28.3.07

Nau do Desespero



Nau do Desespero

Por Paulo Heuser

Otávio mora no bairro, em meio à floresta de mamonas do terreno que seria baldio, não fosse a presença dele. Há fortes indícios de que Otávio será despejado, num futuro não muito distante. Para onde levará sua casa de caixa, com a vistosa indicação “Este lado para cima”? Sua floresta será transformada em biodiesel, o terreno em edifício. Mas, Otávio não se preocupa com o futuro. Vive o presente, apenas o agora. Se agora está com fome, come, se houver algo para comer. Se agora está com sono, dorme. Se agora não está nem com fome, nem com sono, fica sentado em frente ao terreno, olhando para o nada urbano, alheio aos sons e movimentos na avenida. Quando o amanhã virar hoje, agora, então Otávio poderá se preocupar. Não muito, porque logo o agora será antes, deixando de ter importância, portanto. Ele não sabe nem se o futuro realmente chegará. Se tiver sorte, o futuro será postergado indefinidamente, apenas tendendo ao despejo. Ou morrerá antes dele.

Como todo mendigo de bairro, Otávio tem história. E toda história de mendigo está inserida no folclore do bairro. Já ouvi histórias sobre um grande maestro de orquestra sinfônica que enlouqueceu durante um Bolero de Ravel que não teve fim. Outras, sobre um renomado advogado criminalista que defendeu Maluf. Um membro do conselho de ética da Câmara Federal, quem sabe? Um professor estadual que fitou o contracheque durante mais de um minuto? Sei lá, são histórias muito vagas. Há, no entanto, um porteiro de um prédio próximo que conta uma história mais crível, sobre o que aconteceu com Otávio.

Conta o porteiro, Seu Mário, que Otávio foi piloto de avião, em viagens internacionais. Pronto, pensei eu, lá vem outra história maluca. Seu Mário continuou, contando que Otávio fazia a linha São Paulo – Nova Iorque. Foi preso. Sim, preso por agentes do FBI vestindo coletes pretos com letras amarelas. Foi algemado e colocado de joelhos, enquanto uma agente usando sapatos cinza de salto extremamente pontudo lia os seus direitos, recém revogados pelos atos institucionais pós-onze de setembro. Foi um dos primeiros vôos a pousar em NY após o estado de sítio. Otávio comera aquela salada de pepino cru e pimentão verde, durante o vôo. Aquele arroto, que passaria despercebido em outras circunstâncias, foi interpretado, na imigração, como um ato hostil de um estrangeiro contra o mortalmente ferido defensor da liberdade – os EUA. Otávio foi enviado à base de Guantânamo, onde passou quatro meses, vestido de macacão laranja, no resort de praia na ilha de Fidel. Bem, quase dele. Otávio recebeu um kit, que incluía um tapete, para fazer suas orações. De nada adiantaram seus protestos, alegando que não rezava. Acabou apenas recebendo um macacão laranja acrílico, que identificava os fanáticos religiosos ateus, da pior espécie.

A agente especial Judy Sue “Hellgirl” Patterson foi promovida à condição de agente muito especial – VSA – Very Special Agent, tendo direito à mesa própria, cabide e xícara com emblema, no escritório. Alguém, um agente não-especial, acreditou finalmente na história de Otávio, que acabou solto e expulso dos EUA, por via das dúvidas. Afinal, fora preso por uma aspirante a VSA. Seu visto foi confiscado. A companhia aérea o demitiu, por via das dúvidas. Se ficara preso por quatro meses, com um tapete, havia motivo, seja qual fosse. Acabou conseguindo emprego em outra companhia, que o colocou na linha para Londres. Um pouco antes de falir. Preso novamente ao chão, Otávio acabou aceitando o emprego de piloto de vôos nacionais, partindo de São Paulo. Exatamente quando começou o Grande Apagão, que ninguém mais lembra quando começou. Começou, ninguém sabe como, nem por quê. Otávio suportou a situação por exatos oito meses. Foi quando mordeu a orelha de um passageiro que reclamava do atraso de dois dias do seu vôo.

