu o maior quebra-quebra. De nada serviram os imensos muros.

São apenas histórias, mas servem para ilustrar a relativa fragilidade das muralhas. Soube do caso em que um ladrão chamado Aníbal levou o portão automático de uma casa, enquanto a dona gritava desesperadamente: “Aníbal às portas!”. Voltou no dia seguinte, para levar a cerca de grades de ferro.

Pois agora o Rei George W., que não é o da floresta (George of The Jungle, 1997), resolveu cercar seu condomínio, com o amém da assembléia, convocada com primeira chamada às 20h30 ou após a novela, o que ocorrer depois. Coisa de seis bilhões de dólares ou um milhão de Steve Austin – O Homem de Seis Milhões de Dólares –, bem inflacionados, diga-se de passagem, tanto os dólares como o Steve. Imagino a cara dos condôminos, quando George W. cobrar a chamada extra. Tudo para impedir que o pessoal do Condomínio Asteca, ao lado, venha trabalhar lá. Também quero ver a cara dos condôminos, quando tiverem de contratar diaristas e serventes com carteira assinada, de dentro do próprio condomínio. Vão chiar, pois os neotroianos não gostam de sujar as mãos. Nem de pagar os encargos trabalhistas. Para o trabalho sujo há máquinas, e astecas. Já estão pensando em trocar o nome da entrada do condomínio, de El Paso para Checkpoint Charlie. A rua que dá acesso ao portão será a Friedrichstrasse. O novo portão será rebatizado “Portão de Brandenburgo”.

Odisseu, compadre do Seu Menelau, já descobriu que aquele cavalo não é mais o melhor meio para invadir o condomínio. Hoje prefere Pégaso, o cavalo alado.

E-mail: prheuser@gmail.com

15.11.06

Vendo Com Outros Olhos

Vendo Com Outros Olhos

Por Paulo Heuser


Tentei criar um serviço de acompanhante, certa feita. Nada sexual, turístico na verdade. Ficara penalizado, observando os turistas japoneses, enquanto estes olhavam o mundo através dos visores das câmeras fotográficas e filmadoras. Acreditei que podia juntar benemerência com negócios. Todos sairíamos ganhando. Criei o acompanhante fotográfico para turistas japoneses.

A idéia até que era bem simples, viajaria com os turistas, registrando tudo para eles, de forma que pudessem ver os locais com os próprios olhos. Caminhar olhando através de um visor óptico até que é fácil. Com os visores de cristal líquido a coisa complicou-se. O zoom de 12 vezes sabe criar alguns imprevistos, principalmente nas escadas. Já reparou como há turistas estatelados, ao pé das escadas, dos locais turísticos? Acidentes mais graves costumam acontecer com aqueles que utilizam simultaneamente as câmeras fotográficas e de vídeo, uma em cada olho. O cérebro humano não foi concebido para receber imagens diferentes, ao mesmo tempo, cada uma passando percepções espaciais distintas. Quem sabe, na próxima geração?

De qualquer forma, fracassei. Nenhum cliente apareceu, isto que eu fiquei parado junto aos pontos turísticos mais importantes. Acabei humilhado, quando um agente de viagens japonês adaptou minha idéia e fez enorme sucesso. Ele também criou um serviço de acompanhante para turistas japoneses. Acompanha os turistas, que tudo registram, lhes narrando a viagem, depois. Após a viagem, visita os clientes e lhes explica o que conheceram, fornecendo inclusive um diário da viagem. Evita também que caiam das escadas e que errem os cruzamentos. Sucesso absoluto.

Soube que criou uma nova modalidade de pacote turístico, pela qual os turistas não precisam viajar de fato. Recebem a palestra, o diário da viagem, os DVDs com fotos e filmes, e um kit de lembranças de viagem, camisetas I Love Grozny (Chechênia), chaveiros da Torre Eiffel, etc. Seguro e barato.

Nestes tempos, em que se descobriu que algo além dos pilotos mantém os aviões no ar, foi uma excelente sacada. O espertalhão criou pacotes com meia pensão e pensão completa. Serve refeições típicas durante as palestras. Nos pacotes a Londres o pessoal tem recusado até o café da manhã. Leva muito ketchup. O pacote completo a Paris dá direito à adaptação do espetáculo da temporada – Féerie – do Moulin Rouge. Algumas adaptações foram necessárias, até por uma questão de escala. Orquestra e coral foram substituídos pelo três em um, os 1000 trajes de penas foram substituídos por 10, de penas de galinha – trajes ecológicos – e as 60 Doriss Girls deram lugar às seis garotas do Moinho Roxo da Mary Triz. Nada como viajar!

