29.1.09

499,999 e 7/8 - Livros... Livros? Melhor não lê-los



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Livros... Livros? Melhor não lê-los

Por Paulo Heuser


Ler dá azia, segundo o Presidente. Ler notícias, bem entendido. Nada que algumas doses daquele leite de magnésia de fílipis não possam resolver. O hidróxido de magnésio – MgOH2 –, em suspensão edulcorada, anula o efeito corrosivo da leitura das notícias que desagradam ao leitor. Para lê-las, no entanto, alguns cuidados há de se tomar. Ao tomar o leite de magnésia de fílipis, observar que as interações medicamentosas dele com tetraciclinas, levodopa, lítio, benzodiazepínicos e um monte de outras gororobas, inclusive diflusinal, trazem outros problemas. O leitor corre o risco de se transformar em um diarréico ácido deprimido. A depressão viria não apenas da redução dos efeitos do lítio, como também da combinação da azia com a diarréia. Não há como não ficar deprimido. Pior mesmo, só se agregadas à tosse.

Entendidos os mecanismos das patologias jornalísticas, resta um remédio milenar, de mínimos efeitos colaterais. É a leitura crítica. Aplica-se um filtro exterminador ideológico, sobre as notícias, e se lê o que efetivamente está lá escrito. As matérias publicadas nos jornais e nas revistas costumam pender, pouco ou muito, para o lado para onde se inclina o veículo jornalístico. Cabe ao leitor a identificação dos preconceitos e paixões embutidos nos textos. Há leituras muito difíceis, como as matérias sobre os conflitos na Faixa de Gaza, onde ninguém é inocente, e, se algum dia o foi, perdeu-se na poeira do tempo, quando um trilobite – artrópode do Período Cambriano – romano expulsou um trilobite hebreu, que, por sua vez, expulsou trilobites palestinos, que explodiram trilobites hebreus, que pulverizaram trilobites palestinos, que... Quem, mesmo, começou isso tudo? Não havia leite de magnésia, naquele tempo. Nem azia, suponho.

O efeito colateral da leitura crítica é a chatice dos que ficam sobre o muro. Eles ouvem tanto o lado A como o lado B, por mais chato que este possa ser. Não se emocionam tanto na leitura das notícias. Tampouco reagem com paixão, pois, movidos pela razão, dificilmente pendem completamente para um dos lados. Não pegam em faixas e cartazes de protesto. Os chatos adquirem a capacidade da leitura crítica ao lerem livros. A leitura dos livros desenvolve a capacidade de abstração necessária à leitura crítica. Lê-se muita bobagem, mas, um dia, chega-se lá. Os chatos reservam a paixão para a leitura dos livros. Com agenda oculta, sem agenda oculta, os livros permitem vôos apaixonados através das asas da imaginação. O escritor planta uma semente, que germinará de forma distinta conforme o leitor. Há livros enfadonhos, mal-escritos, absurdos e obscuros, mas nenhum deles dá azia. Livros especiais são os que foram proibidos. Se o foram, há algo neles que causou medo, não azia.

Lamentavelmente, os livros vêm sendo deixados de lado. O Tio Guguel – que tudo sabe e tudo vê, mesmo que torto – encontra sinopses de qualquer coisa escrita. Menos do Horizonte Zenital – com Z! -, do Dr. Hermann Von Schweissberg. Eu li esse livro durante a minha adolescência e acredito ter sido o único a fazê-lo. Era tamanha a sucessão de bobagens, que não consigo me lembrar do que li. Porém, a leitura não me causou azia. Amnésia, sim, mas sem azia.

Aos que ainda se perguntam por que lêem, fica uma corruptela do Poema Enjoadinho, de Vinícius de Morais: Livros... Livros? Melhor não lê-los. Mas se não os lemos. Como sabê-lo?

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28.1.09

499,999 e 6/7 - Aventura em dois tempos


Foto: Wikipedia
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Aventura em dois tempos

Por Paulo Heuser


Lá por 1967, um grupo de escoteiros de Santa Cruz do Sul, enfadado com as intermináveis férias de verão, resolveu fazer um acampamento diferente. No lugar dos tradicionais sítios de acampamento, como a Fazenda Hildebrand e a chácara Melchiors, no interior daquele município, escolheram como destino uma praia na confluência dos Rios Jacuí e Pardo, no município de mesmo nome.

