8.1.09

499,997 - Os extremistas



Fonte: Wikipedia
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Os extremistas

Por Paulo Heuser


Eu já deveria estar escrevendo à luz do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, porém, uma seqüência de eventos adiou sine die a minha estréia nas novas regras. A resistência à mudança contribuiu, é claro. Contudo, houve mais. Eu ainda não comprei um dicionário adaptado às novas regras. Certo, não é uma desculpa muito aceitável. Então, vamos aos eventos decisivos.

Tudo se precipitou no horário do almoço. Como eu não havia trazido o sanduba, tive de sair à luta para encontrar algum restaurante aberto, em plena sexta-feira, nada plena, do feriadão de Ano Novo. Após topar com muitas portas cerradas, encontrei meu amigo Zé, que também andava a cata de um lugar para aplacar o tédio das lombrigas. Unimos nossas forças e encontramos um três mosquinhas aberto. Na classificação gastronômica do Centro, de um a sete, quanto mais mosquinhas tiver, mais sujo é. Havia de tudo um pouco, lá dentro. Pulei o prato do dia – língua a milanesa com molho de croquete, a opção do Zé – e pedi o ala minuta, enquanto observava os ocupantes das mesas ao redor. Fauna eclética aquela, típica do Centro.

Entre famílias, proto-executivos, estafetas e um casal que, aparentemente, estendera a noitada, havia um sujeito que dava dó, só de olhar. Ele estava tão visivelmente abatido que chamava a atenção de todos. O evidente abatimento lhe aumentava a idade aparente em pelo menos dez anos. A sua frente repousava um copo de alguma bebida forte. Tão forte, que até as moscas evitavam os pingos derramados sobre a mesa. Do nada, o sujeito abatido soltou uma histérica gargalhada, misto de escárnio e desdém. E explicou o motivo do riso:

- Depois dizem que os portugueses são burros! Eles assinaram o acordo, mas o empurrarão com a barriga até 2012. Então, dirão que precisam de mais três anos. E nós que sofremos...

- Sofremos por quê? – interveio um rapazote vestido de proto-executivo.

- Porque perdemos a Língua. Falaremos como estrangeiros, no nosso próprio País!

- Também não é para tudo isso! Ninguém se importa com isso...

- Como não? – urrou o velho – Eu me importo, e muito! Eu fabrico lingüiças há 50 anos! O que passarei a fabricar? Linguiças? Quem comerá tal porcaria? Eu, Günther Hübner Müller, tenho tradição de meio século no fabrico das Lingüiças Müller, iniciada pelo meu avô Türkisch für Anfänger Märchen. Ele fundou a Lingüiças Märchen, que deu origem às Lingüiças Müller. O que será de mim, sem os tremas? Tremo, só de pensar!

- Ora, não mudará nada, seu nome continuará com os tremas...

- Como não? Você já pensou em comer uma linguiça?

- É, tem razão, dá nojo só de pensar, mesmo sendo Müller.

- Estou arruinado! – o homem escondeu a cabeça entre as mãos – Ainda terei um enfisema cerebral!

Algo estranho ocorreu, então. Após um constrangido silêncio, quebrado apenas pelos soluços do Günther, o Zé proclamou a fundação do Movimento dos Ex-tremistas Extremistas. Todos escreverão – pelo menos os que sabem – utilizando a regra ortográfica anterior, numa espécie de desobediência ortográfica civil. Entre goles e garfadas, eles criaram uma simbologia toda própria, que permitirá o reconhecimento mútuo dos confrades dessa agremiação secreta.

Se eles lograrão êxito, não sei. Talvez, daqui a umas centenas de anos, os sábios tentarão descobrir a origem daqueles pontinhos nas assinaturas de determinadas pessoas. Coisas dos Cavaleiros Tremários, com certeza.

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1 Comments:

At sexta-feira, 16 janeiro, 2009, Anonymous Anônimo said...

concordo!!!
muito boa!

 

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