26.12.07

O ciclo da vida

Foto: Paulo Heuser
O ciclo da vida

Por Paulo Heuser


Passado mais um Natal, aproxima-se celeremente o Ano Novo. Henri Poincaré e Albert Einstein fritaram neurônios, concluindo que o tempo passa de forma diferente conforme a posição e a velocidade do observador. O tempo passa mais lentamente para quem está em maior velocidade em relação ao observador imóvel ou viajando em menor velocidade. O fenômeno passa a ser bem perceptível a partir de uma velocidade de dois terços da velocidade da luz. Nada que possa atrapalhar quem anda na freeway ou nas nossas ruas. Toda essa teoria está bem embasada, matematicamente, e provada experimentalmente, apesar das constantes tentativas de derrubá-la.

Todos já fomos crianças. Se não fomos, somos. A chegada do mês de dezembro altera de forma importante a vida das crianças. Vai-se a escola e aproxima-se o Natal. Dane-se o Ano Novo, o importante é o Natal. Por uma razão qualquer, que nem Poincaré nem Einstein conseguiram explicar, o tempo passa de forma diferente para as crianças. Pode ter algo a ver com o fato de elas estarem permanentemente em movimento, em alta velocidade. O tempo se arrasta quando esperam por algo e acelera violentamente quando estão a fazer algo que lhes agrada. O mês de dezembro não passa, pelo menos para as crianças afortunadas. Para as outras, tanto faz, pois o Natal é um dia como qualquer outro. Aquelas que terão um Natal com festa e presentes ficam na expectativa da chegada do dia. A situação piora quando entram em férias escolares, pois passam o dia contando cada segundo. O Tempo Atômico Internacional definiu um segundo como sendo nove bilhões e uns cacarecos vezes o período da luz emitida pelo isótopo 133 do Césio, no nível fundamental, passando do nível hiperfino F=4 para F=3, dado pela média de diversos relógios atômicos. Coisa simples, portanto. Porém, não há relógio atômico que meça a elasticidade temporal percebida pelas crianças. O isótopo 133 do Césio parece decair mais lentamente, cada vez mais lentamente, tendendo à aparente estabilidade quando a data tende ao dia 24 de dezembro. Aí pelo final da tarde desse dia o segundo parece alongar-se indefinidamente, como se o ponteiro fosse colado com chiclete ao mostrador. Matematicamente, Poincaré escreveria que o limite da duração do segundo, quando a hora tende ao momento da abertura dos presentes, é mais infinito. O tique-taque do relógio torna-se pastoso, com um tique aqui, um taque lá adiante, muito adiante, após o horizonte. Tudo parece voltar ao normal quando se abrem os presentes. Os tiques e os taques unem-se novamente e retornam à sua marcha inexorável em direção ao próximo dezembro.

O isótopo 133 do Césio se comporta de forma bem diferente para quem já deixou de ser criança. Mal deixamos de ver Papais-Noéis pendurados por todo o lado, já surgem os próximos, do próximo Natal. Quando o som de Jingle Bells começa a se desvanecer, volta com tudo, enchendo o ar com variantes nos mais diversos e impensáveis ritmos. Os adultos descobrem que já é Natal, novamente. Poincaré escreveria que o limite da duração do segundo, quando a hora tende ao momento da abertura dos presentes, é zero. Parece que o ponteiro dos segundos gira loucamente. Para os adultos a passagem do Natal anuncia a aproximação do Ano Novo, hora de purgar o passado e apostar tudo no futuro. Dia da remissão, das promessas e das esperanças. Afinal, no próximo ano tudo será diferente. Depois vem o Carnaval, e assim por diante, cada vez mais rápido. Fecha-se o ciclo da vida.

O que fazer? Ora, comemorar. Rápido, pois o próximo Natal já se avizinha.


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21.12.07

A formatura


Foto: Wikipedia
A formatura

Por Paulo Heuser


Cheguei cedo, pois sabia que faltariam lugares no salão. Formatura é sinônimo de casa cheia. Tal freqüência só se compara àquela das reuniões de condomínio cuja pauta inclui a execução sumária do síndico. Após o inevitável congestionamento de fim de tarde, consegui entrar na fila para o estacionamento. Logo apareceu um rapaz vestindo um traje em cores berrantes, identificado como manobrista, através do vistoso crachá. Fiquei na dúvida, por um momento. Seria mesmo um manobrista? O simpático e sorridente rapaz assumiu a direção e se foi, rua abaixo. Deixou-me um pedaço de papel numerado, contendo a tabela de preços. Primeira hora, sete reais. Primeira hora, em formatura? Só mesmo a da escola de mudos, com um formando apenas. Hora adicional, ou fração, cinco reais.

Dois integrantes da Guarda Suíça guardavam a porta do salão, realizando ostensivos movimentos com as lanças, cada vez que alguém cruzava por eles. O calor e a recepcionista esperavam por mim do lado de dentro. Ela usava um fone e murmurava frases ininteligíveis, enquanto sorria e indicava os assentos ainda vagos. Os assentos vagos são suspeitos, por essência. O simples fato de se encontrarem vagos indica potencial perigo. Há uma extensa lista de motivos para a existência de lugares vagos em formaturas. Alguns assentos estão quebrados, sem aparentá-lo. Descobrimos o defeito quando sentamos. No chão, bem entendido. Outro clássico é o chicabom que o pestinha deixou cair. Diversos assentos vagos ao redor de uma pessoa indicam campo minado. Certa feita, sentei-me num desses assentos. Não agüentei cinco minutos, pois o sujeito que representava o papel de ilha respirava de modo terrivelmente ruidoso. Algo como o som do estrebuchamento. Começava baixo e suave, crescendo para um som de apito engasgado. A expiração recebia acordes de fluidos trocando de lugar. O homem estava se afogando no seco. Impossível permanecer ao seu lado. Por fim, optei por assistir à formatura em pé.