Em janeiro de 2009, mais de seis mil fanáticos por tecnologia, computadores e jogos eletrônicos acamparam no Centro Imigrantes, uma área coberta de 38 mil metros quadrados em São Paulo. O Campus Party 2009 repetiu um evento que se originou na Espanha, em 1997, e se realizou pela segunda vez no Brasil.

Os oito meninos resolveram seguir até Rio Pardo a pé, como legítimos escoteiros faziam, através da antiga estrada poeirenta e esburacada de 45 km. Para levar todas as tralhas necessárias, utilizaram dois carrinhos de duas rodas, como aqueles dos catadores de lixo, um com rodas raiadas de bicicleta, outro com rodas e eixo de madeira. Levaram duas barracas, panelas, lampiões e provisões básicas.

Os campistas do Campus Party 2009 montaram suas barracas no interior de pavilhões, levando notebooks e uma parafernália eletrônica nas mochilas. Não precisaram carregar panelas nem provisões, pois lá havia uma boa praça de alimentação. Foram de carro, de metrô ou de van.

Os meninos deixaram Santa Cruz às cinco horas, pouco antes de clarear o dia, com planos de chegar a Rio Pardo ao cair da noite de verão. Antes de deixarem a cidade, o eixo da carreta com rodas de madeira já mugia alto, chamando a atenção de todos, por onde passavam. A longa subida dos Tatsch não diminuiu os ânimos, mas serviu como prenúncio do que estava por vir.
No Centro Imigrantes, a aventura se iniciou no dia 19 de janeiro de 2009. Os campistas contaram com alimentação durante o evento, ao custo de 150 reais.

A carreta de madeira começou a ranger demasiadamente, à medida que os meninos tomaram a estrada velha através do Bairro Dona Carlota. As rodas de pequeno diâmetro se mostraram inapropriadas para aquela estrada. Em algum ponto do caminho, os meninos se depararam com a obra da nova estrada, que encurtaria o percurso em mais de dez quilômetros. A tentação de tomá-la foi demais. Seguiram pela nivelada estrada nova de barro vermelho. Não perceberam, de imediato, que não havia viva alma nas margens da nova estrada, pois ela cruzava apenas fazendas de criação de gado.

No Campus Party tudo era emoção. As conexões de rede permitam a comunicação, em assombrosa velocidade, com as pessoas sentadas na barraca ao lado. A sensação de compartilhamento de experiências, em rede, causou êxtase geral. Muitos campistas conheceram outras pessoas, ao vivo, pela primeira vez na vida.

O sol castigava impiedosamente os meninos. Não havia filtro solar. A única proteção era o chapéu escoteiro de abas largas, em estilo canadense. Exaustos, pararam para o almoço. A manteiga e o queijo dos sanduíches haviam derretido. Contudo, a fome era maior. Maior mesmo, era a sede. Os cantis começaram a ficar ameaçadoramente leves, e não havia onde enchê-los. O ranger do eixo acordou o gado, num raio de quilômetros. Nada havia nada, além de gado e terra vermelha, que logo se transformou em barro vermelho. Após um pavoroso estertor, o eixo da carreta de madeira se quebrou. Não lhes restou alternativa senão empilhar as duas carretas, apesar do temor de que os raios das rodas não suportassem o peso adicional. As rodas de bicicleta atolavam no barro vermelho, e cada quilômetro cobrava um alto preço.

As palestras temáticas dominaram as tardes, no Centro Imigrantes, e as baladas se estendem noites adentro. Não havia tempo, nem ambiente, para dormirem. Personalidades desfilavam entre os palcos de eventos.

Quando a noite surgiu, os meninos se viram cercados pela completa escuridão. Afora algum vaga-lume, tudo era breu. Resolveram passar a noite, lá mesmo, à beira da estrada deserta. Jantaram o resto do pão, à luz de lampiões. Ninguém conseguiu dormir. Após duas horas de tentativas, desistiram e seguiram viagem no escuro. O cansaço e a sede não foram páreo para a angústia de passarem a noite em meio ao nada silencioso e desconhecido. Hoje, é difícil descrever aquelas horas de lento e penoso avanço na presumida direção de Rio Pardo. O silêncio desconcertava tanto quanto a escuridão.

