30.10.08

484 - A classe média XVI – Festum omnium sanctorum

Foto: Wikipedia
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A classe média XVI – Festum omnium sanctorum

Por Paulo Heuser


A chegada do Estranho foi surpresa, desta vez. Chegou sem avisar, pois o telefone do Bar, Armazém e Borracharia 12 Irmãos esteve novamente mudo. E surdo, a bem da verdade. O frenesi atual ficava por conta da beata Dona Clotilde, que preparava a chegada do Dia de Finados seguindo o de Todos os Santos. Padre Antão já fugia, quando a via chegar, pois não agüentava mais a tagarelice, principalmente depois que ela teve a idéia de organizar o tal de Necrotur, uma espécie de trilha no cemitério.

Padre Antão fugia pelos fundos da igreja quando passou o jipe do MINLE – Ministério das Línguas Estrangeiras. Além do Estranho, estavam a bordo um sujeito de terno azul-marinho e um jovem casal. Antes de se dirigir ao 12 Irmãos, sede do progressista Município do Lado de Cá do Cinamomo, último bastião da classe média não-estatística do IBGE, Padre Antão badalou o sino para chamar Linoberto, que se encontrava na roça.

O Estranho cumprimentou a todos e lhes apresentou os estranhos recém-chegados.

- Apresento-lhes o Secretário Nacional Para Assuntos Culturais Norte-Americanos, Mr. Jefferson Silva, e os estagiários em Cultura Neocéltica, Ms. Peggy-Anne Santos e Mr. John Roy Silveira. Eles estão difundindo o Halloween, e o Lado de Cá do Cinamomo é o último local a ser aculturado.

O recém-chegado Linoberto reagiu:

- Aculturado? O que você quer dizer com isso?

Mr. Silva interveio e tomou a palavra:

- Nós participarr do Programa de Aculturamento do Terceiro Mundo e estarr a implantarr hábitos do Primeiro Mundo nos países em desenvolvimento. Nós começarr com USAID e seguirr com margarina, sucrilhos e agora o Halloween, dia que só não serr mais importante do que o fórjulai – 4 de julho. Nós só desistirr da manteiga de amendoim. Quando nós implantarr o Halloween aqui, vocês ganharr Certificado de Conformidade ISO, SAE, PMP, ANSI, NRA e NBA. Tudo estarr conforme uma Portaria Ministerial.

- Para o que servirá isso? – perguntou o Sétimo, atual prefeito reeleito.

- Oh, com essa certificação os cidadãos do Çainamomo’s This Side poderão obterr vistos VIP para festejarr o Halloween no Disneyworld.

- Ampfhmf... – o Sétimo não conseguia parar de rir baixinho e cochichou para Linoberto: manda-o dizer que o rato roeu as roupas do rei...

Linoberto acreditou que, quanto antes fizessem o que os estranhos queriam, antes deles se livrariam.

- O que vocês desejam?

- Nós fazerr hoje uma demonstração de Noite de Halloween. Mr. Silveira e Ms. Santos trazerr fantasias e pedirr gostosuras. Eles vão baterr nas portas das casas, à noite, gritando a famosa frase: “- travessuras ou gostosuras!”, como vocês vêem nos filmes.

- Quais filmes? – perguntou o Sétimo.

Linoberto interrompeu-o:

- Isso é um evento norte-americano que nada tem a ver com nossa cultura local! Quem tem interesse nisso?

- Ora, a AELI – Associação das Escolas de Língua Inglesa -, é claro! Como vão montarr uma franquia aqui, se o povo não estiverr aculturado? Sem margarina, sucrilhos e Halloween, nada feito. Estão até abrindo mão da manteiga de amendoim, num gesto de extrema boa vontade. – disse Mr. Silva.

- Qual é a graça disso? – perguntou o Sétimo.

- Ora, eles irr fantasiados de bruxos e assustarr as pessoas! – respondeu Mr. Silva.

- Não acho uma boa idéia assustar as pessoas! – disse o Sétimo.

- Deixe-os, assim cumprirão logo a missão, e nos veremos livres... – foi a vez de Linoberto cochichar para o Sétimo e o Padre.