Pontualmente na hora marcada, soou a fanfarra, anunciando a abertura da sessão solene. As luzes se apagaram, mantido apenas um foco de luz sobre um canto do palco, de onde surgiram pessoas vestidas em togas coloridas, que se dirigiram à mesa das autoridades. Seus passos foram cadenciados pelo rufar de bumbos e taróis. Quando entrou alguém com uma peruca branca, no melhor estilo Luis XIV, o som dos clarins se sobrepôs ao resto da fanfarra. Dois membros da Guarda Suíça bateram suas lanças no chão, no momento em que o tripulante da peruca sentou-se. Com certeza, seria o chefe, o diretor ou o reitor.

Dezenas de homens de preto revezavam-se carregando câmeras e iluminadores, enquanto outros moviam chaves deslizantes nas mesas de som. O canhão de luz voltou-se para acompanhar a entrada dos formandos, ao som da Marcha Radetzky, de Johann Strauss I, em ritmo de funk. A platéia aplaudia, berrava, uivava, apitava e soava buzinas de nevoeiro. O que se seguiu foi aquilo com o qual já nos acostumamos. Houve algo de novo, concordo. Eu ainda não havia visto essa nova alegoria dos formandos. Eles ocuparam os mezaninos laterais, após entrarem no salão. Quando chamados, deslizavam do mezanino até o palco, dependurados através de um cabo de aço quase invisível. O canhão de luz acompanhava a trajetória, produzindo efeito de vôo. A platéia foi ao delírio, a cada vôo rasante dos formandos. Depois aconteceu algo estranho. Divaguei, como já fiz em outros espetáculos que duraram mais do que quatro horas. O excesso de imagens e sons cansa. Tudo acaba tornando-se igual. O que causava arrepios, no início, vira chavão. É pena, pois nem me emocionei com as ginastas artísticas que executavam flick-flacks duplos, empunhando tochas, no fundo do palco. Nem reparei nos leões que saltavam entre os círculos produzidos pelas acrobacias das ginastas. Tudo culpa do excesso.
Em primeiro plano, professores homenageados digladiavam-se em uma dança cossaca burlesca. Nos meus devaneios, perguntei-me: - Como será a formatura de Ensino Médio desses alunos, daqui a três anos?

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19.12.07

O décimo terceiro

Foto: Paulo Heuser
O décimo terceiro

Por Paulo Heuser


O décimo terceiro chegou. Já foi motivo de preocupação, por parte dos agourentos. A origem da má fama do número 13 tem diversas explicações. Alguns explicam que Judas seria o décimo terceiro à mesa. Da traição resultaria a má fama do número 13. Tanto que os edifícios não têm décimo terceiro andar, em muitos países.

Agatha Christie (1890-1976) escreveu um livro, em 1933, intitulado Treze à Mesa – Lord Edgware Dies -, na versão em língua portuguesa. Há uma explicação para a má fama do numero 13, que considero mais interessante, pelo menos historicamente. O Rei Felipe IV, o Belo (1268-1314), da França, também foi conhecido como Rei de Ferro, devido ao seu empreendedorismo bélico. Ele nasceu e governou na linda Fontainebleu, na região de Seine-et-Marne, a sudoeste de Paris, onde os jardins do palácio estendem-se aos bosques que cercam a pequena cidade. A beleza de Fontainebleau não passou despercebida aos olhos das tropas de ocupação nazistas, durante a Segunda Guerra, nem ao General George Patton, após a libertação. Eles instalaram seus quartéis-generais no Castelo de Fontainebleu.

Mal de caixa, devido às despesas bélicas nas rusgas com os vizinhos flamengos de Flandres, Felipe expulsou os judeus da França, em 1306, para tomar os seus bens. Como o dinheiro mostrou-se insuficiente, coisa aparentemente comum a qualquer governo, Felipe meteu a mão no bolso da Igreja, sendo ameaçado de excomunhão pelo Papa Bonifácio VIII. A relação de Felipe com a Igreja foi muito tumultuada, na base da bula para cá, bula para lá. Em 13 de outubro de 1307, sexta-feira, Felipe mandou prender os confrades de uma entidade ligada à Igreja, a Ordem dos Cavaleiros Templários. Após uma longa CPI, a ordem foi considerada extinta, perdendo seu status eclesiástico. Seus membros foram supliciados. Aí, algo de novo, apesar de velho. Hoje em dia, apenas renunciam, para depois voltarem.

Ignorantes de tudo isso, Jandercleison e Paggysue festejaram a chegada do décimo terceiro salário. Esse 13 não faz mal a ninguém. Fizeram planos, pensando no futuro. Neste ano limpariam o nome na praça. Pegariam a grana e poriam em dia o pagamento daquela prestação atrasada. Orgulhosos, entraram na loja e dirigiram-se ao setor de recuperação de crédito. Não fora uma boa idéia a compra daquela câmera digital que vinha com alguns brindes, como uma lavadora de roupas e o cortador de grama a gasolina. As 99 prestações explodiram o orçamento e eles acabaram no SPC.