O dia virou noite, e vice-versa, no Centro Imigrantes. Havia demais para ser feito em tão pouco tempo. A sucessão de shows e palestras dividia as atenções dos campistas modernos. Networking era a tônica.

O nascer do sol do dia seguinte foi recebido com misto de alegria e receio. Alegria porque os meninos voltaram a encontrar o caminho com mais facilidade. Receio porque a sede e as queimaduras de sol aumentariam. Um córrego surgiu, em meio do absoluto nada. Os meninos mergulharam naquela água e encheram seus cantis. Aquilo lhes deu renovado ânimo. Nem o touro enfurecido conseguiu demovê-los de seguirem adiante. Alguém havia levado uma garrucha artesanal, que, em meio à fumaceira, fez o taurino parar.

Em São Paulo, Jon “Cachorro Louco” Hall, fundador do Open Source International, andava entre os campistas, tirando fotos e dando entrevistas.

Em Ramiz Galvão, entrada norte de Rio Pardo, o grupo trôpego de escoteiros extenuados empurrava sua carreta restante morro acima. Faltava pouco, apenas alguns quilômetros, para o destino. Alguns curiosos assistiram à passagem daqueles meninos fardados de cáqui. Os pés mostravam o barro vermelho. O que mais chamava a atenção, certamente, era a pilha de carrinhos, escorada pelos dois lados.

Os campistas de São Paulo exibiam seus notebooks com placas aceleradoras de tudo, até do pensamento. O calor emanado pelos circuitos era o limite. A praça de alimentação satisfez as necessidades alimentícias dos campistas.

Os meninos chegaram, finalmente, à Praia dos Ingazeiros, de onde partiram, a bordo de canoas, para a ilha do outro lado do Rio Pardo. Exaustão era eufemismo para o sentimento generalizado. Passava das quatro da tarde, quando alguém pensou em preparar um substancioso arroz de carreteiro de lingüiça defumada. Pensou, pois o saco do café se rebentou na viagem, misturando-se com o saco de papel do arroz. De nada adiantou lavá-lo no rio. Foi um carreteiro de café. Após mais de 30 horas de caminhada.

O Campus Party se encerrou no dia 25 de janeiro de 2009. Quem dele participou, certamente terá o que contar para os seus netos. Foi muita aventura e emoção. Nada como acampar!

Aqueles meninos, Paulo, Pedro, Ernesto, Vilmar, Mocki, Mário, Abdul e Sergio dormiram o sono dos guerreiros, após a batalha. Não voltaram a pé. Um caminhão do Exército os retornou à Santa Cruz. Possivelmente, só eles mesmo entenderão tal odisséia. Nada parecido com aquela do Campus Party 2009.

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26.1.09

499,999 e 3/4 - À espera de uma oportunidade


Foto: Wikipedia
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À espera de uma oportunidade

Por Paulo Heuser

Muitos são pegos de surpresa pela aposentadoria. São atropelados. A data chega, sem que se dêem conta. Outros, mais previdentes, planejam cuidadosamente o seu futuro. Há muito no que pensar. Qual modelo de pijama listrado estará em moda? As pantufas terão orelhas de camundongo? Esses felizardos nem sentem a mudança. No dia D, acordam cedo e vestem o reluzente pijama listrado. A partir de então, deliciam-se olhando pela janela, de segunda à sexta. O que fazem aos sábados e domingos? Não sei, devem descansar.

Quando o dia chegar, estarei preparado. Venho treinando para me tornar um esperador profissional. Sem pijamas, sem pantufas, bem entendido. Esperarei de uniforme. Pensei num modelito básico, feito com tecido listrado cinza e branco, com calças e camisa folgadas. Algo cômodo, como seria de se esperar. Nos pés, nada de orelhas de camundongo. De elefante, quem sabe?

O que me tornará profissional, é a prestação do serviço de espera. Não esperarei por mim, esperarei pelos outros, não, nem pelos outros, esperarei pelos que os outros esperam. A oportunidade surgiu quando escrevi A Vida em Dois Turnos, texto que falou da inconciliável agenda dos usuários e fornecedores de serviços. Tudo acontece em dois turnos, e os usuários vêem-se obrigados a esperar, esperar e esperar. Sem estarem aposentados, na maioria dos casos. Os coitados não têm nem o pijama listrado! O que os não-aposentados não têm, que os aposentados têm? Além do pijama, é claro. É o tempo. Os aposentados têm turnos livres para qualquer gosto. Entrarei nesse nicho de mercado, ainda inexplorado. Prestarei serviços de espera. A coisa funcionará assim: o cliente agendará a visita de algum técnico das prestadoras de serviços, como TV a cabo e telefonia, e vai trabalhar tranqüilo, pois eu estarei lá esperando. Não fumo, não cuspo no chão e não como pão sem prato embaixo. Ou seja, além de esperar, não emporcalharei a casa do cliente.