Novamente preso ao chão, Otávio decidiu permanecer nele. Passou pelos empregos de relações públicas no aeroporto e controlador de vôo. Ali começou o tique no olho e a tremedeira no canto esquerdo dos lábios. Reconhecido na rua, Otávio foi perseguido pela Avenida Rubem Berta, por uma turba de passageiros enfurecida, que gritava: - pega, pega, é um controlador! Demitido novamente, Otávio resolveu trabalhar por conta. E risco. Investiu suas economias num ônibus de turismo. Já que as coisas lá em cima não andavam, que andassem aqui em baixo. Andavam, realmente, mas de forma estranha. Seu primeiro contrato foi firmado com aquela simpática velhinha. Que liderava a turba que foi assaltar a fábrica de picolés transgênicos de eucalipto. Dona Clotilde, em especial, foi a que mais se destacou. Entoava um cântico, em língua estrangeira, digno de ser entoado por Átila, o “Flagelo de Deus”, durante os ataques. Seus olhos de catarata brilhavam como gemas ao fogo. Não sobrou picolé sobre picolé. O último, o deputado levou. Otávio conseguiu fugir, durante a confusão. Foi processado pela fábrica, por levar os invasores, pelos invasores, por fugir da cena do crime, deixando 43 velhinhas desamparadas e abandonadas. Após três meses conseguiu reaver seu ônibus, bem a tempo de alugá-lo para aquela excursão que foi à festa de aniversário do tal de Tonico 9mm, no Rio. Nome curioso aquele - pensou Otávio, na época. As iniciais mm seriam de Mariano Macedo, Mesquita Matoso, ou Meireles Mendonça? Não, tarde demais ele descobriu que eram milímetros mesmo. Descobriu, no momento em que a gangue rival, do Pavoroso da Cruz, atacou o ônibus, na Brasil. Otávio escapou com vida, o ônibus restou queimado.

Falido, estressado e chamuscado, Otávio aceitou o convite do primo para morar no sul e dirigir um táxi. Otávio passou de comandante de Boeing 747 a piloto de Fiat 147, em questão de meses. Mas aceitou a oportunidade, de bom grado. Disseram-lhe que deveria andar pelas avenidas onde a noite fervilhava, pois lá não faltaria trabalho. O sol estava nascendo, e o bolso do Otávio estava recheado, quando Shirley Cachorrão tomou seu táxi. Quando Otávio viu aquele(a) moreno(a) de quase dois metros de altura, saia plissada e pestanas postiças, entrar no carro, temeu pela féria e pela vida. Não foi dali que veio o perigo. O(a) moço(a) era muito educado(a). Feito uma moça(o). Mandou tocar em direção ao gasômetro, pois estava encerrando a noite. O(a) moço(a) falava sobre o novo namorado, quando viraram a última curva antes do destino. E este não quis que Otávio visse o racha entre carroças que estava ocorrendo ali. O choque do táxi com três delas foi inevitável. Preso às ferragens, Otávio e Shirley Cachorrão gritavam por socorro. Que veio na forma de saque. Terminada a pilhagem de carteiras, celulares, relógios, óculos e anéis, conseguiram arrancar uma coroa de ouro do dente da Cachorrão. Vão-se os dentes, ficam os dedos – pensou ele(a). Quem os libertou, finalmente, foi a turma do desmanche, que veio para pilhar o monte de sucata que o 147 representava. Quando roubaram o assento, Cachorrão liberou-se, ajudando Otávio a sair. A última carroça já ia longe, carregando os últimos pedaços do 147, quando Cachorrão também se foi, banguela e apenas de calcinhas, pois levaram a saia plissada. Otávio ficou lá, sentado junto ao meio-fio, segurando a bolota da alavanca de câmbio. Foi visto cruzando a cidade, sempre segurando aquela bolota, que hoje enfeita a entrada da casa de caixa, onde se lê “Este lado para cima”. Enlouquecido, adotou a rua como casa.

E eu perco tempo ouvindo essas incríveis e fantasiosas histórias sobre mendigos malucos de bairro. Por que não são apenas os loucos que sabem qual é o lado que deve ficar para cima?



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25.3.07

A Invasão dos Ovos Assassinos



A Invasão dos Ovos Assassinos

Por Paulo Heuser

Quase tudo é sazonal na vida, menos a própria. Chega a época de temer que o céu me caia sobre a cabeça, temor compartilhado com os gauleses da irredutível aldeia imortalizada por Goscinny e Uderzo. Nesta época, deixo de freqüentar o supermercado, retornando apenas após a Páscoa. Temo os ovos. Não os de galinha, comportados e imutáveis, a não ser na cor e no tamanho. Temo os ovos de mamíferos. Se a própria existência deles não é uma ameaça ao conhecer científico, a posição em que são postos é a verdadeira ameaça, física, no caso.

O supermercado utilizou livros ingleses, do século XI, para determinar a altura em que deveriam dependurar os ovos de Páscoa. Utilizaram um paper do Yorkshire Dog’s College, intitulado Eastern Eggs – A Study of Human Growth. Através daquele paper, determinou-se que os ovos de Páscoa deveriam ser dependurados no teto, a 1,80m de altura, levando em conta que os homens apresentavam altura média de 1,71m, quando despido o elmo, considerados apenas os homens cujas mulheres eram fiéis no casamento, evidentemente. Desde lá, algo mudou, inclusive a altura de alguns homens e mulheres, que facilmente ultrapassa a clássica medida britânica. Chego a entender a razão que os levou a colocá-los (os ovos) tão baixo. Os cabides de ovos são prateleiras aéreas, na verdade. Aquelas belas e simpáticas coelhinhas demonstradoras não teriam como alcançá-los, se colocados numa altura segura para os pobres infelizes que se situam nas curvas superiores do percentil de crescimento, como eu.