Já na entrada, sorridentes recepcionistas os esperavam. Ofereciam o cartão de crédito que os levaria a realizarem todos seus sonhos, imagináveis ou não. Resistiram bravamente. A alegação de que estavam com o nome sujo na praça não foi suficiente para que as moças desistissem. Aquela loja não se importava com o cadastro. A satisfação do cliente – e do dono – estaria acima de tudo. Como continuaram recusando, foram-lhes exibidas línguas de sogra e caretas de desprezo. Conseguiram adentrar loja, para cair nas garras dos promotores da câmera digital que vinha com alguns brindes, como uma lavadora de roupas e o cortador de grama a gasolina.

– Mas, eu já tenho uma! – tentou argumentar Jandercleison.

– Exatamente! – gritou a vendedora – O senhor tem, mas sua mãe não tem!

Conseguiram desvencilhar-se, novamente, avançando com dificuldade em direção ao elevador. Foi difícil caminhar com duas promotoras agarradas aos pés. O sistema de marketing interno da loja detectou a presença do celular de cartão do Jandercleison e passou a chamar a cobrar para oferecerem a nova câmera digital câmera digital que vinha com alguns brindes, como uma lavadora de roupas e o cortador de grama a gasolina.

O alívio que sentiram quando a porta do elevador se fechou durou pouco. A ascensorista não era apenas uma ascensorista. Era uma promotora vertical de vendas da câmera digital que vinha com alguns brindes, como uma lavadora de roupas e o cortador de grama a gasolina. Os quatro andares pareceram quatrocentos. Porém, eles mantiveram-se irredutíveis. Lutaram bravamente para deixar o elevador, chegando ao andar do crediário. Peggysue logo foi cercada pelos clones do Brad Pit e do George Clooney, que a levaram para o setor de cosméticos, ao lado do crediário. Ela ganhou uma massagem facial grátis. Jandercleison foi levado pelos clones da Bridget Moynahan e da Milla Jovovich para o coquetel promocional da loja, na sala ao lado. Encontraram-se novamente, após uma hora e meia.

- Você conseguiu liquidar a dívida, bem? – perguntou Peggysue.

- Não foi prexijo! – respondeu-lhe Jandercleison, com a voz etilicamente pastosa.

- Como? Por quê?

- Elax me moxtraram que eu ainda podia aumentar a dívida pagando o mexmo por mêx. Xó aumentaram um pouco o prajo.

- Quanto?

- Xó maix 99 mejex!

- Para quê?

- Ora, mulher, parexe boba! Comprei um criado-mudo que fala e vem com algunx brindex, como a câmera digital, a lavadora de roupax e o cortador de grama a gajolina.

- Mas, nós ficaremos pagando por quase vinte anos!

- Vamox nada, bem. Elax me dixeram que o gelo do Ártico vai derreter, a Amajônia vai xecar e tudo aqui vai inundar, bem antex do prajo venxer!

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17.12.07

Das portas e janelas


Foto: Paulo Heuser
Das portas e janelas

Por Paulo Heuser


Quando fotografei a centésima primeira porta, percebi finalmente que algo estava errado. Não com as portas, comigo. Meu vício em fotografar portas e janelas passara do limite, se é que existe algum. Ainda mais quando se trata de portas e janelas dos outros, muitas quebradas, emparedadas ou coisas do gênero. Alguém da família já vinha alertando para o estranho hábito. Só me caiu a ficha quando vi aquele número 101 ao lado da última foto publicada no sitio de compartilhamento.

Há algum tempo, descobri que havia outros como eu, padecendo do mesmo mal. Passei a receber mensagens de outros adictos, de diversas partes do mundo, elogiando minhas portas e janelas. Caso interessante é o do vienense chamado Robert. Ele é realmente louco por portas, e já estava comprando passagem para o Brasil, acreditando que todas portas daqui apresentariam a aparência daquelas que publiquei no sítio de fotos. Tive de alertá-lo para o fato de que a maioria das portas daqui faz inveja às do Fort Knox. Quando não estão pichadas, estão escondidas atrás de grades. Confessei-lhe que sou especialista em portas de casas açorianas e portas de casas noturnas fotografadas durante o dia. A 101 foi a porta de uma casa na Rota dos Antiquários, na Cidade Baixa. Uma estranha porta amarela com almofadas cor de rosa. Se isso não bastasse, havia um relógio de parede, antigo, do lado de fora da porta. O coitado do austríaco imaginou que todas as portas daqui seriam assim.

Joguei a toalha e fui procurar ajuda médica. Considero difícil confessá-lo, mas vá lá, procurei uma psiquiatra. Uma, porque não me sinto bem confessando essas manias inconfessáveis a um homem. Imagine a cena, o sujeito sentado, com ar de Sigmund, quando o outro personagem da história confessa que fotografa portas e janelas da casa dos outros. Um homem desataria a rir, mesmo que disfarçadamente. Há quem consiga disfarçar a gargalhada através de um ataque simulado de tosse. Usei essa técnica quando assisti à palestra proferida por um engenheiro gago e fanho. Retirei-me após o segundo ataque. Assim, acabei consultando a lista de médicos do convênio e optando pela Dra. Kremonna Türenfenster. Algo me dizia que aquela seria a pessoa indicada para tratar do meu problema.