E-mail: prheuser@gmail.com

14.11.06

Lurdinha e as Elites

Lurdinha e as Elites

Por Paulo Heuser

O suíço Fritz Zwicky (1898-1974) constatou, em 1937, que os movimentos das galáxias ocorriam de forma diferente da previsão teórica. Para explicar o observado, far-se-ia necessário multiplicar por dez a massa visível dos conglomerados estelares objeto do estudo. Veio então a constatação de que o Universo estaria repleto de matéria escura. O adjetivo “escura” refere-se à impossibilidade de detecção, ou seja, não emite nenhuma radiação detectável. Perceptível apenas pelo efeito gravitacional. Massa e energia estão intrinsecamente relacionadas, pela mais célebre das equações. Assim, se existe matéria escura, deve existir energia escura. Daí chega-se à força.

O ex-presidente Jânio Quadros (1917-1992) renunciou em 1961, pressionado pelas forças ocultas. Ocultas, não visíveis, perceptíveis apenas pela força exercida sobre o então presidente. Durante outro momento histórico da nação, Tenório Cavalcanti (1906-1987), conhecido como “Homem da Capa Preta”, ou “Deputado Bandoleiro”, exerceu grande força, oculta sob a capa preta, na forma da Lurdinha, a metralhadora. Não poderíamos classificar a Lurdinha como força oculta, pois se tornava perfeitamente visível e perceptível quando cuspia fogo. Sabe-se lá que tipos de forças moviam a Lurdinha contra a então elite de Duque de Caxias, Baixada Fluminense.

George W. Bush invadiu nações à procura das armas ocultas de destruição em massa. Tão bem ocultas que até hoje não foram encontradas. Chegou próximo, destruiu uma fábrica de macarrão. Certamente as armas foram ocultadas pelas forças ocultas que protegem as armas ocultas. Nada ocultas estavam as forças que escancararam o fracasso da empreitada, derrotando o partido republicano nas confusas urnas.

Hoje chamam as forças ocultas de “elites”. Força é algo definível e mensurável, mesmo que incompreensível. Elite tem inúmeras definições, conforme o contexto. Algumas definições estão relacionadas à estratificação do poder. Força é identificável, elite é anônima. O fracasso do experimento cosmológico atribui-se à matéria escura, no singular. Se não é detectável, como colocá-la no plural? O fracasso do experimento político atribui-se às elites, no plural. Estando no plural, estarão identificadas? Serão inomináveis?

Há uma corrida atrás da matéria escura. Quem identificá-la, certamente passara à história. Há uma corrida fugindo das forças ocultas. Quem identificá-las será linchado em praça pública. Será culpado pela extinção da justificativa universal para o fracasso.

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11.11.06

O Happy Hour da Erothildes

O Happy Hour da Erothildes

Por Paulo Heuser

Sexta-feira, 18 horas, chegamos ao bar tão antigo quanto a república. Happy hour de três amigos de décadas, reunindo-se para falar sobre festas que já se foram e sobre uma que ainda não foi. Sentamos à única mesa ainda disponível na área externa. Três chopes sobre a mesa deram a senha para o início da conversa solta.

Não a notei de imediato. Foi somente no segundo chope que notei alguém oscilando na mesa ao lado. Oscilação lenta, como a de um pêndulo de carrilhão. Já não havia mais como não notar a Erothildes. Não sei o seu nome verdadeiro, mas não poderia chamá-la de mulher oscilante da mesa ao lado. Erothildes estava perfeito, lhe caia bem. Mulher na casa dos 60, magra, muito empertigada, Erothildes poderia até chamar-se Erotildes, mas a atitude empertigada pedia por um agá, e levou um. Erothildes estava só, bebendo chope com gelo. Seus olhos perscrutavam a área do bar, por detrás dos óculos estilo gatinha, feito feixes de radar. Nada lhes escapava, inclusive a nossa presença.

Comecei a ficar com medo quando percebi que a Erothildes reduziu o escopo da área perscrutada à nossa mesa. Posicionou sua cadeira de forma a focar toda a sua atenção sobre nós. O garçom trazia mais chope e mais gelo. Associei a oscilação da Erothildes ao número de bolachas de chope que havia sobre a sua mesa. O álcool provocara alguma disfunção no labirinto, como se ela estivesse sentada sobre um tombadilho imaginário em dia de marolas.

