10.11.08

488 - A comenda da Yarinha


Foto: Wikipedia
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A comenda da Yarinha

Por Paulo Heuser


Yarinha Mesquita-Medeiros é uma mulher definitivamente fina. Ela descende do clã que teve origem na famosa região do Baixo Brejo de Trás Montes, em Portugal. Dom Ázimo IV veio ao Brasil com D. João VI. Ao contrário deste, aquele ficou e prosperou. Assim iniciou-se a saga dos Mesquita-Medeiros no Brasil. Yarinha descende de D. Ázimo e mantém a tradição da benemerência, típica das Mesquita-Medeiros.

Na última sexta-feira, Yarinha manteve sua exaustiva rotina semanal. Levantou-se cedo, às nove horas, tomou seu desjejum, passou os olhos pelos jornais e recebeu seu personal trainer. Como em todas as sextas-feiras, ela jogou paddle com as amigas, até as 11h45. Após a massagem, encontrou-se com as comadres da Comenda das Lulús. Almoço frugal na Padre Chagas completou aquela exaustiva manhã.

Fazer o quê. O mundo não pára de girar. Nem Yarinha. Sua agenda bipava anunciando o próximo compromisso: maquiagem e cabelo no Kako Stylist Beauty. Ela passava por lá todos os dias, mas na sexta-feira ela queria um tratamento especial, pois receberia a Comenda! Muitas fotos, tim-tim de cálices e tudo que faz a vida valer a pena ser vivida. Yarinha é avessa as muitas plásticas. Ela acredita que deve manter a forma sem apelar para os exageros de esticamento. Yarinha tem noção do aparecimento, ao lado da boca, daquilo que as muito invejosas chamam de rugas, e as menos invejosas chamam de marcas de expressão. No entanto, ela sabe que muitos homens chamam aquilo de expressão da vivência, as marcas que denunciam uma mulher segura, determinada e que sabe o que procura. Conferem-lhe muito de charme. Assim, não demorou mais de duas horas para dar uma retocada. Yarinha sentia-se tão disposta que até dispensou o motorista.

Yarinha embarcou no imenso S LXV – o carro é tão grande que seu modelo é designado em algarismos romanos – e afivelou o cinto de segurança que envolveu suave e firmemente seu corpo contra o assento revestido de couro de antílope. O clique da fivela do cinto despertou algo adormecido no interior da Yarinha. No início, foi apenas uma minúscula chama piloto que se acendeu. A única marca externa que poderia se perceber era o leve pronunciamento da expressão de vivência do lado direito da boca de Yarinha. Quando ela pressionou o botão de partida do motor, seu coração passou a bater em um ritmo mais acelerado. Nem pestanejou, quando colocou o câmbio na posição Sport e pisou fundo no acelerador. A Mostardeiro não ajudava com aquele eterno congestionamento. Aquele pára e não anda já se fazia sentir. As expressões de vivência já estavam mais para marcas de expressão, tendendo mesmo às rugas. Aquilo sim poderia se chamar de ativo imobilizado. Centenas de milhares de dólares - e de cavalos de força – imobilizados na Mostardeiro.

Após 20 minutos e 12 metros, as narinas da Yarinha dilataram-se nitidamente. Sua respiração ficou mais curta. Aos 38 do segundo tempo veio a erupção. Yarinha se transformou no Vesúvio das Pompéias e dos Herculanos que a cercavam. A mulher saiu do sério. Entre buzinadas, ela despejou uma lava oral calcinante. Abriu os vidros pretos do imenso carro preto e despejou enxofre verbal.

Eu peguei carona com minha filha, que dirigia obedecendo a todos os códigos de trânsito, de civilidade e de educação. Acabamos compartilhando a Mostardeiro com a Yarinha. Eu nem sonhava com a presença de uma autêntica Mesquita-Medeiros, descendente de D. Ázimo IV, a bordo daquele carro impressionante. Porém, perguntava à minha filha sobre o que poderia levar uma mulher aparentemente tão fina quanto aquela a protagonizar tal mico.

O que eu ignorava, era a razão de tal desespero. Yarinha estava atrasada para a cerimônia da entrega da comenda que ela receberia, fruto dos seus esforços em prol da campanha pela direção defensiva!

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