O jovem casal retirou um imenso baú do jipe e foram se vestir na sala ocupada pela Câmara dos Vereadores do Lado de Cá do Cinamomo. Mesmo quem já sabia que eles se fantasiariam de bruxos levou um susto. As fantasias e a maquiagem transformaram-nos completamente. O Sétimo olhou e não gostou. Não achava certo assustarem as pessoas dessa forma. Porém, foi voto vencido. Quando faziam os últimos arranjos, testando a iluminação da abóbora – gentilmente fornecida pela Prefeitura – o Sétimo resolveu praticar a hospitalidade do lugar, que já levara um ou outro ao hospital, longe dali, pois ali não havia nenhum. Enfim, Sétimo serviu-lhes generosas doses da “boa”, por conta do 12 Irmãos. O Estranho já nem estranhava mais a “boa”, habituado que estava. A reação do demais visitante, porém, foi bem diferente.

Mr. Silva tomou um gole da coisa e permaneceu sentado com o olhar fixo na parede. A seguir, tornou-se extremamente rubro, iniciando pelas orelhas e seguindo pelo resto do corpo. A vida deixou o olhar do homem. Dele teria se ouvido apenas um sibilo que deixava escapar entre os lábios cerrados, não fosse pelos urros liberados pelo jovem casal. Ms. Santos foi a primeira a levantar-se e sair correndo porta afora enquanto soltava um uivo de profundo lamento. A combinação da postura inusitada que ela assumiu, com o corpo inclinado para frente, somada à penumbra e a tênue névoa, criou uma atmosfera da charneca dos Baskerville. Ms. Santos personificou o infernal cão que aterrorizou a mansão imaginada por Sir Arthur Conan Doyle. A figura aproximando-se, precedida pelo pavoroso uivo, pegou o crescido terneiro desprevenido. O bicho mugiu desesperadamente e tentou sair do brejo. Ms. Santos caiu de cara na lama. Quando o bicho conseguiu sair do brejo, deu de frente com Mr. Silveira que vinha em louca corrida e ensaiava um ruído gutural. Novo susto, mútuo dessa vez. Os olhos do crescido terneiro refletiram a luz e brilharam naquele tom de vermelho que os olhos dos animais assumem quando no escuro. Homem e animal cruzaram em debandada, um entrando de cabeça no brejo, outro saindo. Ms. Santos e Mr. Silveira conseguiram sair do outro lado e sentaram-se sobre a relva.

Finalmente refeitos do susto, e da queimação na garganta, eles acharam melhor iniciar a demonstração do Halloween, antes que alguém mais lhes servisse outra bebida como aquela. Viram uma porteira aberta e entraram. A algazarra chamou a atenção do terceiro dos 12 Irmãos que se preparava para dormir, pois já passava das 19 horas. Ele arredou a cortina de bordado branco e vislumbrou a dupla que ensaiava gestos assustadores, completamente compatíveis com sua aparência reforçada pelo banho de lama. O Terceiro não teve dúvida. Com antevéspera de Finados não se brincava. Passou a mão na Morgana, o velho bacamarte que herdou do avô mercenário, e mandou fogo pela janela.

Maria chegou ao 12 Irmãos quando o jipe do MINLE já havia partiu em disparada, na direção da Capital, levando apenas o Estranho e Mr. Silva. No interior do bar-prefeitura, todos rolavam às gargalhadas.

- Onde foi parar o casalzinho? – perguntou Maria.

- Já devem ter cruzado pelo Cinamomo! – respondeu Linoberto, quando conseguiu segurar o riso.

Até a beata Dona Clotilde sacudia-se de tanto rir enquanto tomava um cálice de vinho de missa.
- O que houve com eles? – Maria nada entendia.

- Eles tomaram o primeiro gole da “boa” e foram berrando porta afora, até caírem no brejo. Quase mataram o terneiro de susto. Então, foram assustar o Terceiro, que os recebeu com um tiro de festim da Morgana, deixando-os ainda mais apavorados. Saíram correndo em direção à Capital.

O Terceiro parecia meio constrangido, quando disse:

- Puxa, deveriam ter me avisado de que era brincadeira de americano. Eu ouvi aquele berreiro todo, abri a cortina e dei de cara com aqueles dois que pareciam saídos do inferno. Ainda por cima, a mulher gritava que era uma era uma gostosura e que queria fazer travessura comigo. Eu, hein! Ela era uma bruxa! Mandei fogo, antes que a patroa reclamasse.

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1 Comments:

At quarta-feira, 05 novembro, 2008, Blogger José Elesbán said...

He, he, he, ... Ótima!
Mas tenho a impressão que não estou recebendo todas as Crônicas do Heuser via correio eletrônico... :(
Fiquei mais deconfiado disso ao receber a 2a. parte do Lado B da Feira do Livro sem me lembrar da primeira...
[]

 

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