16.12.08

499,6 - Carla e os números


Foto: Paulo Heuser
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Carla e os números

Por Paulo Heuser


Procurar por móveis, numa grande loja da moda do setor, é uma forma moderna de autoflagelo, desde o estacionamento até o atendimento. Essas lojas formam imensos bretes labirínticos, por onde os potenciais compradores serpenteiam enquanto tentam encontrar as estantes no setor das luminárias. Ainda bem que os embretados se socializam e trocam informações. Os mais experientes orientam os novatos. Eu não conseguiria encontrar novamente o setor de estantes para biblioteca, mas, de alguma forma, consegui. Eu vinha erraticamente colidindo com as paredes do labirinto quando topei com o objeto da minha busca, a estante que guardaria os livros que já ameaçavam as demais de deslizamento.

Na verdade, deu-se um duplo milagre, pois topei com a estante e a Carla. Ela é uma simpática vendedora daquele setor. Como ela faz para encontrar o local de trabalho, não sei. Contudo, segundo ela, consegue encontrá-lo todos os dias. Encontrar estante e vendedora, no mesmo sábado, é acertar na loteria. Usualmente, quando se encontra uma, não se encontra a outra.

A Carla é uma jovem alegre e sorridente, que tem os lindos olhos azuis emoldurados pelo cabelo preto como breu. Eu fiz aquela coisa idiota que sempre faço. Perguntei-lhe o preço da estante, apesar de este estar exposto em algarismos garrafais. Eu preferia acreditar na resposta da Carla, pois o valor por ela informado era menor do que o impresso na etiqueta da estante. Ela aparentemente inverteu a ordem da dezena e da unidade e transformou 82 em 28. Os olhos azul-piscina filtrada da Carla transbordavam de sinceridade. Aquela vil etiqueta é que deveria estar errada. Apesar de confiar mais na Carla, observei-lhe que os valores não batiam. Pobre Carla. Os olhos dela externaram tristeza, enquanto afirmava ser disléxica. Ela apressou-se em esclarecer que a dislexia é uma anormalidade no cérebro, que não teria cura. Coitada, pensei, pois não deve ser fácil ser vendedora e trocar números. Ela ficou tão constrangida, que procurei imediatamente tranqüilizá-la mencionando que Thomas Edison, Walt Disney, Agatha Christie e Tom Cruise são exemplos de disléxicos de sucesso, apesar de o último também aparentar outros problemas, como largar a Nicole Kidman.

Constrangido deve estar também o ex-presidente do conselho de administração da Nasdaq – uma espécie de bingo eletrônico da loteria de ações norte-americana. Bernard Madoff foi preso acusado de causar um rombo de mais de US$ 50 bilhões ao criar um fundo de investimentos baseado em esquema Ponzi – nada mais que a velha pirâmide -, no qual os primeiros investidores ganham rios de dinheiro à custa dos que entram depois na base daquela. Madoff teria causado enormes prejuízos às famílias de abonados e aos grandes bancos internacionais. Há bancos que ficaram com mais de dois bilhões de dólares a descoberto. Aparentemente, houve a troca de alguns números referentes à rentabilidade.

Seria Madoff a mais nova vítima da dislexia? Teria ele trocado milhões por bilhões, ou algo que valha?