29.11.09

566 - Crônicas do Uzbequistão

Islam Karimov
Presidente do Uzbequistão
Foto: Wikipedia
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Crônicas do Uzbequistão

Paulo Heuser

Encontrei-me com o Seu Clistério. Há muito que não o via. Tentei evitá-lo, mas não consegui. Ele até que é simpático, porém, é o pior tipo de generalista, o que é especialista em tudo. Eu fazia o que há de melhor para se fazer numa sala de espera, esperava, quando o Seu Clistério surgiu. Escondi-me atrás da Caras de dezembro de 2003, em vão. O que de mim sobrou para fora foi suficiente para que ele me reconhecesse. Eu assistia a um monótono documentário exibido na TV de 14’’ da sala de espera. Os oftalmologistas fazem a triagem assim. Quem consegue descobrir o que está passando, ganha atestado. Seu Clistério é um dos últimos técnicos universais, aqueles que consertam qualquer coisa, inclusive aquelas que não estão estragadas. Se não há defeito, ele o cria. A vida de mecânico de aviões, de navios e do relógio da torre de Westminster, o levou a girar mundo. Ele conheceu toda a Europa. Essa bagagem cultural o transformou em chato pedante da mais alta ordem. Ele sabe mais de tudo e sabe melhor.

O cumprimento desinteressado não me livrou do ataque.

- Você, por aqui? O que veio fazer?

Senti vontade de lhe responder que eu viera vender rabanetes ao médico. Ora, o que alguém poderia fazer, na sala de espera de um médico, senão esperar? Como bom chato, ele sentou-se ao meu lado, para ajudar a esperar. Certamente veio consertar algo que o médico pensava estar estragado. Ele percebeu meu interesse pelo documentário e ficou a observá-lo. Pronto, pensei, ele está arrumando munição.

Islam Karimov, ditador do Uzbequistão, desfilava na tela. Seu Clistério bateu as palmas das mãos nas coxas e ajeitou-se na cadeira, enquanto abria o sorriso largo que prenunciava o bote. Não deu outra.

- Você já reparou?

Eu sempre odiei esse tipo de ataque, completamente indefinido. Reparar no quê? Ele me encarou com aquele sorriso interrogativo do professor para o pupilo idiota. Nada respondi e voltei minha atenção à TV. Ele não desistiu.

- Já reparou na coincidência?

Fraquejei. Dois ataques indefinidos era demais. Não havia como fingir que não o ouvira, pois ele é do tipo que cutuca seu braço enquanto fala. A pergunta me escapou.

- Qual coincidência?

Ele apertou os olhos, como que demonstrando fisicamente sua superior esperteza. Nessas horas, ele faz um hiato, antes de prosseguir. Suspeito de que ele quer aumentar o clima de suspense.

- Ora, salta aos olhos!

Ele conseguiu. Senti-me perfeitamente idiota. Certo da vitória, ele continuou, sempre sorrindo.

- Você não reparou que esses grandes ditadores foram eleitos, algum dia? Pode não ter sido através da eleição direta, mas foram eleitos, na pior das hipóteses, por alguém que foi eleito pelo povo. O povo os adorava! Hitler, Mussolini, Vargas, Salazar, Karimov, todos foram eleitos! Depois, através de conchavos políticos, perpetuaram-se no poder.

Tive de dar mãos à palmatória. Para variar, o homem estava certo, reconheci a contragosto. Tentei também demonstrar alguma sabedoria.

- Ora, Seu Clistério, o senhor não quer que eu acredite que isso poderá repetir-se, aqui?

Ele sacudiu vigorosamente a cabeça, demonstrando impaciência.
- Não, não, não! Você não percebeu, ainda? Não existem mais nações, nem patriotismo. Não importa quem for eleito, se for eleito e como for eleito. O poder não está na mão dos eleitores.

- Está na mão de quem, então?

Ele demonstrou impaciência, novamente. Revirou os olhos e bateu novamente com a palma das mãos nas coxas.

- Ora, o poder está nas mãos dos acionistas!

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27.11.09

565 - Emergência como rotina

Bíblia de Toggenburg (1411)
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Emergência como rotina

Paulo Heuser

Zé descobre que a vida prega peças. Algumas boas, outras nem tanto. Ele se vê cara a cara com a recepcionista do setor de emergência do hospital. Quem trabalha na emergência não sabe o que é emergência, pois dela fez rotina. Documento, carteira do convênio e as perguntas de praxe, sempre iniciam assim. Zé olha para a sala de espera, com o canto do olho. Pelo menos não está repleta. Duas moças escoram-se, uma na outra, com cara de enfado. A que tem o dedão do pé inchado e preto faz careta de dor. A outra a consola. Ambas têm cabelo preto, cortado exatamente da mesma forma, e parecem fugidas de um filme do Peter Pan. Riem, agora. Ao lado delas, um jovem com cara de insuficiência de tudo senta-se com o que deve ser a mãe.