Devo caminhar curvado, se resolver atravessar aqueles corredores dos enlatados, bolachas, grãos e outros alimentos. Só estou seguro mesmo, quando ando pelos corredores dos artigos de limpeza, sem ovos de mamíferos, os que não gosto mesmo de percorrer. Por que não penduram os ovos lá? Comprar água sanitária não dá prazer a ninguém normal. O problema não é apenas o desconforto físico. Há o desconforto psicológico, também, vulgarmente conhecido como mico. – Mãe, olha lá o gigante no meio dos ovos! Há quem prefira sair de lá com eventuais galos na testa, mas com o orgulho intacto. Conheço um ex-jogador de basquete que não se abala, abala os ovos. Ereto, atravessa a barreira de ovos, após um impulso inicial. As aterrorizadas promotoras de vendas assistem àquela terrível destruição sistemática dos ovos de mamíferos. Quando ele desponta na extremidade do corredor, descabelado e com a testa vermelha, resta um longo vale invertido de ovos de mamíferos quebrados, insumos para a liquidação da segunda-feira pós-Páscoa.

Hoje desafiei o perigo e fui àquele supermercado. Fui buscar carne, passando longe dos ovos, após fazer um grande desvio pelo setor da água sanitária. O preço da carne, em si, já é uma grande ameaça. Lá em casa já nos adaptamos, substituindo as carnes clássicas por outras mais em conta. Alcatra, picanha e maminha deram lugar à lagosta e ao haddock, bem mais baratos. Dão um carreteiro bem legal. Apenas pensei estar seguro no açougue. Uma placa metálica despencou sobre as minhas costas, deixando um vergão vermelho. Será coisa do coelhinho?

A propósito, que raios de mamíferos são esses, que põem ovos?


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24.3.07

Um dia como outro qualquer



Um dia como outro qualquer

Por Paulo Heuser


Mais uma sexta-feira normal, como outra qualquer. Desço a Caldas Júnior, mostro o crachá ao soldado que, apesar da cara feia, levanta o cordão de isolamento, me abrindo passagem. A imprensa ainda não chegou. O pipoqueiro, sim, bem como a velhinha dos panos de prato de cinco reais – hoje tá barato! – surrealmente sentada naquela cadeira de praia, sob o andaime, dentro da área isolada pelos soldados. A mãe dela teria vendido panos de prato bordados aos soldados alemães e franceses nas trincheiras da Alsácia-Lorena? Subo ao andar, coloco a moeda na cafeteira e dou uma espiada pela janela.

O prédio da esquina com a Mauá, de onde saiu o PCC e entrou o MST, e sabe lá mais o quê, está sendo desocupado pela tropa de choque. Macacões azuis e capacetes laranjas cercam as ruas e os telhados. No meio da rua vazia, um sujeito de terno e pasta. Será o oficial de justiça? Ingrata profissão, de homens poderosos e solitários. Ninguém os recebe com fanfarras. Quarenta e cinco minutos após o ultimato de cinco minutos, as tropas invadem o prédio. Não há resistência, física, pelo menos.

Começa a retirada das pessoas e das tralhas. Aquelas se reúnem em semicírculo, obedecendo a uma voz de comando que parece sair de um sujeito de bermudas, regata e boné branco. Deve ser o comandante, pois se posta no interior do semicírculo e começa a puxar o coro de frases de efeito, algumas feitas. Uma é vaiada, pois todo mundo já está cansado de saber que o povo unido jamais será vencido. A realidade nos mostra isso o dia todo. À frente, colocam-se as crianças, enviadas por uma mulher jovem, vestindo calça capri e colant pretos, chapéu de palha, com um bebê no colo. As crianças formam uma bizarra ala de frente, carregando um estandarte contra o machismo, o imperialismo e outros ismos. Logo a seguir, vêm os da outra ala, carregando os estandartes de um estranho MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados (sic). No semicírculo, começa uma fieira de cânticos, muito eclética, por sinal. Começam com Para não dizer que falei de flores, do Geraldo Vandré, seguem com Atirei o pau no gato, sei lá de quem, Asa branca, do Grande Gonzaga e, para encerrar com chave de ouro, Parabéns a você, sei lá de quem também. Gosto da primeira e da terceira. Não entendo a segunda e a quarta. Ops, não terminou ainda, agora vem algo gospel. Chega a imprensa. E o congestionamento vai longe. O telefone toca, alguém relatando que está preso no túnel. Deus ajuda quem cedo madruga. Enquanto um helicóptero tudo observa, voando feito um zangão barulhento.