O medo aumentou quando Erothildes oscilou com amplitude maior para o lado esquerdo, terminando com um cotovelo sobre a sua mesa, o outro sobre a nossa. Foi aí que falou pela primeira vez:

- xomar! – apenas uma palavra, fora de qualquer contexto. O álcool não afetara apenas o labirinto. A fala também estava comprometida.

Fingimos não notar e continuamos o papo. Resignada, removeu o cotovelo do canto, mantendo, porém, o radar focado na nossa mesa. Não tardou nova intervenção na nossa conversa:

- goxto do novo!

Alívio imediato, eu era o mais velho dos três.

- devem xomar para não xubtrair!

Novo chope e mais um copo com gelo. Erothildes agarrou o garçom pelo colarinho. O homem conseguiu desvencilhar-se, com a prática adquirida por quem trabalha num bar com mais de cem anos. O medo voltou, pois ela parecia querer trocar as palavras pela ação. Alguém de nós contava um causo ocorrido na Europa quando ela interveio novamente, sem parar de oscilar:

- xou uma mulher mais do que viaxada!

Alheia à nossa indiferença, ela continuou colocando as pedras de gelo no copo de chope. O garçom servia sua mesa, mantendo o corpo bem afastado. Era novo, portanto corria mais perigo. Em uma das idas de Erothildes ao toalete, suponho, notei que estava sentada sobre um envelope pardo, desses para se carregar documentos. O que conteria? Os planos de invasão da nossa mesa, com certeza.

- devem xomar para não xubtrair! – ouviu-se ao longe. Ela voltava.

Quando o garçom trouxe as contas das mesas ainda ocupadas, prenúncio do fechamento do bar, Erothildes levantou-se, ainda oscilando, e sentenciou:

- vou deixá-lox com exax coixinhax de voxêx, poix xou uma mulher muito viaxada!

Só então eu percebi que Erothildes formava todas as frases com um número primo de palavras.

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10.11.06

Rudi e a Liberdade

Rudi e a Liberdade

Por Paulo Heuser

A Natureza faz do homem um ser natural; a sociedade faz dele um ser social somente o homem é capaz de fazer de si um ser livre.”
Rudolf Steiner (1861-1925)

Pois é, o Rudolf estava coberto de razão, pelo menos em dois terços, quando disse essas palavras na palestra proferida em Oxford, em 1922. É bom chamá-lo de Rudolf, dá a intimidade necessária à análise do seu trabalho. Rudi apenas é ainda melhor. Rudi foi um filósofo austríaco, nascido na Croácia, pai da pedagogia Waldorf – não da salada. Há três afirmações na célebre frase do também célebre Rudi. Sou obrigado a concordar com as duas primeiras. Dois pontos para Rudi. A terceira, no entanto, é bastante discutível, até em função das duas primeiras. Disputo aquele ponto com Rudi. Pago para ver. Viu só, a intimidade já me permitiu peitar o Rudi.

Consubstancio minha tese, a respeito da terceira afirmativa, nas duas anteriores. O homem é um ser natural quando bebê – quando bebe também –, quando está sozinho e quando está senil. Os bebês fazem exatamente o que lhes dá na veneta. Fazem xixi e coco quando lhes dá vontade. Dão risadas em velórios, jogam comida onde bem entendem. As crianças na idade dos porquês sabem ser extremamente sinceras. Constrangedoramente sinceras, deixando mamãe e papai em maus lençóis, quando a tia estrábica e perneta vem visitar os pimpolhos.

Homens sozinhos agem naturalmente. As mulheres sozinhas dizem que agem socialmente. Estando sozinhas, como comprová-lo? Eles bebem coca-cola de litrão no bico quando estão sozinhos. Andam vestidos apenas de cuecas pela casa e guardam a louça suja na geladeira, para não precisar lavá-la. Há outros hábitos que somente se revelam quando sozinhos ou quando estão dirigindo, como o de tirar tatu do nariz. Os homens deixam de ser seres sociais quando estão no trânsito. Entram numa feroz disputa pelo espaço à frente e nos flancos. Carros não têm laterais, têm flancos, pois estes parecem mais bélicos. A frase “cuidado com o carro que está lhe ultrapassando pelo lado esquerdo” se transforma em “destrua o invasor que se aproxima pelas oito horas zulu”. Zulu, horas zulu, como nos filmes de comandos de guerra. Ao estacionar o carro no escritório, nosso homo naturalis se transforma novamente no homo socialis, que abre portas para outros, dá passagem à frente e pelos lados, não mais pelos flancos. O homem senil volta à constrangedora naturalidade apresentada pela criança.