Triagem em até dez minutos, realizada por um enfermeiro, atendimento pelo médico em até duas horas, avisa a recepcionista. A emergência está lotada porque o hospital está lotado. Na porta que leva à área de atendimento há uma tabela que relaciona a gravidade do caso com o tempo de atendimento, através de um sistema de cores. Coitados dos azuis, sabe-se lá quando serão atendidos. Felizes dos vermelhos. Se não morrerem antes de chegar lá, terão atendimento imediato. Os verdes terão inveja dos amarelos. E se o tal do enfermeiro que faz as vezes de porteiro da salvação for daltônico? O rapaz sentado ao lado da mãe pende a bombordo, com o olhar opaco. A vida parece tê-lo deixado. Ele está lá cumprindo alguma estranha formalidade, antes que venham buscá-lo de vez. A mãe aparenta resignação, limitando-se a segurar sua mão, de uma forma que só as mães sabem.

Assina aqui, assina ali e é só esperar pelo chamado do porteiro da salvação. Um homem calvo, de camiseta amarela, anda de um lado para o outro, sempre olhando para o celular. Transborda de ansiedade. Se não estiver esperando notícias de alguém que está do outro lado da porta, que lhe dêem uma ficha vermelha, ele é o que mais precisa de uma. O portal da salvação se abre, e surge o enfermeiro, de jaleco longo e estetoscópio passado ao redor do pescoço, numa atitude definitivamente profissional. Quem usa estetoscópio daquela forma sabe o que faz, com certeza.

O chamado do seu nome faz Zé sair do quase transe. O enfermeiro o leva a uma pequena sala de atendimento onde há aparelhos de toda sorte. Destaca-se um que emite sons estridentes e exibe os sinais vitais de ninguém, parecendo reclamar da solidão. Fica pouco tempo só, pois Zé é amarrado, tem o braço quase esmagado, prendem-lhe sensores e detectores que fazem a máquina vomitar sons, números e gráficos. As perguntas sucedem as medições. Qual é a cor do sangue dele? Haverá outra? Sangramento dá prioridade, mesmo que pouco sangue só dê ficha amarela. Qual será a vazão necessária para se conseguir uma vermelha? Na próxima vez ele trará fenolftaleína e amônia. Notarão a diferença? Sangue do diabo. Zé não é santo, mesmo. Tudo bem, a ficha amarela lhe concede um médico, só para ele, em menos de meia hora. O atendimento é perfeito, o diagnóstico não. Precisará de outro médico, um especialista, que chegará em 40 minutos. Leva menos de 30. O especialista é rápido em tudo, diagnostica, fala, prepara, anestesia, corta, remenda, receita e libera, tudo em menos de hora, com precisão cirúrgica. Zé e o especialista chegam em casa antes das 23 horas. Apesar de tudo, sentem-se extremamente aliviados.

Não perderão capítulo inédito de House.

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24.11.09

564 - Borboletas não têm passatempo

Foto: Wikipedia
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Borboletas não têm passatempo

Paulo Heuser


Hobbies existem desde muito. O Michaelis fornece sinônimo, passatempo. Curioso, a vida é finita, e as pessoas procuram passatempos. Nos tempos pré-orkutianos, as pessoas tinham algo que era conhecido como Tempo Livre. Era o que o próprio nome indica, por mais incrível que possa parecer. Havia espaços não preenchidos nas agendas. A maioria nem tinha agenda. É verdade, creia. Saíam do trabalho, chegavam a casa, após alguns minutos, jantavam e dedicavam-se ao hobby, até a hora de se deitarem. Alguns colecionavam selos postais, eram filatelistas. Os numismatas colecionavam moedas. Havia um homem que colecionava borboletas mortas, lá em Santa Cruz. Era o Seu Amon, dono de uma fábrica de doces que fazia balas de eucalipto extraordinárias. A Frau Amon preparava Hefeschnecken inesquecíveis, principalmente para quem consegue se lembrar da palavra. Ele caçava lepidópteros, incluídos numa das maiores coleções do Brasil. Recebiam visitantes de toda parte, que se deliciavam chupando balas de eucalipto enquanto viam borboletas e sonhavam com Hefeschnecken. Esse era seu passatempo. Borboletas não têm passatempo, pois seu tempo passa antes que possam escolher algum. Também não chupam balas de eucalipto.