O trânsito é liberado na Mauá. Meia dúzia tenta bloqueá-lo. Um apito de soldado basta para demovê-los. A turba se vai, cantando cânticos ensaiados, perdendo-se ao longe, em meio a buzinaria dos que perderam a hora da manhã. O café terminou, a janela fechou. Numa sexta-feira que começou como qualquer outra. Quem invadirá o prédio hoje à tarde?


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23.3.07

Das Fragatas e Atobás



Das Fragatas e Atobás

Por Paulo Heuser

Quem já visitou alguma ilha na nossa costa, deve ter visto fragatas e atobás. Na Ilha das Galés, Reserva do Arvoredo, em Santa Catarina, encontra-se um bom exemplo de ilha habitada por essas aves. A ilha foi assim batizada devido à presença de duas ilhotas menores, a seu lado, que lembram a silhueta de duas galés. Uma das ilhotas abriga uma colônia de fragatas, enquanto a outra é habitada por atobás. Os primeiros não vivem sem os últimos, por uma razão muito simples: as fragatas não pescam, dependendo dos atobás para obter seu alimento.

Nessas ilhas, assiste-se diariamente ao cruel espetáculo que faz parte do drama chamado vida. Os atobás saem à cata de peixes para a sua alimentação e a dos seus filhotes. Logo que encontram algo, são perseguidos implacavelmente pelas fragatas, aves maiores e mais poderosas. Para livrar-se do assédio, o atobá é obrigado a largar o peixe, que é pego em pleno ar, pela astuta fragata. Os atobás que tentam fugir são agredidos a bicadas por uma ou mais fragatas. O ritual de pesca e ataque repete-se até que as fragatas se considerem satisfeitas. Elas confiscam aproximadamente 40% do que os atobás pescam. Numa das ilhotas, filhotes de atobás esperam pelo alimento que poderá não chegar, levado pelas famintas fragatas. É difícil não considerar injusta aquela estranha associação alimentar. Comensalismo é uma associação onde apenas uma das espécies se beneficia, sem prejudicar a outra, no entanto. Não sei se o conceito se aplica às aves, pois parece evidente, e mensurável, o prejuízo sofrido pelos atobás.

Temos uma tendência de achar que tudo é bonitinho na natureza, sob uma visão ética humana utópica. O ursinho acaba se transformando num terrível animal que mata um homem com apenas uma patada. Os leõezinhos de pelúcia em nada lembram aqueles predadores que caçam inocentes veados e zebras, seres que comem capim e folhas. Com os homens não é diferente. Quem hoje engatinha, dizendo gugu-dadá, amanhã poderá estar empunhando uma arma, confiscando o alimento de outrem, menos poderoso. Assim, sob nossa visão ética, aquela relação parece definitivamente injusta e condenável. Na Natureza, prevalece a lei do mais forte, e a fragata é o mais forte. Nada bonito, apenas natural.

Fico a imaginar que os atobás poderiam organizar-se numa espécie de sindicato, fazendo a primeira greve de fome da ilha. Acostumadas com a comida fácil, as fragatas se veriam em maus lençóis, pela completa inaptidão em garantir seu sustento com o trabalho digno da pesca. Os peixes iriam aplaudir, com certeza.

Os pobres atobás deverão trabalhar mais. Chegam notícias da Ilha do Congresso, dando conta que a fome das fragatas aumentará, pelo menos 26,5%.


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22.3.07

À Sombra da Criméia




À Sombra da Criméia

Por Paulo Heuser

Heino viveu os horrores de II Guerra Mundial. Sua excentricidade é atribuída aos momentos de angústia e desespero pelos quais passou. Sabe o que é escassez. Sabe o que é fome. Viu a morte de perto, muito perto. Uma granada explodiu ao lado dele, em Uerckermünde. Somente Judas, depois de perder as botas, e Heino sabem onde isso fica, mas ele sempre conta histórias de lá. Histórias tristes, sobre bombardeios, trincheiras e soldados mortos. Normalmente frio, distante, e reservado, como convém a todo oriundo da Prússia, Heino se soltava um pouco ao freqüentar aquele velho bar daquele clube decadente, onde ainda se jogava general em copos de couro. O ar empestado de odores de mofo e velhas bebidas destiladas, o ruído característico do copo batendo na mesa de feltro verde encardido, o vidro de rollmops de ovo cozido enrolado com sardinha, sobre o balcão, tudo o remetia de volta a pátria perdida, o Heimatland. Chegava, impecavelmente vestido, no seu terno cinza com gravata borboleta verde. Seus companheiros de chegada eram o copo de cerveja, ao lado do de Steinhaeger, formando o clássico ponto-e-vírgula. O cigarro com piteira e o jornal completavam o quadro.

