24.11.08

493 - A bela e os siris

Foto: Paulo Heuser
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A bela e os siris

Por Paulo Heuser


A multidão à frente abria-se em duas, que desviavam de algo sobre o passeio. De duas, uma, ou era um buraco, ou era um morto. Multidão não pisa, nem em buraco, nem em morto. Pisam nos mortos enquanto vivos, depois de mortos, não. É a ética da decência urbana. Multidão que se preza não pára para olhar buraco, passa ao largo. Assim ia a multidão dos siris de maré vazante da tardinha.

Quando chegou minha vez de andar em deriva, para desviar do obstáculo, arrisquei uma olhadela no que provocava a cisão da multidão. Lá estava ela, estatelada no meio do passeio, cercada pelos milhares de pés que avançavam na direção contrária àquela percorrida na maré da manhã. Nunca a havia visto, mesmo tendo participado 7590 vezes daquela procissão da tardinha. O belo choca, principalmente quando estatelado daquele jeito. Não parei, aliás, ninguém parou. Mas houve congestionamento de siris, pois vários arriscaram a mesma olhadela que eu havia arriscado.

Deixei-a para trás e voltei para a multidão, novamente unida. Contudo, não a esqueci. Não havia como. A imagem ficou impressa em algum lugar entre os olhos e o pensamento. Desde que a vi, algo me intrigou. Por que ela jazia lá, daquele jeito? Seria fruto de um relacionamento amoroso rompido abruptamente? Teria sido jogada pela janela de um dos imensos prédios de escritórios que impedem que lá haja luz? Lá o Sol nunca nasce e nunca se põe. Ele sempre está atrás de um prédio. O início e o fim do dia medem-se pelos relógios dos siris.

Se fosse um mendigo, até poderia se entender, mas bela como ela, o que fazia lá? Os mendigos se estatelam, vez por outra, quando morrem. Então, repentinamente, passam a ter nome, sobrenome e endereço. Alguns passam até a ter história. Algum siri eventualmente se recorda de tê-los visto na sua vida de siris, no tempo em que eles também trilhavam o caminho da multidão. Iam e vinham como todos os outros, até que algo acontece. Caem num buraco, talvez, e ficam desmiolados. Então passam a viver à margem e não obedecem mais ao comando da maré dos relógios dos siris. Não sabem da hora, pois nem vêm, nem vão. Apenas ficam.

Bela, como ela, não combinava com aquele passeio sujo e bolorento. Lá não devia haver cor, pois na rota dos siris nada tem cor. Tudo é padronizado. Buraco é preto, e mendigo é cinza. Ela trouxe vida à zona morta, mesmo estatelada daquele jeito. Por mais que eu me esforce, não consigo entender o que fazia lá aquela bela rosa vermelha.

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