Entrei na ante-sala do consultório e sentei-me na única poltrona vaga. Era também a única poltrona na sala. Depois lembrei que a privacidade é importante nesse tipo de especialista. Havia uma pilha de revistas, estas já sem aquele aviso para não as retirarem da aeronave. Faz tempo que não oferecem revistas a bordo. Refuguei algumas e optei por uma que se parecia com um manual do escoteiro húngaro. Deveria ser húngaro, pois a palavra Budapest aparecia diversas vezes no texto. Ou então, eu marcara uma consulta com uma proctologista, por engano. Somente consegui olhar meia-dúzia de figuras de pessoas vestindo calças curtas, quando a porta que levava ao consultório se abriu. E lá estava eu, sentado em frente a Dra. Kremonna Türenfenster, uma mulher na flor dos cinco oitavos da idade.

A doutora pareceu muito interessada no assunto, disfarçando completamente o riso, se é que houve algum. Ela apenas franziu levemente a testa, quando confessei o vício. No encerramento da consulta de 17 minutos (por convênio são mais curtas), ela pediu-me o atalho para minhas fotos das portas e janelas de outrem, pois poderia formar um quadro melhor ao vê-las.

A secretário marcou a consulta seguinte para daí a três meses (é por convênio), na primeira vaga disponível. Estranhamente, recebi um telefonema, na semana seguinte, informando que a Dra. Türenfenster havia pedido que adiantássemos a data da consulta. Quando entrei novamente no consultório, a doutora apontou para a tela do computador barroco, que combinava com o resto da decoração, onde uma das minhas fotos de portas enchia a tela.

- O senhor fotografa muito bem. Porém, apresenta os sintomas clássicos de um distúrbio chamado Síndrome de Portefinestre. Um médico veneziano foi o primeiro a identificar este distúrbio, no início do século XX.

- Certo, mas isso tem cura?

- Bem, cura propriamente, não há. Mas os pacientes podem ser orientados a focar sua atenção em outra coisa. A propósito, aquela foto da porta amarela com almofadas cor de rosa está fantástica.

- Obrigado, o Robert também achou. E quanto ao tratamento?

- É bem simples. Vá ao parque, ou qualquer outro lugar onde não há portas, e passe a fotografar a natureza, pessoas ou monumentos. Basta ficar longe das portas. A propósito, o senhor me alcançaria uma cópia daquela foto, em tamanho, 30X70, para eu colocar sobre a lareira, no lugar das guampas do meu marido? Digo, da galhada do alce dele. Podemos abater o custo da foto do custo da consulta.

Fiz o que a Dra. Türenfenster recomendou. Fui ao Parque da Redenção e fotografei árvores, cachorros e pedalinhos, o que mais há por lá. Voltei para casa realizado, sentindo-me curado. Isso foi no sábado. Na segunda-feira, antes das nove horas, a secretária da doutora perguntou-me sobre a foto da porta amarela. A doutora pedira a copia da foto. Com urgência, pois não agüentava mais a galhada do marido sobre a lareira. Na quarta-feira, fui intimado para nova consulta. Levei a cópia da foto comigo. A Dra. Türenfenster parecia extasiada.

- Tenho uma surpresa para você!

Eu confesso que levei medo. O que ela queria dizer com isso? Antes que eu pudesse sair correndo do consultório, ela mostrou-me uma câmera fotográfica completamente profissional, daquelas que nem mesmo um deles consegue utilizar. É tudo manual, menos o próprio, que está digitalizado no interior da câmera. Aliviado, comentei:

- Que ótimo, a doutora vai começar a fotografar?

- Vou! – disse ela, com a boca estranhamente vincada, verticalmente. – Só preciso que você me diga, por misericórdia, onde fica o diabo daquela porta amarela com almofadas cor de rosa!

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13.12.07

A invasão do mendigo

Foto: Paulo Heuser

A invasão do mendigo

Por Paulo Heuser


Pedro acordou sobressaltado. Acordou com a sensação de ter ouvido um ruído estranho, como um baque surdo. – Droga! – disse para si mesmo, já que Rita dormia em sono tão profundo como a Fossa das Filipinas. Ele esquecera-se novamente da garrafa pet de guaraná no frízer? Lembrou-se da última vez em que ouvira os ecos daquele baque surdo. Um petardo de guaraná explodiu, ao congelar, abriu a porta do frízer e espalhou meleca por todos os lados. Meio a contragosto, levantou-se para verificar os novos estragos. Foi com certa surpresa que parou diante do frízer fechado. Abriu a porta com cuidado. Nada de guaraná, nem inteiro, nem explodido. Acreditando ter sonhado com algo que provocara aquele ruído, retornou para a cama.

- Que foi, bem? – perguntou-lhe Rita, em meio à escuridão.

- Não sei, bem. Acordei com a sensação de haver ouvido em estrondo.

- Pensando bem, meu amor, também tive essa impressão. – disse ela, enquanto sentava-se na cama. – Vou beber água e darei uma checada em tudo. Pode ter sido o vento, fechando uma janela.

Exatos treze segundos depois, enfiava-se debaixo do lençol, cutucando o novamente adormecido Pedro. Cochichava quase aos gritos:

- Pedro, tem um mendigo pavoroso na sala!

Pedro acordou dando socos no ar, naquele estado em que consciente e inconsciente travam imensa batalha pelo controle da mente.

- Umpf! Gasph! O que foi?

- Pedro, tem um mendigo pavoroso na sala!

- Você sonhou, meu bem. Torne a dormir...

- Vá lá e olhe você mesmo! – cochichou ela, novamente aos berros.

- Ok, calma. Se for para tranqüilizá-la, eu vou.

Novos treze segundos decorreram, até que ele a encontrou sob o lençol da cama. Foi a vez dele, cochichar em pânico:

- Tem mesmo, bem. Eu vi!

