25.11.08

494 - O literal

Foto: Paulo Heuser
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O Literal

Por Paulo Heuser


Quem escreve corre grande risco, simplesmente por não ver a cara de quem lê. E se vê, pode ser tarde demais. O problema reside nas figuras de linguagem que utilizamos para a obtenção de efeitos adicionais na interpretação do leitor. A ironia é muito utilizada na crônica. Há outras figuras de linguagem, no entanto, que mereciam constar nos compêndios de patologia, como no texto: “O sujeito vinha feliz a cantar quando teve um hipérbato fulminante. Pudera, ele sofria de metalepse da hipálage. Suspeita-se também de uma não-diagnosticada anadiplose da epizêuxis.” Quem - que não está prestando algum tipo de concurso - pode se lembrar da epizêuxis? Sei quem: um professor de Português.

O perigo real do uso das figuras de linguagem não vem dos estranhos helenismos, e sim da interpretação que o leitor faz dos textos que as utilizam. Há um tipo de leitor que acredita literalmente no que lê, mesmo após os dois anos de idade. Quando lhes dizem que o tio explodirá de rir, eles imaginam o tio voando aos pedaços enquanto dá gargalhadas. Esse leitor é o Literal, que dificilmente consegue achar graça em uma piada, pois estas costumam carregar muito das sutilezas das figuras de linguagem.

Certa ocasião, escrevi um cardápio alternativo para um restaurante, também alternativo, de frutos do mar. Lá estavam os carros-chefes da moderníssima nova cozinha, como o pâté de foie de morue – patê de fígado de bacalhau -, o risoto de tinta invisível de lula, o lado B do linguado, o pepino do mar em conserva, o leite de peixe-vaca e a levíssima, porém picante, musse de mãe-d’água. Era para rir, porém o Literal leu o cardápio de cabo a rabo sem expressar sentimento algum e perguntou sobre as queimaduras que a musse poderia provocar. Ele nem pestanejou quando passou pelos olhos de peixe morto. O Literal é assim. Ri pouco. A maior parte deles vira operador de telemarketing.

Identificar o Literal é fácil, quando se fala com ele, olho no olho. Percebe-se logo que se trata do Literal, pelas perguntas que faz ou deixa de fazer. A partir da identificação, toma-se cuidado com o que se diz. O tio explodirá de rir, torna-se: o tio rirá bastante. Infelizmente, não há como prever quando o Literal lerá algum texto que escrevemos, como quando escrevi uma crônica sobre esse maravilhoso meio de transporte que é a carroça urbana. Apelando para alguma figura de linguagem, fui soterrado por uma saraivada de invectivas, partidas de um leitor indignado que leu o texto publicado em um jornal. Ele nada entendeu. Tampouco entenderia se eu o avisasse de que a tinta de lula invisível torna-se visível, quando se pingam gotas de limão sobre ela.

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