Bato de frente na afirmação: “somente o homem é capaz de fazer de si um ser livre”. Ora, somente o homem sozinho é capaz de fazer de si um ser livre. O homem em sociedade está preso às convenções sociais. Ninguém civilizado toma coca-cola de litrão, no bico, em pleno restaurante. Muito menos da jarra d’água da geladeira. Qual é o homem casado que pode guardar a louça suja na geladeira? O homem sozinho chega a ter duas geladeiras, uma para a cerveja, outra para a louça suja. Conheci um verdadeiro homem sozinho. Passava os finais de semana numa casa flutuante, sobre um rio. Dizia que lavar a louça não era um trabalho digno nem construtivo. Simplesmente jogava a louça suja pela janela, dentro do rio. Homem sozinho não arruma a cama. Não está estragada, por que arrumá-la? Homem social sonha utopicamente com a possibilidade de assistir ao jogo na tv, deitado no sofá, comendo pizza com a mão, bebendo cerveja no bico, usando a cortina como guardanapo. Sem esquecer dos sonoros arrotos comemorativos das melhores jogadas. Coisas que apenas o finérrimo homem sozinho pode fazer. É o único livre.

Lamento Rudi, mas este ponto é meu.

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9.11.06

Pesadelos Kafkianos

Pesadelos Kafkianos

Por Paulo Heuser

Todos temos um pouco do bancário Joseph K., personagem da obra literária O Processo (1925), publicação póstuma do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924). Kafka se notabilizou pelo estranho realismo dos seus romances. Joseph K. era um sujeito que se julgava fiel seguidor da lei. Até que foi preso, certa manhã. Foi preso, interrogado, julgado e condenado por um crime que desconhecia. Descobriu-se acusado e culpado, sem saber de que e pelo quê.

A vida é repleta de situações kafkianas do cotidiano. O vizinho que deixa de cumprimentar o outro, sem que este saiba por quê; O aluno segregado pelos colegas, sem razão aparente, e outras situações mais dramáticas que levam ao desamparado frente às acusações sem forma nem conteúdo.

Os homens e mulheres que se dedicam à vida pública estão vivendo situações kafkianas, por conta das situações não tão kafkianas vividas por inúmeros colegas, estes sabedores do que são acusados. Os bons pagam pelos maus. Viram-se hostilizados indiscriminadamente pelos cidadãos que são apenas cidadãos.

Os cidadãos, por sua vez, assistem ao espetáculo bizarramente teatral de acusações e defesas, protagonizado pelos que não são apenas cidadãos. Não há mais inocentes nem culpados, apenas os acusados, nunca condenados, nunca inocentados. O processo moto-contínuo realimenta-se dos próprios produtos, que retornam, ora como acusados, ora como acusadores. No próximo ciclo do processo, poderão protagonizar novos personagens, menos os papéis dos culpados. Estes deixariam o processo, encerrando-o.

Talvez esta seja a hora para o apenas cidadão se perguntar sobre a culpa que lhe cabe, para merecer tamanho castigo. Milhões de clones de Joseph K. estão continuamente sendo punidos pelo crime que desconhecem. Os detentores do primeiro poder – o executivo – encontram-se em guerra aberta com alguns setores do quarto poder – a imprensa. O segundo poder – o legislativo – encontra-se sob fogo dos dois anteriores. O que fará o terceiro poder – o judiciário? O que será do poder zero – o dos apenas cidadãos? Terá o mesmo destino de Joseph K.? De qualquer forma, a harmonia entre os poderes tende a retornar. Passado o templo do plantio, chega a hora da colheita. Menos para o poder zero. Afinal, quem nada planta, nada colhe.

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6.11.06

Semântica Natalina

Semântica Natalina

Por Paulo Heuser

O Brasil caiu nove pontos no índice que mede a corrupção nos países, segundo a Ong Transparência Internacional. Isto não quer dizer que a corrupção diminuiu, quer dizer que alguns países deixaram de ser mais corruptos do que o Brasil, que agora ocupa a 70a posição. Os julgadores devem ter olhado muito noticiário na televisão. Os três países menos corruptos do mundo são Finlândia, Islândia e Nova Zelândia, empatados em primeiro lugar. O país mais corrupto do mundo é o Haiti. Dá para perceber um padrão nisso? Custei um pouco a encontrá-lo, mas finalmente consegui. O que há de diferente no primeiro grupo em relação ao Brasil e ao Haiti? Sei, há muitas diferenças. Mas, dentre estas, tem as lândias. Se nos chamássemos Brasilândia, e o Haiti, Haitilândia, provavelmente estaríamos no topo do ranking da honestidade, ao lado das outras lândias. Já reparou que não há flanelinha nem cambista na Disneylândia? Viu só, outra lândia. Nosso problema é de semântica.