- E agora, bem?

- Dê-me o telefone!

O teclado iluminado ajudou Pedro a discar o número de emergência, na memória nove.

Após muitos tututús de ocupado, uma voz distante atendeu:

- Pois não?

- Socorro, há um mendigo pavoroso na minha sala! Mandem alguém, urgente!

- O que ele está fazendo aí? - disse a voz calma.

- Não sei, estou escondido no meu quarto!

- O senhor deixou que ele entrasse?

- Não, não sei como ele entrou, pois o alarme não disparou e os cachorros não latiram!

- Entendo, senhor. Procure manter a calma e espere a chegada da viatura que chegara aí em, vejamos, 58 minutos, se não ocorrer outro chamado mais urgente.
- O que pode ser mais urgente do que isso?

- Bem, senhor, se o mendigo pavoroso estivesse com o senhor, no seu quarto, poderia ser bem pior.

Pedro aproveitou a espera para rastejar até o quarto do Pedrinho, ao lado. Pegou o menino adormecido no colo e retornou silenciosamente ao seu quarto. Passaram a ser três sob os lençóis, dois adultos apavorados e um menino dormindo.

O aparente silêncio foi rompido pela algazarra dos cães. O giroflex da viatura provocava efeitos luminosos de azul e vermelho. A porta da frente veio a baixo, pedalada pelo agente Rambo, que de pronto metralhou o criado mudo onde penduravam capas e chapéus.

- Chefe, estamos no local da invasão de domicílio. Encontramos um sujeito que diz ser o Papai Noel. Parecido, até que ele é. Vamos levá-lo ao plantão.

Pedrinho entrou na sala, acordado pelo barulho da confusão, e viu aquele velho parado no meio da sala, com as mãos para cima. Deu uma olhada dentro do saco que jazia ao lado do homem e sentenciou:

- É fajuto, é fajuto!

- Como você sabe? – perguntou-lhe o agente Rambo.

- Ora, aí só tem bonecas, bolas e carrinhos de brinquedo. Qualquer babaca sabe que as crianças não brincam mais!

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11.12.07

A classe média V - O presente de Natal



Fonte: Wikipedia


A classe média V – O presente de Natal

Por Paulo Heuser


Linoberto recebeu a notícia da chegada do Estranho enquanto tentava desatolar o já crescido terneiro que mugia desesperadamente. Ele já nem considerava mais o Estranho tão antipático. Chegava a ter um pouco de pena dele. Afinal, ele não tivera culpa por aceitar aquele emprego na tal da ONG Vaca Feliz, contratada pelo governo. Com a crise que nunca terminava, do lado de lá do cinamomo, qualquer emprego era emprego.

Encontraram-se no Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. O copo da “boa” já esperava Linoberto. Cumprimentaram-se, trocaram amenidades sobre o já crescido terneiro, o estado da estrada e a proximidade do Natal. Linoberto encerrou a fase da firula quando perguntou ao estranho sobre a razão da nova visita.

- Seu Linoberto, venho como representante da ONG Vaca...

- Sei, sei, Vaca Feliz, contratada pelo governo para...O que é, desta vez?

- Bem, Seu Linoberto, desta vez venho falar com o Secretário Municipal da Educação e Cultura, cargo que o senhor também acumula, pelo que me disse o Prefeito.

- Sou todo ouvidos. – disse Linoberto, enquanto o já crescido terneiro mugia.

O Estranho tomou fôlego e continuou:

- Tenho a satisfação de lhe comunicar que o Governo está liberando verba para a introdução do ensino do idioma uzbeque, no Ensino Fundamental!

- Céus, onde se fala isso? – perguntou o intrigado e espantado Linoberto.

- Ora, no Uzbequistão! – o Estranho parecia não entender a ignorância do Secretário da Educação e Cultura do lado de cá do cinamomo.

- Certo, mas por que alguém aqui deveria aprender esse uzbe... Como é mesmo?

- Uzbeque!

- Nós já ensinamos inglês e espanhol aos alunos. Ficaria pesado, mais um idioma.

- Bem, Seu Linoberto, não se trata de uma nova língua. Deverão substituir uma das línguas estrangeiras já administradas. A lei não prevê a inclusão de nova disciplina.

- Já sei, a lei é besta, mas é a lei!

- Exatamente, tirou as palavras da minha boca. – disse o Estranho, enquanto o já crescido terneiro mugia de felicidade, livre do atoleiro.

- Só não entendi o porquê dessa língua em especial. Não podemos optar pelo ensino do idioma francês, ou do alemão?

- Bem, err... É porque os manuais dos kits estão escritos em uzbeque, na verdade...

- Kits? Quais kits?

- Os kits dos jogos para presente de Natal das crianças.

- Continuo a não entender, por que comprariam brinquedos com manuais escritos numa língua dessas?

- Não foram comprados, foram dados em pagamento...

- Pagamento do quê?

- Da dívida externa do Uzbequistão.

- Não sabia que havíamos emprestado alguma coisa para eles.

- Não emprestamos, na verdade. Foi a Bolivária quem emprestou.

- E o que nós tempos a ver com isso?

- Ora, o Uzbequistão pagou em kits a divida externa da Bolivária.

- Continuo não vendo o que nós temos a ver com isso!

- Bem, os bolivarianos nos indenizaram por algumas desapropriações, pagando em kits. Como era pegar ou largar, pegamos. Melhor alguns kits uzbeques na mão do que dólares voando. Como havia uma certa dificuldade para utilizá-los, pelo desconhecimento da língua, elaboramos uma lei para introduzir o ensino do idioma uzbeque.