Após ler o jornal, de cabo a rabo, Heino arriscava-se no jogo de sinuca e na conversa frugal decorrente. Depois, juntava dois pastéis e dois rollmops, e partia para casa, onde faria sua solitária ceia, num ritual que se repetia há incontáveis anos. Cada dia terminava como o anterior. A única perturbação eventual era a partida, para o reino do além, de algum velho companheiro da sua autista relação muda. Nunca deixou de comparecer aos velórios e enterros, nem de levar flores brancas. A gravata borboleta, contudo, continuava verde.

Ontem, a rotina de Heino foi quebrada. Em parte, na verdade. Mas todo mundo, pelo menos do mundo dele, reparou. A porta vaivém da entrada do bar abriu-se, como de costume, dando passagem ao dono da borboleta verde. Ele sentou-se sobre um dos altos bancos com topo de couro vermelho, saudou formalmente o ecônomo, pegou o jornal e congelou. Talvez seja esta a melhor palavra para descrever o que ocorreu. O cigarro queimou sozinho, o copo de Steinhaeger restou abandonado sobre o centenário balcão, a cerveja perdeu seu colarinho, apenas o cheiro de mofo permaneceu.

Quando a brasa do cigarro atingiu a piteira, criando um cheiro desagradável de resina queimada, Heino saiu do seu transe. E saiu do bar, apressado, em direção ao mercado. Heino esqueceu pastéis e rollmops nesse dia. Comprou batatas, cinco sacos de batatas, e muita carne enlatada, encalhada há muito, por sinal. Comprou também um enorme estoque de velas, fósforos e Steinhaeger. Quem o viu deixar o bar, e adentrar o armazém, jura tê-lo ouvido murmurar, entre os dentes, a frase “Eles de novo, não!”. Não saía da cabeça de Heino a fotografia oficial da Conferência de Yalta, na Criméia, em 1945, mostrando as poderosas figuras de Churchill, Roosevelt e Stalin. “Eles não podem ter voltado! De novo, não!” – atormentava-se ele, enquanto enchia o carrinho de compras com latas.

Seu Norberto, do bar, não entendia o que acontecera com Heino. Não levara pastéis nem rollmops, fato realmente notável. O pessoal dos jogos de sinuca e general reuniu-se, pela primeira vez em 45 anos, para debater o assunto. Sobre o balcão, abandonado, jazia o jornal que Heino viu. Na capa, em evidência, as figuras de um presidente, um vice e um ex, sorriam alegremente para a posteridade, na Criméia do Planalto. Heino pedia querosene, um estoque de querosene. - Não tem da marca jacaré? – perguntava ele, aflito.





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20.3.07

Estranhos Algoritmos

Estranhos Algoritmos

Por Paulo Heuser

Quem vê aquele sujeito maltrapilho que perambula pelas ruas do bairro Moinhos de Vento, catando baganas de cigarros, não acredita que ele já foi um promissor estudante de Matemática. Passa despercebido pelo pessoal do happy hour, dos elegantes cafés da Padre Chagas, murmurando frases aparentemente desconexas, fruto do delírio de uma mente irremediavelmente danificada. Algo sobre dendritos e axônios já não cumprirem propriamente suas funções diferenciadas. Em outros tempos, os neurônios do Cibernécio realizavam virtuosas sinapses que o levaram a tornar-se bolsista laureado na pesquisa de sistemas caóticos. Hoje, caótico é o seu raciocínio, limitando-se à procura de baganas, quanto maiores, melhores.

Desde pequeno, Cibernécio mostrou uma grande queda pela Matemática, que o levou a sofrer grandes quedas de bicicleta, pois fechava os olhos enquanto encontrava soluções para as equações diferenciais que regiam o caos do tráfego ao seu redor. Na tentativa de reduzir as idas ao traumatologista e à oficina de bicicletas, seus pais deram-lhe o primeiro computador. Foi perfeito o casamento do menino prodígio com a máquina. Cibernécio passou a explorar programas como Maple a Mathematica, deixando de cair da bicicleta. Passou a cair da cadeira, de sono, enquanto avançava noites adentro, explorando o inominável mundo novo dos sistemas não-lineares. Foi numa dessas noitadas que o mundo mudou, na concepção dele. Não caiu da cadeira. Não de sono, pelo menos.