Outra evidência de que as lândias são honestas vem da Lapônia, terra do Papai Noel. Você acha que me pegou num duplo sofisma, não é? Dirá que a Lapônia não é lândia e o Papai Noel não existe. Bingo, a Lapônia também é conhecida como Saamilândia, sendo, portanto, uma lândia, mesmo que enrustida. Quanto ao Papai Noel não existir, bem, após as últimas eleições é melhor começar a acreditar. Em qualquer coisa, mas é bom acreditar, nem que seja no Papai Noel. Podemos dar um voto de crédito ao homem do saco de presentes.

Depõe contra o Papai Noel o fato de ter surgido na Turquia. Nada contra os turcos, mas a Turquia não está bem colocada no ranking da Transparência Internacional. Pode ser a hora de se colocar grades nas chaminés. Nunca se sabe, de repente o homem chega de saco vazio e sai de saco cheio, levando sua plasma novinha para fazer distribuição de renda.

No Sul o homem ainda se dá bem, pois há chaminés, senão da lareira, pelo menos a da churrasqueira. Como fará no resto do país? Entra direto na fogueira? Particularmente, sempre achei essa história de Papai Noel meio sádica. A criança pobre que se rebentou estudando e ajudando os pais o ano todo nada recebe do dito cujo. Já a peste bem nascida, mesmo que completamente inútil, é lembrada pelo velhinho do saco vermelho. Há algo muito estranho nessa história.

Nos bons tempos, quando ainda conseguia visitar mais chaminés, o Papai Noel costumava chegar aqui lá pelo dia 24 de dezembro. Antes disso, só mesmo nos clubes ou associações de funcionários de algum lugar. Hoje é diferente. Graças ao alto índice de automação industrial conseguido pela fábrica de brinquedos da Lapônia – ficará na China? -, o velhinho consegue chegar aqui no final de outubro. E deixou centenas de anões desempregados. Coisas da globalização. As renas não dependem de controladores de vôo. E o Papai Noel apelou para outsourcing – terceirização - na China. Talvez se explique a invasão de anões no comércio informal. Explica também as lâmpadas de Natal. Milhões, bilhões, de lâmpadas de Natal, que fazem algumas ruas da cidade ofuscar Las Vegas numa noite de sábado.

Não só o velhinho do saco vermelho precisa dispor de um saco enorme. Devido à sua chegada prematura, há de se ter um, para suportá-lo por tanto tempo.

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3.11.06

A Geladeira da República

A Geladeira da República

Por Paulo Heuser

Havia locais onde era melhor não olhar dentro. Uso o passado porque as repúblicas estão desaparecendo. Com elas, suas geladeiras. Cabe explicar o que é, ou era, uma república. Nos tempos em que as universidades concentravam-se em poucas cidades do Estado, a maioria dos alunos era oriunda de outras cidades. Alugavam apartamentos nos bairros próximos às universidades, morando em grupos para reduzir custos. As repúblicas próximas às universidades públicas eram as mais pitorescas. Habitados por estudantes menos favorecidos economicamente, esses apartamentos eram mobiliados com coisas dos brechós e eletrodomésticos velhos mandados pelos parentes.

O local mais misterioso das repúblicas era a geladeira, monstruoso e ruidoso elefante branco. Abri-las exigia um certo cuidado. Havia grande risco de choque elétrico e de que a porta caísse sobre o pé. Superados estes eventuais obstáculos, havia o perigo biológico. A única certeza a respeito do conteúdo das geladeiras era a natureza quimicamente orgânica. O resto era pura especulação. E probabilística. Cada morador era responsável pelos seus compostos orgânicos ali depositados, às vezes por tempo excessivo.