- Hum, entendi. Para carnearem o porco vocês derrubaram o matadouro.

- (?) – o Estranho pareceu não entender a analogia.

- São muitos kits?

- Não muitos. Não passam de 18 milhões.

- Não podemos recusar os kits e deixar de substituir os idiomas já ministrados?

- Não, besta lex, sed lex. A única condição, prevista em lei, que dispensa as aulas de uzbeque é a de as crianças já dominarem essa língua, a ponto de conseguirem utilizar os kits. Nós escolhemos aleatoriamente duas crianças matriculadas na escola e lhes entregamos um kit. Se conseguirem ler as instruções e utilizá-los, a condição legal está satisfeita.

Quando o Estranho partiu, contrariado, o já crescido terneiro mugiu. Linoberto pagou pirulitos xaropentos, em forma de apitos, daquele tipo que só se via ainda do lado de cá do cinamomo, para as duas crianças que saíram correndo ladeira abaixo, felizes com seus kits.

Linoberto chegou em casa cansado, mas satisfeito. Contou o ocorrido a Maria.

- E aí, Lino, as crianças terão que aprender essa língua estranha?

- Não, Maria. Encontrei um modo de contornar a situação e ainda por cima dar um presente de Natal para as crianças. Pedi para ver um dos tais kits. Quando botei o olho nele, me caiu a solução. Pedi ao padre que mandasse duas crianças da oitava série até o 12 Irmãos.

- E aí, Lino? Elas conseguiram ler as instruções?

- Não foi preciso. O tal kit era um jogo pega-varetas.


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9.12.07

aC. ou dC.?

Foto: Paulo Heuser
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aC. ou dC.?

Por Paulo Heuser


Às vezes penso como faziam para datar alguma coisa, antes de Cristo. Não podiam simplesmente escrever ano tal, aC. Sem o C, não havia aC., ainda não. Consultando o alfarrábio eletrônico, descobri que, aparentemente, o calendário cristão foi concebido pelo monge e matemático grego Dionysius Exiguus – Dionísio, o Pequeno – em 525 dC. Em aC., seria mais difícil. Até então, utilizavam um calendário que iniciara com o reino do imperador Diocleciano. Como este não morria de amores pelos cristãos, e vice-versa, o monge Dionísio resolveu seguir outra linha. Assim, retroativamente, propôs o sistema aC., dC., até hoje utilizado. Portanto, os antigos não enfrentaram o problema que tanto me preocupou. Ora, ninguém poderia saber, em 10 dC., por exemplo, que já existira um ano 10 aC., que só viria a ser inventado em 525 dC. Simples, não? Como não havia computadores, na época, as consultorias deixaram de ganhar rios de dinheiro, com o bug do ano zero, que nunca houve, graças à inexistência do ano zero.

Dionísio, o Pequeno, utilizou Cristo como referência inicial do seu Calendário Cristão. Já em Cuba, poderiam montar um Calendário Castrista, utilizando Castro como referencial. Poderiam inclusive copiar o aC., dC. – antes de Castro, depois de Castro. Os britânicos poderiam adotar o Churchill como referência: antes de Churchill, depois de Churchill. Os mais puritanos talvez preferissem Cromwell. Charles provavelmente não seria a opção mais indicada.

Os venezuelanos já têm sua opção: Chávez. Talvez menos perene que o próprio Chávez gostaria, mas sem dúvida é um referencial marcante. Com certeza, ninguém o esquecerá tão cedo. Os chineses e os outros povos que não adotam o Calendário Cristão têm lá também os seus problemas. O calendário chinês não tem evento inicial de referência, pois é cíclico, repetindo-se em ciclos menores, de 12 anos, e maiores, de 60 anos. Os ciclos menores se dividem em anos, cada um designado pelo nome de um animal. As ofertas de crediário das Casas Fiungzong são mais ou menos assim: Leve agora, comece a pagar somente no próximo porco e termine quando chegar o macaco. Propositadamente, ou não - para mantermos a dialética preservada -, eles escondem que o sujeito de olhos puxados pagará, do rato ao carneiro, antes da chegada do próximo macaco. Coisas de marketing. E o chinês vai para casa, feliz da vida, levando seu esticador de fusilli zero bala, que pagará em 10 suaves anos. Os chineses poderiam optar pelo Calendário Confúcico, utilizando como referencial o pensador Kung Fu Tse, mais conhecido por aqui como Confúcio, que viveu entre 551 e 479 aC. – este C, de Cristo, evidentemente. Mas, como o Confúcio lá é com K, não daria certo. Teriam de usar aK., dK., o que desvirtuaria qualquer calendário aC., dC.

Os australianos têm a banda AC/DC, de rock pesado. Os franceses poderiam invocar de Gaulle, que, antes de tudo, era Charles, com C. Os norte-americanos poderiam optar pelo Clinton ou pelo Carter, dependendo do gosto por charutos.

