1.12.08

497 - A Ruína


Foto: Paulo Heuser
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A Ruína

Por Paulo Heuser


A idéia surgiu por acaso. Eu caminhava pelo bairro, quando passei pelo prédio da pizzaria que me traz ótimas lembranças. Apenas lembranças, pois a pizzaria fechou após muitos anos de existência. Não sei se foi pela mudança de nome, pela falta de estacionamento ou pelo caroço da azeitona preta, mas fechou. A pizza mafiosa era imperdível.

Talvez o melhor da pizzaria era mesmo a decoração, em tons de vermelho que faziam fundo às cores intensas dos quadros e demais objetos. Grandes janelas internas completavam o ambiente. O que me surpreendeu, mesmo, foi a placa de aluga-se, colocada na fachada do prédio semi-destruído. Arrancaram-lhe as aberturas e parte do telhado, restando madeiramentos a céu aberto. Quem alugaria aquele prédio vermelho que parecia saído da Dresden de 14 de fevereiro de 1945, após as 14 horas do maior bombardeio da história? Se queriam alugá-lo, por que destruíram-no primeiro? A resposta poderia estar nas aberturas, de algum valor. Eu nunca imaginei que seria eu a alugá-lo.

Enquanto eu caminhava, aquele prédio não me saía da cabeça. A idéia desabou sobre mim, feito piano de cauda. O povo anda meio estranho nas suas preferências de diversão. Fazem fila para comer fast food e adoram tudo que diz respeito à decadência das instituições. Por que não explorar essa decrepitude social?

O prédio caiu como uma luva. Uma luva rota, mas ainda assim uma luva. Ele me levou ao tema, pois transformei aquilo num restaurante temático, a Ruína. Restaurantes temáticos atraem públicos também temáticos. A Ruína explora exatamente a destruição, a decrepitude e a decadência da civilização, a começar pelo prédio. Não investi nem um tostão em reformas ou adaptações. Para quê? Aquilo lembra perfeitamente um ambiente de guerra no pós-bombardeio. Tampouco investi em infra-estrutura de cozinha, pois a terceirizei. Não há mesas nem cadeiras, nem onde sentar.

O cliente não é recebido pelo maitre, no que um dia foi a entrada, porque não há maitre. Quem chega, entra simplesmente e senta-se, se quiser, no chão cheio de escombros. Um eterno cheiro de cordite impregna o ambiente, graças a um perfume de bombardeio importado do Afeganistão. Apenas uma gota garante o fedor do disparo de 100 obuses de alto calibre. Há fumaça por todo o lado.

Recrutei os garçons, se é que se pode chamá-los assim, após uma briga de gangues de carecas e não-carecas. Eles concordaram em vestir uniformes de campanha, andam pesadamente armados e cospem no chão. Não há cardápio. Quem chega, senta e aguarda. Os combatentes passam pelos salões em ruínas e jogam latas estilo marmita que contêm fast food fornecida pela tele-entrega que oferecer o menor preço do dia. O conteúdo sempre é surpresa e vai do xis-coração ao cachorro quente de salsicha de patê de galinha. Para beber, há apenas duas opções, ou a cerveja pilsen quente, ou o vinho tinto suave de tetrapac. Sem escolha, naturalmente. Tudo servido em cantis de alumínio cobertos por uma lona fedorenta e suja. Os combatentes estão autorizados a hostilizar os clientes que reclamam.

Não há luz elétrica, apenas a luz proveniente de fumarentos lampiões de querosene. Em cada canto dos salões, um soldado abatido geme entre os trapos de bandagem que lhe cobrem a cabeça. É um gemido sofrido, pois não há morfina no cardápio inexistente. Vez por outra, uma enfermeira manca, com as vestes brancas manchadas de sangue, cruza os salões. A sirene de bombardeio é um sucesso total, menos com os vizinhos, infelizmente. Não há reservas, pois quanto maior o caos, melhor. Os fregueses superlotam os ambientes, pisando uns sobre os outros. E gostam!

Chamaram-me de louco, quando inaugurei a Ruína. Riram até. Pelo estrondoso sucesso, eu riria por último, se não houvesse acordado.

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