Serei o mui bastante esperador do cliente. Darei palpites, quando tratarem de orçamentos de reformas, fiscalizarei a qualidade do sinal, quando fizerem manutenções técnicas de TV a cabo. Há um subnicho desse mercado que não passou despercebido. Quantas pessoas adotam animais de estimação para terem alguém lhes esperando em casa? Proverei serviços diferenciados de espera pelos donos da casa solitários. Chegarei à casa do cliente, com alguns minutos de antecedência, e esperarei a chegada dele. Então, abrirei um grande sorriso, dar-lhe-ei as boas-vindas e me despedirei. Ainda avalio o serviço oposto: a despedida do cliente. Chegarei e esperarei o cliente sair, para que ele tenha de quem se despedir. Nada impede a prestação de serviços combinados, como o pacote Despedida-Recepção. Tudo bem baratinho, pois aposentado tem tempo de sobra.

Fiz uma simulação da prestação do serviço de espera profissional pelos provedores de serviços. Como eu precisava mesmo de um serviço de manutenção, deixei um aposentado esperando pelo pessoal que faria os orçamentos. Dos sete profissionais, cujas visitas agendei, quatro não vieram, dois erraram o turno da visita, e o que efetivamente veio recusou-se sequer a orçar a empreitada, pois, nas palavras dele, aquilo daria muito trabalho. Cheguei a pensar em prover serviços de manutenção, depois de aposentado, já que não há quem os faça. Porém, isso me tiraria a condição de aposentado. Melhor esperar.

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21.1.09

499,999 e 1/2 - A campanha


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A campanha

Por Paulo Heuser


A campanha já começou. Aliás, ela nunca terminou. A campanha eleitoral é um contínuo abalado, de quando em quando, pelas eleições. Os abalos periódicos não significam o retorno à estaca zero, pois cada pleito é um pleito diferente. Novos jogadores, novo público, novo cenário, tudo contribui para implicar investimentos crescentes nas campanhas eleitorais. Por mais que a história e a estatística apóiem as decisões dos marqueteiros favoritos, sempre há o fator surpresa: a zebra que se revela favorita, no último instante, quando se faz tarde para reação.

O bom coordenador de campanha olha dois pleitos à frente. Em 2006, pensava em 2014, em 2010, pensará em 2018. Faz parte do planejamento. Há também de pensar nas não tão eventuais pedras no caminho. Pedras grandes, por vezes. Portanto, além do Plano A, se faz necessário um Plano B. Um plano de contingência.

As corridas de resistência mostraram a utilidade de um corredor afoito, que faz às vezes de lebre. Ele corre como um louco, já no início da competição, arrastando os incautos atrás de si. Cansados prematuramente eles logo abandonam a disputa pelas primeiras posições, assim como a lebre que dá lugar à corrida vitoriosa de algum colega de equipe que guardou suas forças para a disparada da última volta. Como a oposição logo percebe essas manobras, a tarefa de chegar à frente torna-se cada vez mais complexa. É preciso inovar, sempre.

Uma tática eficaz pode ser a do candidato papagaio de pirata. Ele anda grudado no presidente, feito peixe-piloto no tubarão, e a ele são contabilizadas as realizações do governo. Durante a travessia dos mares tempestuosos da campanha, os candidatos dessa espécie são transformados esteticamente em modelos que atraem votos. Não só a aparência física se modifica, através de procedimentos cosmetológicos e cirúrgicos, como também o seu comportamento em público. Candidatos excessivamente sisudos deixam de rosnar e passam a sorrir. Após alguns anos de campanha, ninguém mais consegue reconhecê-los nas fotos antigas. Uma boa equipe consegue transformar o Charles Bronson no George Clooney e a Rossy de Palma na Nicole Kidman.