Bem, finalmente chegamos aqui. Campos Sales? Não, não tem o apelo necessário. Café Filho? Não, como o próprio nome denuncia, foi café pequeno. Carlos Luz? Quem foi ele? Dois dias de governo não lhe permitem entrar dessa forma para a história. Castelo Branco ou Costa e Silva? Muito generais, dirão alguns. Chegamos ao Collor. Pode ter gerado um bocado de confusão, mas empreendeu a Segunda Abertura dos Portos. A de Dom João já deixava saudades. Graças ao Collor passamos a beber cerveja do Kurdistão e espumante de Burkina Faso. Contra ele, há o fato de ter ex-mulheres, e algumas não conseguem ficar tão caladas como o Rei Juan Carlos gostaria. Resta-nos o Cardoso, mais aristocrático, bem falante e bem comportado. Porém, é o arquiinimigo da situação. Fica chato torná-lo referencial de calendário. Há um C que mexe com este País. Aliás, nunca antes neste País brigou-se tanto por um imposto. Poderemos utilizar a CPMF como referencial de calendário. Teremos o aC., dC. – antes da CPMF, depois da CPMF.

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5.12.07

A classe média IV - Cultura

Foto: Wikipedia
A classe média IV – Cultura

Por Paulo Heuser


O telefone tocou, no Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos. Tocou meio fanho, pois as aranhas haviam construído teias ao redor da campainha. O oitavo dos 12 irmãos atendeu, passando ao sétimo, o Prefeito.
- É para você!
- Quem é?
- Não sei, não entendi nada...
- Então, como sabe que é para mim?
- Por isso mesmo, quando ligam do Governo, nunca se entende.
- Como você sabe que é do Governo, se não se entende?
- De quem mais seria? Eles são os únicos que ainda tentam arrancar alguma coisa daqui. Os vendedores já desistiram, por causa da estrada. Aquele Estranho do Governo nunca mais voltou.
- Alô? – disse o sétimo
- Schhhhhhhbzzzzzziiiiióóóóó...
- Alôô!!!! – gritou o sétimo
- Mais schhhhhhhbzzzzzziiiiióóóóó entremeado com zóinzóinzóins. – sons que pareciam inspirados no original da Guerra dos Mundos (1953) de H.G. Wells.
- Droga, vou desligar! – desistiu o sétimo.
- Ih, vem estranho por aí. Estranho maiúsculo (do Governo), pelo visto. – disse o oitavo.
- Como você sabe? – o sétimo parecia intrigado.
- Da outra vez, também tentaram telefonar. Como não conseguiram, mandaram aquele Estranho do leite.
- É, você tem razão. Vou deixar o Linoberto de sobreaviso.

Ninguém estranhou a chegada do Estranho. O mesmo da outra vez, que foi direto à casa do Linoberto. Maria o recebeu, enquanto mandava o cunhado procurá-lo na roça. Naquele dia, Linoberto beberia da “boa” em casa. Ele cumprimentou o Estranho, preocupado com a possibilidade de haver algum problema com o leite.

- Algum problema com o leite de caixinha? – perguntou Linoberto.
- Não, não! Aquilo é página virada. O que me traz hoje aqui é a cultura.
- Ué, você não trabalhava com saúde?
- Também, porém minha ONG assumiu outro contrato com o Governo, na área da cultura. – respondeu-lhe o Estranho.
- Aceita um gole da “boa”?
- Não, melhor não. Mas fique à vontade. – A boca do Estranho contorceu-se, estranhamente.
- Pode falar. – Linoberto era todo ouvidos.
- Trago uma boa nova! O Governo está liberando uma verba substancial para a preservação da cultura. – o Estranho parecia entusiasmado.
- Isto é muito bom! – afirmou Linoberto.
- Basta que enquadremos seu município em uma das três classes de cultura. Para isso que estou aqui. Vocês se enquadrariam melhor como situacionistas, tucanos ou alienígenas?
- Bem, vivemos do lado de cá do cinamomo. – Linoberto ficou confuso.
- Mas, aqui não há cultura!
- Como não há? – Linoberto pareceu ainda mais confuso, lembrando-se da Festa do Terneiro Ensebado.

Estranhamente, e já crescido, o terneiro mugiu.

- Vocês aderiram ao Operário, ao Lorde da Sorbonne ou ao Gabeira?
- Ah, nenhum deles.
- Como? – o Estranho parecia perplexo.
- Nós temos a festa da igreja e a do Terneiro Ensebado.
- Bem, temos que enquadrá-los em um dos três grupos. – disse o Estranho.
- Já sei, Besta lex, sed lex! – A lei é besta, mas é a lei! – Linoberto sacudia a cabeça.
- Sim, não há como deixar de enquadrá-los em alguma das culturas previstas em lei, nem a possibilidade de não haver ninguém que se enquadre em alguma delas, por mais recursivo que esse raciocínio possa parecer.
- Já sei, Besta lex,.. – disse Linoberto. O Estranho apenas acenou afirmativamente.
- Há uma remota possibilidade, introduzida por um destaque de última hora. Posso tentar enquadrá-los nas minorias oprimidas, nas quais podem ser incluídas novas classes, desde que realmente e comprovadamente oprimidas.
- Oprimidas por quem?
- Isso não é relevante, basta serem oprimidos por alguém. – respondeu-lhe o Estranho.
- Bem, então está resolvido! – afirmou Linoberto, abrindo um grande sorriso.
O Estranho partiu, de cara meio amarrada. Maria veio sentar-se ao lado do marido, pousando sua mão sobre a dele.
- E aí, Lino? O que foi, desta vez?
- Eles queriam implantar aqui as culturas do outro lado do cinamomo.
- Queriam mudar a quermesse, Lino?
- Queriam, mas não conseguiram. Nos enquadrei numa nova espécie de minoria cultural.
- Qual foi, Lino?
- Bem, criamos uma minoria dos Oprimidos Pela União.