Alguma coisa levou Cibernécio a vasculhar a caixa de spam – mensagens indesejadas – do correio eletrônico. Havia muito de tudo, ali. Propostas de venda de coisas estranhas, como remédios para aumentar o desempenho sexual. O que seria desempenho sexual? Havia centenas de outras tentando pescar senhas (pishing) bancárias. Já estava pressionando o botão de limpeza das mensagens spam, quando o título de uma lhe chamou à atenção. Fora enviada por alguém que assumira o improvável e inverossímil apelido de Eggmalthina Chaotica. Ele abriu a mensagem e passou a lê-la. Seu coração disparou, enquanto avançava entre aquelas palavras aparentemente sem sentido. O texto aparentava não fazer sentido algum, para um leitor ordinário. Para o peculiar e diferenciado cérebro de Cibernécio, no entanto, aquelas séries de palavras soavam como uma sinfonia única de virtuosismo matemático espantoso. Quando terminou de ler a mensagem, ele constatou, num misto de surpresa e extrema excitação, que ali estava, perdida entre todo aquele lixo, parte da solução para o maior enigma dos tempos modernos. Faltavam partes, no entanto.

Cibernécio tentou achar uma solução geral para o enigma. Passou dias a fio trabalhando na solução. Não conseguia, no entanto, encontrar algumas condições de contorno do complexo enigma. Procurou por outras mensagens que pudessem conter novos pedaços da solução. Entre 763 mensagens na caixa de spam, aquela era a única recebida de Eggmalthina Chaotica. Tropeçou em outra, enviada por uma tal de Conthornya Laplacyana. Ali estava, em plena caixa de spam, outra parte da solução do enigma primordial dos séculos que seguiram o XIX. A pergunta que não queria calar nem falar. Outra mensagem sem sentido aparente, a não ser quando lida por uma mente condicionada e educada, que sabia exatamente o que procurava. Além de pouquíssimos matemáticos, muito avançados, provavelmente apenas os autistas conseguiriam perceber a mensagem ali contida. Palavras e números jogados aleatoriamente, à primeira vista, numa sutil ordem que fazia a mente de Cibernécio funcionar furiosamente. Três meses depois da primeira, ele recebeu a mensagem que continha as condições iniciais perdidas, difundida por Valorya Inithialya. Fitou a mensagem, chave para a solução de algo que poderia mudar a história da humanidade para sempre. Não leu a mensagem do início ao fim. Leu o conjunto todo, com a visão periférica. Paralelamente, em segundo plano, sua privilegiada mente montou todo o problema, finalmente. Deve ter sido a visão da solução de um dos maiores enigmas da era pós-moderna o que danificou irremediavelmente os axônios e dendritos do Cibernécio, que passaram a funcionar de tal forma que apenas a caça às baganas lhe interessa.

Cibernécio conseguiu descobrir como funciona o tabulador do editor de textos.

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19.3.07

A Loteria do Infortúnio

A Loteria do Infortúnio

Por Paulo Heuser

A última fatura do cartão de crédito trouxe uma novidade admirável. Não sei como, ninguém havia pensado nisto antes. Há produtos e serviços que estão aí, caindo de maduros, sem que ninguém os perceba. Até que um dia, alguém é acometido de um surto de criatividade, trazendo a novidade à luz. Como quem chega na frente leva uma vantagem enorme, o sucesso está garantido. Neste caso, em especial, o produto revoluciona a área de seguros.

Muita gente, onde não me incluo, deixa de fazer seguros porque acredita que a estatística joga a seu favor. Às vezes dá certo, noutras dá o infortúnio. Eu acredito que as seguradoras sempre jogam para não perder. E elas têm o monopólio do infortúnio. Recebi, junto à fatura original, outra intitulada “Acidentes Pessoais com Sorteio”. Há uma folha anexa com o regulamento, mas não consigo lê-lo. Nem eu, nem mais ninguém além dos 40. Letrinha menor do que aquela da composição química provável das coisas que levam (e trazem) gorduras trans. Impossibilitado de descobrir como a coisa funciona, posso ao menos imaginá-la, a partir do título.

A natureza estatística dos acidentes impede o planejamento de um fluxo de caixa sem surpresas. Um ônibus de peregrinos cai da ribanceira. Pronto, foi-se o caixa da seguradora, naquela semana. Por outro lado, os segurados também não podem planejar a vida de forma conveniente, ante a possibilidade de acidentes pessoais. Dona Lourdes tira férias para fazer peregrinação e o ônibus no qual ela viaja cai da ribanceira. Sempre acontece com ônibus de peregrinos. Foram-se as férias, foi-se a peregrinação. Se fosse capaz de prever os acidentes antecipadamente, Dona Lourdes não tiraria férias na época dos acidentes. Com sorteio mensal de acidentes pessoais, bastaria tirar férias logo após um sorteio onde não fosse contemplada. Bom para Dona Lourdes, que não perderá a peregrinação, bom para a seguradora, que sabe exatamente quanto vai pagar de indenizações. Só não descobri se é possível dar lance, tirando um acidente além do sorteio.