Se o candidato papagaio de pirata não emplaca, sempre há como fazer alguns acordos e conchavos para reeleger o titular popular. Uma alteração constitucional aqui, outra ali, e pronto, mantêm-se o que deu certo. É o Plano B enrustido, com a vantagem de manter o titular refratário aos ataques oposicionistas, focados no candidato papagaio de pirata. Se não ganha um, ganha outro.

Há quem afirme ter ouvido o seguinte diálogo:

- Fizemos tudo certo. Você esteve ao meu lado durante 357 viagens com 2976 inaugurações, segurou 18732 crianças no colo, parou de morder e passou a sorrir, emagreceu, arrumou o cabelo, fez lifting, peeling e lanternagem geral. Não lhe faltou dinheiro para obras sociais. Hoje você é mais candidata do que qualquer outro. Tenho a mais absoluta convicção de que vencemos as resistências internas e externas. Nunca ninguém antes neste País foi tão candidata como você é hoje.

- Não sei, Presidente. Sempre há o fator surpresa...

- Não desta vez. Façamos um teste. Perguntaremos ao primeiro que passar sobre suas intenções de voto.

João vinha distraído, carregando sua mala de ferramentas, no seu caminho para consertar a janela emperrada do palácio. O Presidente sorriu ao vê-lo. Alguém do povo. Ótimo, pensou, ninguém melhor para servir à pesquisa de intenção de voto.

- Rapaz, como é o seu nome?

- João, senhor.

- Você sabe quem sou eu?

- Claro, o senhor é o Presidente!

- E ela, você sabe quem é?

- Claro! É a mãe do... como é mesmo o nome daquela coisa que dá dinheiro?

- Então, diga-me, em quem você votará para Presidente, na próxima eleição?

- Barbada! Obama, na cabeça!

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20.1.09

499,499 - A classe média XVII: O terrorista


Foto: Paulo Heuser
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A classe média XVII – O terrorista

Por Paulo Heuser


A história iniciou como as 16 anteriores. O sol nasceu sobre o cinamomo, as vacas pulavam de galho em galho, enquanto os passarinhos pastavam alegremente. Padre Antão observava a falta de movimento, enquanto a beata Dona Clotilde fazia experimentos para tentar obter vinho de missa espumante. Beberia estrelas, caso conseguisse. O crescido terneiro mugia, sabia-se lá por que.

O primeiro a ver a coluna de poeira levantada pelo jipe do MINTE – Ministério do Terrorismo Estrangeiro - foi Padre Antão, que se pôs a tocar o sino, como de costume nessas ocasiões. Linoberto largou o que fazia na roça e correu para o Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos, sede do Município do Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média não-estatística do IBGE. O sétimo dos 12 irmãos, o Prefeito, já esperava os visitantes à porta. Como sempre, a missão oficial veio capitaneada pelo Estranho – o único representante do Governo a encontrar o Lado de Cá do Cinamomo. O Estranho veio acompanhado do Chefe da Divisão de Importação de Terroristas Italianos, Signore Va Di Quattro, e do renomado escritor e ativista italiano Bracciolo Batticciola, recém-asilado pelo Governo, cujo pescoço andava a prêmio na Itália.

Feitas as apresentações de praxe, sentaram-se à mesa e beberam as protocolares doses da “boa”, a aguardente local. Até então, tudo igual à antes. Quattro e Batticciola quase morreram, etc, etc. Após as amenidades, o Estranho falou do motivo da vinda da missão oficial do MINTE:

- Bem, como vocês já devem ter ouvido falar, o Sr. Batticcila recebeu asilo político do Governo e poderá residir e trabalhar no País. Por questões de segurança, o local escolhido para sua residência foi o Lado de Cá do Cinamomo.

- Por quê? – interveio Linoberto.

- Nosso governo teme pela segurança do asilado, pois forças estrangeiras poderão eventualmente tentar seqüestrá-lo para sua extradição informal. Aqui ele ficará seguro, já que nenhum agente estrangeiro conseguirá encontrá-lo.

Padre Antão quebrou seu silêncio:

- Ora, o que esse homem poderá fazer aqui? Somos uma pacata comunidade de agricultores e alambiqueiros. Acredito na segunda oportunidade, para que um homem se regenere, mas o que esse escritor poderá fazer aqui?