A existência de passatempos era justificada, convenhamos. Não havia TV, e os telefones eram raros. Também não havia telemarketing, e ninguém ousaria lhe vender alguma coisa à noite. O Tempo Livre era isso, livre. Contudo, o que mais chamaria a atenção de um moderno humano adestrado, seriam as Redes de Relacionamento. Eram dispositivos de pano suspensos entre cordas presas às paredes através de ganchos. Os participantes dessas redes sociais utilizavam-nas, geralmente aos pares, para um passatempo chamado Namoro Presencial. Passavam horas relacionando-se, cara a cara, em tempo real, com eventual contato físico. Os relacionamentos com número ímpar de participantes, veladamente desaconselhados, eram conhecidos como Desvios de Conduta. Hoje, aquelas redes são classificadas como ecologicamente perfeitas, por não demandarem combustíveis fósseis, apesar do potencial de aumento populacional.

O fato é que a virtualidade ainda não era modo de vida. Assombrosas eram as comunidades compostas de humanos físicos, sem avatares. Eles encontravam-se, de verdade, em sítios do Mundo Real. No lugar das carinhas, ou emoticons, riam ou faziam cara feia. O mais incrível ainda não foi revelado.

Tudo aquilo funcionava durante os apagões!


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19.11.09

563 - A feira vista pelos fundos

Foto: Juliana Heuser
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A feira vista pelos fundos

Paulo Heuser

A 55ª Feira do Livro de Porto Alegre se foi. É hora do desmanche. Vão-se as barracas, ficam as lembranças. Dessa feira, em particular, não me esquecerei. Afinal, dei o meu primeiro autógrafo. E não foi só um, houve até fila. Já ouvi críticas a respeito disso, dizem que mãe na fila não conta. Inveja. Quem diz isso não tem mãe, ou pior, ela não veio. Mães à parte, eu realizei parte do sonho e vi a feira pelos fundos, onde as coisas acontecem. Estive nos bastidores.

Foi lá, de caneta na mão, que percebi a crueldade demonstrada por alguns pais do passado. Inventaram nomes inimagináveis, saídos, na melhor das hipóteses, de um jogo cata-palavras. Hermeneuse não é nome de gente. Pode até ser nome de ciência humanística oculta, mas de gente, não é. Só não disseram isso para os pais da própria, e o escrivão deve estar contando essa história aos netos. Não é conversa, não, vi-me cara a cara com a Hermeneuse e dei-lhe um autógrafo. Houve também a seção dos gregos, representada pelo Achylles, com dois eles, para ficar bem Aquiles, mesmo. Tudo bem, afinal, é grego, mas quem consegue, fora da Grécia, escrever Achylles sem parar para pensar? Vendo assim, escrito, parece fácil. Lá, na seca, dá um branco.

Mudos deveriam ser proibidos de pedir autógrafos, a não ser que escrevam o nome em um pedaço de papel. Aí se incluem os que falam muito baixo em meio à algazarra feita pela mãe que está na fila. Seu nome, por favor? Hmmpfgh... Como? Hmmpfgh... Perdão? Hmmpfgh...! Seu Hmmpfgh se escreve com agá mudo, não é? Hmmpfgh...!

Confesso que eu morria de medo de que não aparecesse ninguém, nem a mãe. Haverá coisa mais frustrante, para um escritor, do que a ausência de leitores ávidos por autógrafos? Dá um frio, só de pensar no vazio causado pelos intermináveis 30 minutos de espera por alguém que não virá. Na hora, serve até engano, como autografar o livro do que entra lá por engano. Outra tática pode ser a oferta de livros aos doadores de sangue, além do lanche grátis.

Escrever um livro parece fácil, mas não é. Não basta a escolha do assunto. Tem que ser um assunto que interesse alguém. Caso contrário, não chega nem no balaião. O segundo passo, não menos importante, é escrevê-lo. Depois, vêm as revisões, revisões e mais revisões. Há outros problemas, menos óbvios, como financiamento, edição, divulgação, registro, et caetera e tal. Vencidos todos os obstáculos, ei-lo, novinho em folha e cheirando à tinta. É o momento de relaxar e partir para a sessão de autógrafos. Contudo, além de assiná-lo, faz-se necessário escrever alguma coisa. Então, surge o dilema, escrever o quê?