Outra coisa que não me foi possível identificar, é se há tipificação do acidente, por natureza, como a queda da escada ao trocar lâmpadas ou atropelamento pelo cortador de grama. Poderá haver outras, como escorregão no pipi do cachorro e intoxicação pelo pastel do boteco. Bem, este último é, na verdade, uma tentativa de suicídio, não coberta por nenhum tipo de seguro. De qualquer forma, a tipificação poderá frustrar um segurado que sonha com uma perna quebrada e ganha apenas um braço quebrado, na extração pela Loteria Federal. Mais justo poderá vir a ser o sorteio de quantias em dinheiro, para indenização de acidentes pessoais à escolha do segurado, desde um cardápio de opções.

Não paro de me espantar com a criatividade do ser humano na concepção de produtos como este. Coisa de gênio, como o consórcio de sepultamento. Foi sorteado no mês e não aproveitou, perdeu a vez. Depois, só por lance.

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16.3.07

Organizações Trindade

Organizações Trindade

Por Paulo Heuser

O Chefe sempre era o primeiro a chegar nas Organizações Trindade. Os funcionários nunca conseguiam chegar antes dele, por mais cedo que chegassem. O sujeito parecia onipresente. Quando Dona Madalena chegou, ele lia o relatório do dia anterior. Não parecia nada satisfeito, apenas fazendo um gesto vago em retribuição ao alegre cumprimento dela. Quando ela pensou em fazer um café, ele rugiu:

- Chame o Gabriel!

Dona Madalena conseguiu localizá-lo no refeitório. Ele chegou, ainda mastigando, com migalhas de pão no paletó. Quando o Chefe chamava, não havia lugar para enrolação. Gabriel já vira do que o Chefe era capaz quando estava irado.

- Pois não, chefe...

- Você já leu este relatório? – berrou o Chefe.

- Sim, eu... – não conseguiu terminar a frase, interrompido por outro berro.

- Esse pessoal não aprende?! – as sobrancelhas do Chefe estavam ameaçadoramente erguidas, de uma forma que Gabriel vira apenas uma vez, no passado. Mau sinal, mau mesmo.

- Mande um aviso para esse pessoal. Se não pararem de vez com essas besteiras, eu engrosso o caldo! – as grossas sobrancelhas estavam ainda mais erguidas.

- Agora mesmo, chefe! – Gabriel sai correndo, em direção à sua sala.

Gabriel pediu que Dona Madalena convocasse uma reunião urgente com o pessoal do marketing. Rafael, gerente do marketing, bolou uma campanha para conscientizar o público alvo. Gabriel não acreditava muito naquelas mensagens baseadas em psicologia de mercado. Considerava mais eficiente o ataque direto, de frente. Mas, Rafael estudara a mente humana e suas reações aos estímulos da propaganda. Restou a Gabriel mandar as mensagens, através das agências de divulgação. Contrariado, pois não acreditava em mensagens subliminares. Parecia campanha de prevenção da AIDS, divulgada pelo governo. Ninguém entendia o recado.

Passado algum tempo, Gabriel teve seu café da manhã novamente interrompido, pela Dona Madalena:

- Venha correndo. O chefe está uma fera!

Gabriel saiu correndo, novamente, espanando as migalhas de pão. Encontrou o Chefe segurando outro relatório. Ou melhor, amassando outro relatório, enquanto atingia novo recorde de levantamento de sobrancelhas.

- Chega! – rugiu ele – tenho uma santa paciência, mas isto superou qualquer coisa aceitável. Chame o Uriel!

Gabriel tremeu só de pensar. Uriel não era exatamente um sujeito calmo e ponderado. Ele entrou na sala, olhou para o terno de Gabriel e disse:

- Por que você não come pão pitah? Não faz migalhas, como o pão francês.

Era sempre assim, Uriel chegava debochando de alguma coisa. O Chefe trovejou a ordem, sem demora:

- Uriel, dê um jeito nesse pessoal! Faça o que julgar necessário, você tem todo meu apoio.

Gabriel ainda se lembrava do que ocorreu da última vez que o Chefe deu carta branca a Uriel. Começou a suar frio. Uriel preparou um programa de ação de dez itens, para resolver a situação. Coube a Miguel, da segurança, executá-lo.

O primeiro item mandava estragar a água. De pouco, ou nada, adiantou. Miguel escreveu no relatório que a água já estava uma porcaria, ninguém mais a bebia mesmo. Quando Miguel foi jogar uma bactéria nos rios, deparou-se com milhões de peixes mortos.

- Pule para o item dois! - orientou Uriel.

Miguel encheu o lugar com sapos, conforme o plano. O tiro saiu pela culatra. O pessoal festejou a chegada dos sapos, pois estes comiam os pernilongos que infestaram tudo, depois da morte dos peixes.

