1.1.09

499,996 - A sombra


Foto: Wikipedia
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A sombra

Por Paulo Heuser


O tipo físico não o destaca. Trata-se de um homem branco, na casa dos sessenta e muito, esguio, alto, e de aparente ascendência espanhola. Até aí, nada demais. Ele difere muito dos outros no acabamento. Usa longos cabelos grisalhos encaracolados, geralmente presos em rabo-de-cavalo. O que mais chama a atenção nele, porém, são os óculos Rayban, clássicos da década de sei lá quando. Cinqüentas ou sessentas, creio. O conjunto lembra uma Janis Joplin envelhecida. O homem está fisicamente nos trinques. Pudera, ele passa o dia correndo. Se eu o houvesse visto apenas uma ou duas vezes, tudo bem, dificilmente me lembraria dele. Contudo, incrivelmente, o vi quase todos os dias. A versão masculina e envelhecida da Janis Joplin cruzou meu caminho quase todos os dias! Não sei quem é ele, o que faz – além de correr -, de onde vem e para onde vai.

Basta eu sair para caminhar, e lá está ele. Vou ao clube, e lá está ele. Vou ao mercado, ao velório, à procissão, ao cinema, e lá está ele. Seria uma transfiguração distorcida da minha sombra? Coincidências existem, bem como existe déjà vue, porém, aquilo já passou dos limites aceitáveis do que pode se chamar de casualidade. Lembrei-me de uma viagem de férias que fiz, quando jovem, parando de praia em praia do litoral catarinense. Meus amigos e eu ficamos muito espantados, pois em várias praias daquele estado havia casais rechonchudos tripulando DKWs verdes com logotipos da Coca Cola pintados nas portas. Lá pelas tantas, constatamos que era apenas um DKW, tripulado por um casal rechonchudo, que fazia a mesma viagem que havíamos planejado. Coincidência, apenas. Seria o caso do Janis Joplin dos Pampas? O destino fez com que fizéssemos as mesmas coisas, nos mesmos horários?

Anteontem cruzei com o Janis Joplin na Cel. Bordini. Fingi não vê-lo, como ele também fingiu não me ver. Quando cruzamos, fingi observar o movimento dos carros na rua, enquanto ele fingia ler o que estava escrito numa placa comemorativa de bronze colocada na entrada de um prédio. Eu já suspeitava disso, mas foi então que confirmei, com absoluta certeza, que o Janis Joplin me seguia. Foi fácil desmascará-lo, pois ninguém, ninguém mesmo, lê uma placa comemorativa após sua inauguração. Só os espiões. O Janis Joplin me seguia, mesmo vindo em sentido contrário? Convenhamos, seguir alguém, fugindo dele, é uma tática que dissimula as aparentes intenções. Muito inteligente.

Ontem, eu descia a Lucas de Oliveira. Quando cheguei à esquina da Anita Garibaldi, quem subia a Lucas? O próprio. Aquilo foi a gota d’água. Eu não poderia adentrar 2009 sem saber por que o Janis Joplin me seguia. Respirei fundo, fui na direção dele e cheguei a abrir a boca para interpelá-lo, quando ele me perguntou por que, afinal, eu o seguia.

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