5.11.08

486 - O lado B da Feira do Livro - 2a. Parte


Foto: Wikipedia
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O lado B da Feira do Livro – 2ª Parte

Por Paulo Heuser

Já que houve uma primeira parte deste texto, me sinto obrigado a escrever uma segunda. Do contrário, imitaria Mel Brooks, que criou A História do Mundo – Parte I (1981), sem produzir jamais uma parte dois, apesar de haver um trailer desta incorporado àquela. Durante muito tempo perguntaram-lhe da continuação. Mel Brooks sempre negou que produziria uma seqüência da parte que cobriu o período compreendido entre a pré-história e a Revolução Francesa.

A Feira do Livro de Porto Alegre transforma profundamente a Praça da Alfândega, em Porto Alegre, local onde se realiza desde 1955, quando foi inaugurada com 14 barracas. A Feira encontra-se na sua 54ª edição. Acompanhei as últimas 33 edições, mesmo que como apenas observador. Ocorre que sou - de certa forma - vizinho da Feira, pois trabalho ao lado dela. Como passo pelo menos três vezes ao dia por lá, posso acompanhar a transformação da Praça da Alfândega em Feira do Livro.

Honestamente, não me recordo das primeiras edições da Feira, pois era composta daquelas poucas barracas que não modificavam a vida de quase ninguém. Um dia elas apareciam, noutro sumiam. Nas últimas duas décadas, porém, a feira cresceu assustadoramente, modificando ou expulsando tudo o que há por lá. As carrocinhas de pipocas deram lugar à praça de alimentação, e a imprensa montou estúdios que transmitem ao vivo. As sessões de autógrafos sucedem-se pela tarde e pela noite.

Sou daqueles que assistem ao lado B da Feira. Ele inicia já algumas semanas antes do evento, quando os vendedores de artesanato guadério-jamaicano são removidos do centro da Praça da Alfândega para a periferia. Então, inicia-se a obra. As antigas barracas que ficavam ao sabor do humor do nosso clima de primavera cederam lugar à cidade literária coberta por metal e plástico. Houve motivo para tanto. O mata-bancário – vento encanado do Guaíba que atravessa a praça – sopra mais quente na primavera. Porém, sopra com uma intensidade que chega a dar saudades do inverno. Tipicamente, ocorrem pequenos tornados, furações, aluviões e monções. O sistema climático representado pela Praça da Alfândega desafia os engenheiros e especialistas em aerodinâmica das construções. Já não se vêem as cenas de grande destruição do passado, mas que o pessoal fica apreensivo quando esquenta muito, ah, isso fica.

Os personagens que povoam a Alfândega também somem com a chegada da Feira. O Nestor sumiu. Logo ele, que vive da mendicância alfandegária. Mais gente, mais esmolas, esse seria o raciocínio lógico. Contudo, Nestor não agüentou o barulho que tomou conta do seu lar. Serras, martelos e máquinas de solda encobriram o canto dos sabiás. Na sua última aparição, foi entrevistado pela jovem jornalista à cata de alguma coisa para preencher a lacuna entre o Caso Nardone e o Caso Eloá. Questionado sobre o livro que escolheria, Nestor respondeu de pronto: o Aurélio. A jovem jornalista ficou encantada com o amor que o Nestor demonstrava pela Língua Portuguesa. Ele interveio - também de pronto - esclarecendo que preferia o Aurélio porque ele teria mais páginas para servirem de combustível nas noites mais frias. Enfiaram o Obama no Vacatio criminis da telinha.

Os índios apaches que cantam canções sul-americanas foram transferidos para a volta do Mercado. Dos pregadores, nada sei. Sei da preferência literária dos adolescentes e crianças, despejados diariamente pelo sem número de ônibus que atracam na Siqueira Campos, para o desespero dos demais motoristas. Excitada, a gurizada pergunta ao tio: - onde fica o McDonald’s?

As prostitutas da Praça chamaram reforços. Uma morena de profissão certa e idade incerta comentava com sua companheira de labuta: - Credo, aquele homem não me desceu! Estou arrotando até agora! – Coisas do lado B da Feira do Livro.


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