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3.12.07

O mês da azia


O mês da azia

Por Paulo Heuser


Ah, dezembro, dezembro... Mês de alegria, do Papai Noel, do bate o sino pequenino até não agüentar mais, dos shoppings lotados e das festas de fim de ano. Mês dos amigos secretos, ou ocultos, conforme regionalismos. Ultimamente estamos mais para os inimigos ocultos, revelados diariamente pelos jornais. Mas, tudo bem. Vamos preservar o espírito da festa.

Das mais singelas festinhas de fim de expediente, no escritório, até os autênticos bailes nos salões de sociedade, aqueles que têm algo em comum, reúnem-se para a confraternização. Há a turma do escritório, a do vôlei, a da confraria dos circuncisados carecas, etc. Os líderes de qualquer ajuntamento humano devem promover festas de fim de ano, o que acaba causando inevitáveis conflitos nas agendas. Sempre ocorrem sobreposições, como aquela das festas da pet shop da tartaruga com a do desentupidor de fossa séptica. Fossa séptica é mais elegante que apenas fossa. Afinal, é séptica. Alguns têm a habilidade natural para conseguirem passar em todas as festas. Come um doguinho com pasteizinhos aqui, uma pizza ali e um churrasco acolá. Do café da manhã à ceia, estão ocupados durante todo o mês. Já há grupos agendando confraternizações nos domingos à noite, por falta de outra opção.

No estado em que o churrasco é o prato símbolo da culinária local, é normal que seja também o cardápio preferido das festividades de fim de ano. Tipicamente, o pessoal se reúne para um café da manhã com algo frito, numa manhã de sexta-feira de dezembro, promoção da associação dos contínuos do prédio. Ao meio-dia, tem o encontro na churrascaria próxima, que já está lotada com grupos de outras empresas. Carne gorda e uma cervejinha. Após a sobremesa, correm de volta ao escritório, pois a confraria das secretárias lituanas organizou uma troca de presentes de amigo secreto, regada a coca-cola e risoles de frango. À noite, vem o ponto alto do dia, por mais estranho que isso possa soar. Grande churrascada na casa do colega que gosta de assar touro no rolete. Começa a assar três dias antes do evento, terminando três dias depois do evento. Porém, não faltam pão e saladas, levados pelos convivas. Ops, me esqueci do happy hour do fornecedor de risoles para a festa das secretárias lituanas.

O sábado de dezembro inicia com um brunch – aquela coisa indefinida, entre café da manhã e almoço – às nove horas, na sede campestre da Sociedade Cultural, Desportiva e Beneficente da Liga das Senhoras Balonistas, promovido pela Confraria do Chucrute - Venha flutuar conosco! - dizem elas. Após todos aqueles pratos de variações de chucrute, hora do almoço promovido pelo pessoal do escritório da mulher, na casa do chefe. O patrão dela faz questão de assar a carne. Faz questão apenas do serviço, já que a despesa é rachada entre os funcionários e seus familiares. Como o patrão é exímio assador, e muito amigo de um importante açougueiro que só vende carne para gente importante, é ele quem escolhe a carne. Escolhe picanhas de terneiros precoces que se alimentaram apenas de mamão tailandês e patê de fígado de ganso da Normandia. Coisa finíssima. O chefe mantém em segredo a receita do tempero da carne. Ele mergulha a pobre picanha em uma mistura de molho de soja, óleo de gergelim, gengibre, vinagre balsâmico, açúcar, cravo e canela. - Nada de sal, pois ele desidrata o bicho - diz ele. A vantagem de ser chefe é essa. Ninguém reclama, nem faz careta. Engolem aquela coisa em meio aos mais sinceros elogios de crocodilo, enquanto bebem do pavoroso vinho que o chefe comprou de um sujeito que fabrica vinho bento. Não, não é em Bento. É bento, mesmo. Como o chefe gosta de elogios e de companhia, alonga o almoço até as 16 horas, quando todos correm para a casa de chá onde o pessoal da canastra das quintas-feiras realiza outro amigo secreto. Como ninguém é de ferro, e chá enferruja, rola solta a cerveja. Para beliscar, torta de morangos, merengue e nata light, feita de soja (ugh!).

Blurp! Tempo de passar na ducha para não perder a hora do grande evento, até então, a festa da empresa. Outro grande churrasco, preparado por uma equipe que iniciou os trabalhos ao meio-dia. Isto é, a hora em que abriram a primeira cerveja. Lá pelas 10 da noite começam a servir as duas opções de carne: costela crua ou maminha torrada. Vivas para a salada e o pão!

O pior do sábado, é que ele é seguido pelo domingo. E no domingo vale tudo, já que todos descansaram bastante no sábado. Portanto, o café da manhã no Sítio da Vovó Perneta começa bem cedo, com cucas recém assadas, omelete com bacon e sonhos delirantes de nata com coalho. A criançada, mais inteligente, dorme à sombra, enquanto papais e mamães são levados às atividades campeiras, pelas esforçadas recreacionistas. Ao meio-dia, novo churrasco. Dezesseis horas, hora de fugir rápido, pois o café colonial será servido no aconchegante restaurante para 700 convivas. Mais cucas, geléias, tortas, bolinhos fritos, lingüiças e qualquer outra coisa frita. – Blurp duplo, triplo! Jantar na associação dos Confrades Unidos das Confrarias Independentes Unidas. Churrasco! Que surpresa!

O melhor no domingo de dezembro é que existem apenas quatro, usualmente. Com algum esforço dos promotores de festa, poderão ser em número de seis ou sete. Haja azia!

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