O Estranho respondeu:

- Veja, o Sr. Batticciola é um intelectual revolucionário. Ele certamente poderá contribuir para o aperfeiçoamento das instituições sociais daqui.

- Como? – perguntou o Sétimo, o prefeito, até então calado.

Batticciola aproveitou a deixa e partiu para as explicações, num misto de português com italiano.

- Vedete, signori. Eu sou um agente do proletariado mundial e poderei libertá-los do jugo imperialista, através da dialética proletária armada! – ele sorria e esfregava as mãos, como que se deliciando com o que dizia.

- Que dialética é essa? – perguntou-lhe Linoberto.

- É mais rápida e direta do que a convencional. Todos expõem seus pontos de vista. Se concordarem com o meu, ótimo. Caso contrário, faço explodi-los. Crapooou! Capite? – entendem?

- Isso é terrorismo! – protestou Padre Antão.

- É uma forma de levar a voz do povo ao poder. Eu sou o povo. Portanto, sou o poder! – disse Batticciola, com evidente satisfação.

Linoberto expôs a opinião de todos residentes que lá estavam:

- Nós não podemos impedi-lo de viver aqui, já que o Governo lhe concedeu o asilo político. Queremos deixar claro, no entanto, que essa idéia não nos agrada nem um pouco.

Do lado de fora, o terneiro mugiu, talvez de contestação, talvez de proliferação.

Maria deixou o tear de lado quando percebeu que Linoberto limpava o barro das botas no estribo da entrada da casa. Ela já ouvira as fofocas sobre a chegada do Estranho.

- E então, Lino? Como foi? O tal terrorista virá morar aqui?

- Viria morar, Maria, viria.

O jipe do MINTE deixou outra coluna de poeira, que sumiu atrás do cinamomo.

Linoberto olhou Maria com misto de adoração e diversão. Ele adorava o jeito ansioso dela perguntar pelo que havia acontecido.

- Não vai mais, Lino? – Maria deu um pulinho enquanto falava.

- Não, Maria. Ele disse que queria fazer aqui o mesmo que fazia lá. Libertar-nos-ia da opressão dos poderosos imperialistas. Faria comícios, passeatas, greves e ataques às instituições que não representam o povo.

- Credo, Lino! Esse sujeito é muito perigoso! Como fizeram para que ele fosse embora?

- Ele quis. – Linoberto disse sorrindo. E concluiu:

- Quando ele percebeu que o Lado de Cá do Cinamomo não apresenta grandes desníveis econômicos e sociais, ficou desesperado e foi embora com o Estranho. É um revolucionário que não pode viver sem revolução. Prefere correr o risco de viver do lado de lá, onde poderá exercer sua militância. Ele disse que nunca poderia viver num lugar como o Lado de Cá. O que faria aqui? Contra o que lutaria? Aqui não há moinhos de vento.

O sol já se punha, enquanto o crescido terneiro mugia, talvez de emoção, talvez de perversão.

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14.1.09

499,998 - D'aquém e d'além



Foto: Wikipedia
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D’aquém e d’além

Por Paulo Heuser


Eu andava meio chateado. Agora, ando muito. Alguém ligava para o meu telefone, várias vezes por dia, e nada falava, quando eu atendia. Era de um número de São Paulo que se repetia em variantes crescentes. Começava pelo final 40, seguia pelo 41, até o 45. Todos os dias, impiedosamente. Coisa de serial caller – telefonador serial. Cheguei a retornar a ligação, em vão, pois recebi a informação de que aqueles números não existiam. A tecnologia é algo extraordinário! Ligavam-me do além, certamente.

Hoje, a coisa se repetiu. O relógio batia as 12h30, quando o número inexistente me ligou novamente. Porém, desta vez, veio uma voz, através dos fios Wi-Fi:

- Alô! Sr. Erasmo?

- Não.

- Não?

- Não.

- Sr. Erasmo, meu nome é Patrícia e falo em nome da seguradora Brucuthu-Charolês. Nós temos a satisfação de lhe comunicar que criamos um convênio com o seu plano de saúde, que gentilmente nos forneceu o seu cadastro.

- Como? Eles forneceram o meu cadastro?

- Sim, gentilmente.

- Como, fizeram isso sem minha autorização?

- Bem, isso é um problema entre eles e o senhor!

- Bem, considerando que eu não me chamo Erasmo, tudo bem.

