20.1.09

499,499 - A classe média XVII: O terrorista


Foto: Paulo Heuser
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A classe média XVII – O terrorista

Por Paulo Heuser


A história iniciou como as 16 anteriores. O sol nasceu sobre o cinamomo, as vacas pulavam de galho em galho, enquanto os passarinhos pastavam alegremente. Padre Antão observava a falta de movimento, enquanto a beata Dona Clotilde fazia experimentos para tentar obter vinho de missa espumante. Beberia estrelas, caso conseguisse. O crescido terneiro mugia, sabia-se lá por que.

O primeiro a ver a coluna de poeira levantada pelo jipe do MINTE – Ministério do Terrorismo Estrangeiro - foi Padre Antão, que se pôs a tocar o sino, como de costume nessas ocasiões. Linoberto largou o que fazia na roça e correu para o Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos, sede do Município do Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média não-estatística do IBGE. O sétimo dos 12 irmãos, o Prefeito, já esperava os visitantes à porta. Como sempre, a missão oficial veio capitaneada pelo Estranho – o único representante do Governo a encontrar o Lado de Cá do Cinamomo. O Estranho veio acompanhado do Chefe da Divisão de Importação de Terroristas Italianos, Signore Va Di Quattro, e do renomado escritor e ativista italiano Bracciolo Batticciola, recém-asilado pelo Governo, cujo pescoço andava a prêmio na Itália.

Feitas as apresentações de praxe, sentaram-se à mesa e beberam as protocolares doses da “boa”, a aguardente local. Até então, tudo igual à antes. Quattro e Batticciola quase morreram, etc, etc. Após as amenidades, o Estranho falou do motivo da vinda da missão oficial do MINTE:

- Bem, como vocês já devem ter ouvido falar, o Sr. Batticcila recebeu asilo político do Governo e poderá residir e trabalhar no País. Por questões de segurança, o local escolhido para sua residência foi o Lado de Cá do Cinamomo.

- Por quê? – interveio Linoberto.

- Nosso governo teme pela segurança do asilado, pois forças estrangeiras poderão eventualmente tentar seqüestrá-lo para sua extradição informal. Aqui ele ficará seguro, já que nenhum agente estrangeiro conseguirá encontrá-lo.

Padre Antão quebrou seu silêncio:

- Ora, o que esse homem poderá fazer aqui? Somos uma pacata comunidade de agricultores e alambiqueiros. Acredito na segunda oportunidade, para que um homem se regenere, mas o que esse escritor poderá fazer aqui?

O Estranho respondeu:

- Veja, o Sr. Batticciola é um intelectual revolucionário. Ele certamente poderá contribuir para o aperfeiçoamento das instituições sociais daqui.

- Como? – perguntou o Sétimo, o prefeito, até então calado.

Batticciola aproveitou a deixa e partiu para as explicações, num misto de português com italiano.

- Vedete, signori. Eu sou um agente do proletariado mundial e poderei libertá-los do jugo imperialista, através da dialética proletária armada! – ele sorria e esfregava as mãos, como que se deliciando com o que dizia.

- Que dialética é essa? – perguntou-lhe Linoberto.

- É mais rápida e direta do que a convencional. Todos expõem seus pontos de vista. Se concordarem com o meu, ótimo. Caso contrário, faço explodi-los. Crapooou! Capite? – entendem?

- Isso é terrorismo! – protestou Padre Antão.

- É uma forma de levar a voz do povo ao poder. Eu sou o povo. Portanto, sou o poder! – disse Batticciola, com evidente satisfação.

Linoberto expôs a opinião de todos residentes que lá estavam:

- Nós não podemos impedi-lo de viver aqui, já que o Governo lhe concedeu o asilo político. Queremos deixar claro, no entanto, que essa idéia não nos agrada nem um pouco.

Do lado de fora, o terneiro mugiu, talvez de contestação, talvez de proliferação.

Maria deixou o tear de lado quando percebeu que Linoberto limpava o barro das botas no estribo da entrada da casa. Ela já ouvira as fofocas sobre a chegada do Estranho.

- E então, Lino? Como foi? O tal terrorista virá morar aqui?

- Viria morar, Maria, viria.

O jipe do MINTE deixou outra coluna de poeira, que sumiu atrás do cinamomo.

Linoberto olhou Maria com misto de adoração e diversão. Ele adorava o jeito ansioso dela perguntar pelo que havia acontecido.

- Não vai mais, Lino? – Maria deu um pulinho enquanto falava.

- Não, Maria. Ele disse que queria fazer aqui o mesmo que fazia lá. Libertar-nos-ia da opressão dos poderosos imperialistas. Faria comícios, passeatas, greves e ataques às instituições que não representam o povo.

- Credo, Lino! Esse sujeito é muito perigoso! Como fizeram para que ele fosse embora?

- Ele quis. – Linoberto disse sorrindo. E concluiu:

- Quando ele percebeu que o Lado de Cá do Cinamomo não apresenta grandes desníveis econômicos e sociais, ficou desesperado e foi embora com o Estranho. É um revolucionário que não pode viver sem revolução. Prefere correr o risco de viver do lado de lá, onde poderá exercer sua militância. Ele disse que nunca poderia viver num lugar como o Lado de Cá. O que faria aqui? Contra o que lutaria? Aqui não há moinhos de vento.

O sol já se punha, enquanto o crescido terneiro mugia, talvez de emoção, talvez de perversão.

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