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10.11.09

562 - O formidável Atlas

Atlas
Imagem: Wikipedia
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O formidável Atlas

Por Paulo Heuser

Houve uma rebelião dos escoceses, em 1745. Em represália, o parlamento britânico proibiu, para alívio dos habitantes das Terras Baixas, o uso da gaita de fole. Antes de considerá-la instrumento musical, citavam-na como arma de guerra. Deve ser o único instrumento musical que é desafinado de propósito. Quanto mais horrendo for o som, melhor. Apenas os surdos deixavam de fugir, quando a tocavam nos campos de batalha. A proibição não se limitou àquela versão da Trombeta do Apocalipse. O kilt pegou carona. Submetidos à severa punição os escoceses tiveram que renegar as saias. Pode-se até imaginar o escândalo provocado pela visão de homens trajando calças. As senhôras – com acento – escocesas enfartaram. Contudo, a lei era besta, mas era a lei. Seguiram-se 37 anos de silêncio e despudor. Depois, para desespero dos ingleses e alegria das escocesas, gaitas e saias retornaram.

De lá para cá, as saias provocam turbulências na brisa que areja as pernas femininas. Lembrei-me de uma colega do colégio, no Interior. Chegávamos ao início de mais um ano letivo, e lá estava ela, a grande novidade. Digamos que se chamava Silvana. Uma menina loira, alta e longilínea. O que impressionava, na Silvana, não era apenas a beleza, eram também a simpatia e a desinibição. Contudo, o que impressionava, mesmo, era o fato de ela vir da Capital. A menina era uma espécie de ser superior sem presunção de sê-lo. Ela surgiu com a moda das minissaias. Foi a primeira que vimos. Foi também o assunto daquele e de muitos dias que se seguiram. A meninada ficou entusiasmada. Pudera, a saia era realmente curta, tanto que o colégio teve que instituir um comprimento limite, medido a olho, a partir do joelho, pois a moda ameaçava se alastrar entre as locais. Vieram outras, mas a Silvana foi a tal, a desbravadora. Ela povoou a imaginação dos colegas. Sonhavam com tórridos relacionamentos, mas, uma vez na sua frente, conseguiam apenas gaguejar palavras tolas. Algo nela intimidava os meninos interioranos. Era um ano mais velha, o que fazia dela uma mulher presumidamente experiente. O pior, no entanto, era a lenda suburbana a respeito do suposto namorado da Capital, um sujeito que teria a aparência do Sean Connery, nadaria como o Johnny Weissmuller e lutaria como o Teddy Boy Marino. Seria o autêntico Atlas, no tempo em que ainda admiravam um Atlas.

Não sei que fim levou a Silvana. Foi-se. Retornou à Capital e levou as minissaias. Ingressou na Universidade e se casou com o Atlas, que hoje tem a aparência do Bart Simpson, nada como um piano e toca gaita de fole. Com certeza, Silvana teve muita sorte, pois não havia a Uniban.

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8.11.09

561 - Ditadura, anistia e greve geral



Treze à mesa

Quinze partiram, dois se foram e treze chegaram. Como geralmente acontece, nessas empreitadas, vieram daqui e dali, sabe-se lá de onde. Compunham curioso grupo. Encontraram-se, pela primeira vez, num fim de tarde quente de verão. Colocados à mesa longa e estreita tatearam em busca do objetivo comum. Repetiram os encontros, semana após semana, mês após mês. Aprenderam antigas lições e reviraram os porões da História. Formaram uma confraria que ansiava por deixar legado, algo que os incluísse na própria História. Não seriam meros observadores da passagem do tempo, para marcá-lo de forma indelével.

A História não é vista por todos da mesma forma, logo perceberam. Quem a viveu dela construiu sua percepção. Os demais leram e ouviram. A maior virtude apresentada pela confraria, sem dúvida, foi o respeito às crenças e à individualidade. Não foram meros peões a repetir, lado a lado, monótono movimento de casa à frente e toma na diagonal. Avançaram juntos, na direção da meta, respeitando os inevitáveis movimentos de deriva. Discutiram, rangeram dentes, riram, choraram e chegaram.

Chegamos. Tornamos-nos contistas, pois contamos um pedaço da História, a esta e às futuras gerações, através dos personagens que criamos. Pusemos nossa marca lá na Biblioteca Nacional. A meta era o livro, no qual cada um de nós deixou quatro contos. Porém, hoje percebemos que a meta está muito adiante, move-se como o horizonte. O livro é apenas o primeiro marco. Outros virão. Alguém poderá dizer que somos catorze, na verdade. De duas, uma: ou o décimo quarto é o Alcy Cheuiche, ou deixamos de contar alguém que havia ido ao banheiro.

