3.12.08

498 - A mulher que varre


Foto: Wikipedia
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A mulher que varre

Por Paulo Heuser


Era uma mulher. Tanto faz, poderia ser um homem. Ela varria a calçada perigosamente coberta pelas milhares de flores do ipê-amarelo da primavera. Flor de ipê na calçada é a beleza que dá tombo. Ela varria paralelamente à rua, no centro da calçada, e deixava um trilho vazio atrás de si. Não havia nada nem ninguém que escapasse das vassouradas rítmicas e furiosas. A mulher magra e mal-cuidada andava curvada para frente, com os cabelos em desalinho amarrados em rabo, no topo da cabeça. O movimento ritmado da vassoura era acompanhado pelo movimento dos cabelos, em estranha harmonia. A quem passava, ela respondia, mesmo antes de qualquer pergunta:

- Varro porque me mandaram varrer. Não olho o que varro, apenas varro. Fui paga para varrer, portanto varro. Quem ficar no caminho, varrido será!

Varre há muito. Só trocaram o nome das flores, a da caliandra deu lugar a do ipê, que deu lugar a do jacarandá, que deu lugar a da caliandra. Outros nomes, mesma flor, apesar de diferentes. É a flor que dá tombo. A mulher continuou varrendo as flores da primavera da república que nunca vê verão. Ela varre as flores, desde a Velha República, as comunistas à esquerda, as integralistas à direita. Nada lhe escapa. Varreu as flores da Intentona, as do Plano Cohen e as do Estado Novo. Vez por outra, ela deixa escapar frases desconexas, do nada:

- O Brasil está em pé, vigilante e disposto a tudo empenhado na conquista de seu destino imortal!

Sempre houve flores a varrer, flores que dão tombo se não varridas. Ela não sabia para onde varrer as flores do Eixo e deixou a cobra fumar. As flores da República Nova ficaram para trás, as de Vargas para um lado, as de Dutra para outro. Em 50, varreu as espinhosas flores do Maracanazo. Em 54, varreu as flores do luto, na calçada do Catete. Em 55, varreu 50 anos em 5, e passou, em 60, às novas calçadas cobertas pelas caliandras da República do cerrado. Nova casa, novas flores, porém as mesmas, as que dão tombo se não varridas.

E assim ela seguiu a varrer. Aquilo não se parece apenas com um emprego, e sim uma compulsão. O que leva aquela mulher a varrer daquele jeito? Apenas o salário? Não. Há algo mais. Como que a responder, ela passou a cantar:

Varre, varre, varre, varre vassourinha
varre, varre a bandalheira
que o povo já tá cansado
de sofrer dessa maneira
Jânio Quadros é a esperança desse povo abandonado!

Varreu biquínis para um lado, Che Guevara o para outro. Não lhe escaparam as flores do parlamentarismo nem do presidencialismo. De Goulart a Magalhães Pinto, a vassoura continuou a varrer impiedosamente as flores da nova Arena e do MDB. AI-5 e Araguaia, tudo ficou no caminho da mulher que varria porque a mandaram varrer. Em 68, varreu à esquerda as flores proibidas de Geraldo Vandré, para não dizer que não falava de flores, e varreu à direita, em 70, as flores ufanistas de Dom e Ravel enquanto cantava:

Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo
Ninguém segura a juventude do Brasil

A incansável vassoura seguiu pelos 80, abrindo um trilho sem flores através dos formidáveis anos 80, com Maluf à direita, e o finado Tancredo à esquerda. Varrida a ditadura, surgiram as flores da Nova República e da Constituição Cidadã. A mulher que varria tropeçou, pois não sabia para onde varrer as flores do impedimento de Collor, clamadas tanto pela esquerda como pela direita. Tropeçou, mas continuou a varrer as flores dos repetentes da nova era, um à esquerda, outro também, porém ambos à direita.

Quando a calçada termina, a mulher que varre vira-se e volta a varrer, pois o caminho que trilhou a varrer já exibe as novas flores que o vento da primavera varreu dos galhos da história. Ipês, jacarandás ou caliandras, todas são flores que dão tombos se não varridas.

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