- Sr. Erasmo, se o cadastro gentilmente fornecido diz que o senhor é o Sr. Erasmo, o senhor é.

- Não sou!

- O senhor apenas pensa que não é. Recomendamos-lhe uma releitura da sua certidão de nascimento, pois o cadastro do plano de saúde não falha.

- Não sou, não sou e não sou!

- Sr. Erasmo, temos a satisfação de lhe comunicar que o seu plano de saúde e a Brucuthu-Charolês uniram suas forças para criarem o plano D’aquém-D’além. O senhor e os seus passarão a contar com o nosso apoio, aqui e lá.

- Lá?

- Sim, Sr. Erasmo, o senhor sabe... no caso de passagem.

- Passagem aérea? É seguro de viagem?

- Não exatamente, Sr. Erasmo, é a passagem para o outro lado, sabe como é, não sabe?

- Não.

- Não, como?

- Apenas não. Não, simples e negativo.

- Percebo, Sr. Erasmo, o senhor gosta de falar através metáforas inversas.

- Não.

- Percebo, Sr. Erasmo. Se o senhor for um dos primeiros mil clientes do novo plano, estaremos lhe assegurando a opção Ida Mais Platinum.

- O que é isso?

- É o nosso exclusivo e sofisticadíssimo plano de passagem superior. Nada se compara a ele. Somos os únicos a fornecer drinque de boas vindas na chegada ao outro lado.

- Chegada?

- O senhor percebe, do outro lado...

- Como é que vocês podem assegurar algo que nem sabem se existe?

- Pela satisfação de cem por cento dos nossos clientes Ida Mais Platinum. Nenhum deles reclamou!

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8.1.09

499,997 - Os extremistas



Fonte: Wikipedia
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Os extremistas

Por Paulo Heuser


Eu já deveria estar escrevendo à luz do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, porém, uma seqüência de eventos adiou sine die a minha estréia nas novas regras. A resistência à mudança contribuiu, é claro. Contudo, houve mais. Eu ainda não comprei um dicionário adaptado às novas regras. Certo, não é uma desculpa muito aceitável. Então, vamos aos eventos decisivos.

Tudo se precipitou no horário do almoço. Como eu não havia trazido o sanduba, tive de sair à luta para encontrar algum restaurante aberto, em plena sexta-feira, nada plena, do feriadão de Ano Novo. Após topar com muitas portas cerradas, encontrei meu amigo Zé, que também andava a cata de um lugar para aplacar o tédio das lombrigas. Unimos nossas forças e encontramos um três mosquinhas aberto. Na classificação gastronômica do Centro, de um a sete, quanto mais mosquinhas tiver, mais sujo é. Havia de tudo um pouco, lá dentro. Pulei o prato do dia – língua a milanesa com molho de croquete, a opção do Zé – e pedi o ala minuta, enquanto observava os ocupantes das mesas ao redor. Fauna eclética aquela, típica do Centro.

Entre famílias, proto-executivos, estafetas e um casal que, aparentemente, estendera a noitada, havia um sujeito que dava dó, só de olhar. Ele estava tão visivelmente abatido que chamava a atenção de todos. O evidente abatimento lhe aumentava a idade aparente em pelo menos dez anos. A sua frente repousava um copo de alguma bebida forte. Tão forte, que até as moscas evitavam os pingos derramados sobre a mesa. Do nada, o sujeito abatido soltou uma histérica gargalhada, misto de escárnio e desdém. E explicou o motivo do riso:

- Depois dizem que os portugueses são burros! Eles assinaram o acordo, mas o empurrarão com a barriga até 2012. Então, dirão que precisam de mais três anos. E nós que sofremos...

- Sofremos por quê? – interveio um rapazote vestido de proto-executivo.

- Porque perdemos a Língua. Falaremos como estrangeiros, no nosso próprio País!

- Também não é para tudo isso! Ninguém se importa com isso...

- Como não? – urrou o velho – Eu me importo, e muito! Eu fabrico lingüiças há 50 anos! O que passarei a fabricar? Linguiças? Quem comerá tal porcaria? Eu, Günther Hübner Müller, tenho tradição de meio século no fabrico das Lingüiças Müller, iniciada pelo meu avô Türkisch für Anfänger Märchen. Ele fundou a Lingüiças Märchen, que deu origem às Lingüiças Müller. O que será de mim, sem os tremas? Tremo, só de pensar!