Os alunos da Oficina de Criação Literária Alcy Cheuiche têm a satisfação de convidá-lo para o lançamento de “Ditadura, anistia e greve geral – 30 anos depois”, no dia 13/11/2009, sexta-feira, às 16h30, na Sala dos Jacarandás do Memorial do RS, junto à Praça da Alfândega, durante a 55ª Feira do Livro de Porto Alegre. A sessão de autógrafos ocorrerá às 18h00, na mesma data, no térreo do Memorial.

Ariane Severo, Artur Pereira dos Santos, Bruno Abrão, Eliane Camera, Gilles Castro, Isabela Severo, Ivo Domingo Vivian, Juliana T. Grünhäuser, Marcia Antonina, MCæleste Carloto, Paulo Heuser, Vanésia Zibetti Vasconcellos e Zilah Cheuiche.

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3.11.09

560 - Filosofia de churrascaria

Foto: Wikipedia
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Filosofia de churrascaria

Paulo Heuser

É domingo e passa do meio-dia. Não há mesas livres, e a fila é grande. Uma multidão se amontoa na entrada, todos de copo na mão. Caipirinha ou cerveja, tanto faz, alivia a espera. Diverte, até. Distribuem a senha 1312 e chamam a 754. Mário avisa, a qüingentésima qüinquagésima oitava mesa será a deles. A família vibra. Falta pouco. Ele pede duas caipirinhas, uma para ele, outra para os outros. O garçom recusa a propina para facilitar uma mesa. Há toda uma ética por trás daquela fila. Não será subornado, muito menos por dois pilas. Essa fila é mais séria do que a dos transplantes, e há rins para todos. Com ou sem bacon.

O tempo passa, e a tarde passa atrás dele, bem como as sete caipirinhas. O sujeito com cara de magistrado chama o 754. Mário não ouve, a mulher o sacode. É o nosso! Mário foi proibido de assar em casa, desde que, num rompante de criatividade exacerbado pelo aperitivo, tentou preparar melancia no espeto. As pernas dele insistem em seguir trajetórias conflitantes, ora convergentes, ora divergentes. Acomodam-nos, os oito, numa mesa para seis, ao lado da porta que leva ao toalete masculino. Cada vez que a porta se abre, comentam, lá vem o garçom dos rins. Não é, vem o do cupim. Mario detesta cupim, ainda mais agora, que descobre que fede a mijo. Servem pastéis, bolinhos de arroz, bolinhos de aipim, croquetes e toda sorte de embuchantes. Mário recusa, ele veio para se embuchar de carne. Clama por granito e costela gorda. O netinho, na cadeira de criança, amassa croquetes semimastigados para jogá-los no pessoal da mesa ao lado, que rosna de volta.

Júnior veio sob protesto, como sempre. É vegetariano. Estuda filosofia, detesta o pai, tem horror de carnívoros e tenta estragar o almoço dos outros. Começa a eterna ladainha contra a criação de animais de corte, relata o sofrimento na hora da morte no matadouro, diz que ir à churrascaria faz parte de um terrível ritual que os remete ao primitivismo selvagem, etc, etc. Ninguém mais lhe dá atenção, já estão carecas de ouvir a mesma coisa, todos os domingos. Mário zomba dele, lambendo um pedaço de picanha sanguinolenta, imitando um animal. Júnior se cala e entorna o copo de caipirinha do pai, para descobrir foi preparado com pinga e limão, apenas.

A porta do banheiro se abre, novamente, deixando sair um sujeito com aparência de aliviado. Deixa escapar também um gás fétido que estava contido no toalete. Uma centelha inicia uma revolução, no cérebro do rapaz. Ele está estranhamento calmo e diz:

- Neste exato momento, numa dimensão paralela, espelho desta, uma família igual a nossa está sentada à mesa de um restaurante. É a nossa alter-familia. Meu alter-pai, Oiram, está zoando do meu alter-eu, Roinuj. Ele lambe alguma coisa espetada no garfo.

- O quê? Uma ahnacip? – pergunta Mário, morrendo de rir.

- Não, se aqui o restaurante reúne os que vêm ingerir carne, lá é o contrário.

Mário não entende logo, até que a porta do toalete se abre novamente.


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