A abertura da porta trazia odores estranhos. Após os finais de semana prolongados, ou feriadões, o cheiro estranho dava lugar ao fedor propriamente dito, principalmente pelos restos de leite vencido. Mas era após as férias que a abertura da geladeira se tornava uma aventura inesquecível. Alguém sempre se lembrava de desligar a geladeira, mas nem sempre todos se lembravam de retirar o que havia lá dentro. O resultado era algo próximo da aventura retratada pelo filme Jumanji (1995). Por vezes nem era necessário abrir a porta, após as férias. O volume dos seres vivos que proliferavam lá dentro acabava excedendo o da geladeira, abrindo a porta. Restos de arroz ou macarrão produziam quantidades enormes de fungos, dignas de dar inveja a Alexander Fleming, descobridor da penicilina. Quando os restos eram de origem animal, no entanto, geralmente era necessária a substituição completa da geladeira. É inacreditável o que um mísero resto de salame conseguia produzir. Pobres vizinhos!

A expressão varrer a sujeira sob o tapete deve ter se originado nas repúblicas. O que os olhos não vêem o coração não sente. Original não? O tapete adquiria alguns centímetros em altura até a faxina semestral.

Varrem-se também outras coisas para baixo dos tapetes de outros tipos de repúblicas. Estes são levantados apenas quando alguém perde algo realmente grande, como um Boeing 737 e seus ocupantes.

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2.11.06

Liminariana

Liminariana

Por Paulo Heuser

Estélio Natário embarcou para Liminariana, democracia emergente desde o Século XIX. Algo fazia o nível d’água subir continuamente, pois a emersão nunca ocorria, possibilitando a reclassificação como potência imersa fortemente lastreada. A também emergente Fármacos Alternativos o contratara para vender protótipos de medicamentos a Liminariana.

A nova industria não conseguia colocar sem primeiro produto no mercado, fruto de três meses de pesquisas, devido à falta de cobaias animais e humanas. A legislação dos países já emergidos exigia uma série de salvaguardas que nenhum laboratório com apenas um funcionário, e sem laboratório propriamente dito, poderia oferecer. Fármacos Alternativos era uma empresa surgida do sonho de um monge transvenusiano neoquântico, Charly Atão, completamente desconhecido nos meios científicos, graças à não-publicação de trabalhos. A publicação de trabalhos científicos é condenada pelo transvenusianismo neoquântico.

Assim como Einstein procurou a teoria do tudo, sem encontrá-la, Charly procurou o fármaco universal, finalmente encontrado, pelo menos no seu Gedanken Experiment – experimento de pensamento –, infinitamente mais barato do que aqueles de laboratório. Três meses de meditação foram suficientes para a Gestalt medicinal de Charly: o miraculoso Exkrement II. A primeira versão, concebida após 47 dias de meditação, não dera certo, pelo menos em pensamento. Meditando sobre as crenças das mais diversas culturas, inclusive da sua particular, Charly percebeu que a cura dos males deveria vir de dentro, não apenas espiritualmente, materialmente em essência, em nome do equilíbrio universal. Se o corpo gerara a moléstia, dele sairia também a cura, desde que ajudado pelo espírito. Os iguais curam-se pelos iguais, como diz a homeopatia. Charly apenas acrescentara uma variante da igualdade, sutilmente desigual. Pode parecer confuso, mas é filosofia transvenusiana neoquântica pura.

Charly logo percebeu que o Exkrement II deveria ser produzido a partir dos fluidos e não-tão-fluidos dos pacientes, acrescidos da parte espiritual, contida em cravos-da-índia transmutados para cravos-de-vênus, a partir da meditação. Charly é detentor da patente do processo de transmutação dos cravos-da-índia. O processo de transmutação é bastante lento, pois Charly não consegue transmutar mais do que um grama por dia. E pode trabalhar apenas nas quartas-feiras, por motivos religiosos. Isto pode explicar o custo de US$ 700 por comprimido, a dose diária. Discriminado pelo FDA – órgão do governo norte-americano que regulamenta os medicamentos –, Charly apelou para Estélio, famoso consultor de negócios heterodoxos.

Logo que desembarcou em Liminária, capital da emergente nação, Estélio procurou seu mercado nos hospitais públicos. Lá ele encontrou enfermos sem esperança, abandonados pela saúde e pelo estado. Após convencê-los de que a cura para seus males estava no Exkrement II, foi só esperar. Liminariana apresentava um sistema jurídico original, com celeridade cautelar e morosidade meritória. Somando-se a isto a quantidade de advogados e doentes desassistidos, foi inevitável a proliferação das liminares para custeio pelo estado dos tratamentos com Exkrement II. E as liminares eram o produto nacional de Liminariana, duravam muito mais do que as de outros países.

Charly está meditando às quintas-feiras, único dia permitido pela religião. Procura o Exkrement III, para o caso de o mérito das ações ser julgado antes de 10 anos. Provavelmente levará saliva e salsinha na composição.

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