- Ora, não mudará nada, seu nome continuará com os tremas...

- Como não? Você já pensou em comer uma linguiça?

- É, tem razão, dá nojo só de pensar, mesmo sendo Müller.

- Estou arruinado! – o homem escondeu a cabeça entre as mãos – Ainda terei um enfisema cerebral!

Algo estranho ocorreu, então. Após um constrangido silêncio, quebrado apenas pelos soluços do Günther, o Zé proclamou a fundação do Movimento dos Ex-tremistas Extremistas. Todos escreverão – pelo menos os que sabem – utilizando a regra ortográfica anterior, numa espécie de desobediência ortográfica civil. Entre goles e garfadas, eles criaram uma simbologia toda própria, que permitirá o reconhecimento mútuo dos confrades dessa agremiação secreta.

Se eles lograrão êxito, não sei. Talvez, daqui a umas centenas de anos, os sábios tentarão descobrir a origem daqueles pontinhos nas assinaturas de determinadas pessoas. Coisas dos Cavaleiros Tremários, com certeza.

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1.1.09

499,996 - A sombra


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A sombra

Por Paulo Heuser


O tipo físico não o destaca. Trata-se de um homem branco, na casa dos sessenta e muito, esguio, alto, e de aparente ascendência espanhola. Até aí, nada demais. Ele difere muito dos outros no acabamento. Usa longos cabelos grisalhos encaracolados, geralmente presos em rabo-de-cavalo. O que mais chama a atenção nele, porém, são os óculos Rayban, clássicos da década de sei lá quando. Cinqüentas ou sessentas, creio. O conjunto lembra uma Janis Joplin envelhecida. O homem está fisicamente nos trinques. Pudera, ele passa o dia correndo. Se eu o houvesse visto apenas uma ou duas vezes, tudo bem, dificilmente me lembraria dele. Contudo, incrivelmente, o vi quase todos os dias. A versão masculina e envelhecida da Janis Joplin cruzou meu caminho quase todos os dias! Não sei quem é ele, o que faz – além de correr -, de onde vem e para onde vai.

Basta eu sair para caminhar, e lá está ele. Vou ao clube, e lá está ele. Vou ao mercado, ao velório, à procissão, ao cinema, e lá está ele. Seria uma transfiguração distorcida da minha sombra? Coincidências existem, bem como existe déjà vue, porém, aquilo já passou dos limites aceitáveis do que pode se chamar de casualidade. Lembrei-me de uma viagem de férias que fiz, quando jovem, parando de praia em praia do litoral catarinense. Meus amigos e eu ficamos muito espantados, pois em várias praias daquele estado havia casais rechonchudos tripulando DKWs verdes com logotipos da Coca Cola pintados nas portas. Lá pelas tantas, constatamos que era apenas um DKW, tripulado por um casal rechonchudo, que fazia a mesma viagem que havíamos planejado. Coincidência, apenas. Seria o caso do Janis Joplin dos Pampas? O destino fez com que fizéssemos as mesmas coisas, nos mesmos horários?

Anteontem cruzei com o Janis Joplin na Cel. Bordini. Fingi não vê-lo, como ele também fingiu não me ver. Quando cruzamos, fingi observar o movimento dos carros na rua, enquanto ele fingia ler o que estava escrito numa placa comemorativa de bronze colocada na entrada de um prédio. Eu já suspeitava disso, mas foi então que confirmei, com absoluta certeza, que o Janis Joplin me seguia. Foi fácil desmascará-lo, pois ninguém, ninguém mesmo, lê uma placa comemorativa após sua inauguração. Só os espiões. O Janis Joplin me seguia, mesmo vindo em sentido contrário? Convenhamos, seguir alguém, fugindo dele, é uma tática que dissimula as aparentes intenções. Muito inteligente.

Ontem, eu descia a Lucas de Oliveira. Quando cheguei à esquina da Anita Garibaldi, quem subia a Lucas? O próprio. Aquilo foi a gota d’água. Eu não poderia adentrar 2009 sem saber por que o Janis Joplin me seguia. Respirei fundo, fui na direção dele e cheguei a abrir a boca para interpelá-lo, quando ele me perguntou por que, afinal, eu o seguia.

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