- Vá ao três! Quero ver escaparem dessa! – falou Uriel.

Lá se foi Miguel, carregando piolhos suficientes para infestar milhares de crianças. Delas passariam para os adultos. A idéia de colocá-los nas crianças foi de Uriel. Seria fácil encontrá-las nas escolas. Deram com os burros n’água, novamente. Os piolhos enviados por Miguel encontraram milhões de cabecinhas já infectadas com piolhos bem mais agressivos, rechaçando os recém-chegados.

Do quarto item não há muito sobre o que falar. As moscas apenas foram encontrar suas colegas, já espalhados por tudo. O quinto item mandava exterminar o gado. Chegaram tarde, pois a aftosa já havia feito o serviço. Úlceras e tumores, parte integrante do sexto item, apenas engrossaram um pouco mais as filas da saúde.

- Toca a saraiva do item sete! – gritou o já encolerizado Uriel.

A chuva de granizo chegou logo após as tempestades de verão, que já haviam arrasado todas as lavouras e telhados. Foi apenas mais uma.

- Gafanhotos, então! Desta vez eles não escapam, item oito neles! – Uriel gritou, vermelho de raiva.

Como já não havia muito verde para os gafanhotos atacarem, Miguel escolheu uma região cheia de eucaliptos, para soltá-los. Muitos morreram de fome, já que um bando ensandecido se antecipou, arrasando tudo. Outros comeram gramados artificiais, morrendo de indigestão. Uriel tinha apenas dois cartuchos, não podendo mais errar o tiro. Quando ia mandar Miguel escurecer tudo, por três dias, o Chefe, que tudo observava, chamou todos para uma reunião.

- Chega! Desta vez, vou eu mesmo tomar conta disso. Se quiser algo bem feito, faça você mesmo!

- Ainda temos dois itens no plano... – protestou Uriel.

- Essa porcaria de plano não dá certo! – fulminou o Chefe – Já deu no passado, mas agora não dá mais!

O silêncio que se fez a seguir foi rompido pelo trovejar definitivo do Chefe, sem dar margem à contestação:

- Chamem o Noé!


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15.3.07

Ovos de Chumbo

Ovos de Chumbo

Por Paulo Heuser

Esta história não é inédita, nem é de minha autoria. Não sei nem se é verídica, mas merece ser preservada. Foi-me contada por um senhor idoso, durante os Anos de Chumbo, época em que era mais saudável fazer piadas sobre galinhas e velhinhas. Homem de fala fácil, espirituoso, ele contava sobre uma vizinha que, como muitos na época, criava galinhas no quintal. Como esta é uma história fictícia, vamos chamá-la apenas de Frau Hühnen, nome bem simples. Ele será o Sr. Schlachter, outro nome simples.

Olhando por cima do muro, o Sr. Schlachter viu Frau Hühnen saindo do galinheiro, carregando o cesto dos ovos. Sabia o que era, pois os cestos de ovos sempre são redondos, de palha, com uma alça grande, também arredondada. Ele lhe perguntou sobre o número de ovos recolhidos.

- Onze, tenho doze galinhas, mas um ovo quebrou. – disse-lhe ela.

- Como? Suas galinhas não põem dois ovos por dia?

- Não, só um! – respondeu-lhe ela, espantada.

- As minhas põem dois! – rebateu ele.

- Como? – perguntou-lhe Frau Hühnen.

- Bem, há um segredo – ele confidenciou – coloco ovos de chumbo nos ninhos.

- Ovos de chumbo? Onde se consegue isso? – perguntou-lhe ela, admirada.

- Bem, há apenas um lugar que os vende – disse ele, olhando para os lados, como quem quer manter um segredo – na Ferragem Älter. Mas, cuidado! Peça apenas para o Herr Orthopäde Kranker, ele é o único que pode vendê-los!

- Frau Hühnen foi à Ferragem Älter na mesma tarde, pedindo para falar com o Senhor Orthopäde Kranker, um homem idoso, muito para lá dos 80, corcunda, devido a um problema de coluna que surgira enquanto os anos se empilhavam. A idade nunca o impedira de atender os clientes no balcão da ferragem, apesar do andar arqueado, com o torso inclinado para a frente e as pernas entreabertas.

- O senhor tem ovos de chumbo? – perguntou-lhe Frau Hühnen.

- Não, tenho reumatismo! – respondeu-lhe ele.


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Semáforos e Rotundas

Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 17/03/2007
Esta a ducentésima postagem, no mês do primeiro aniversário deste sítio.



Semáforos e Rotundas

Por Paulo Heuser

Dizem por aí que os primeiros semáforos de trânsito foram instalados em 1868, defronte ao Palácio de Westminster, sede do parlamento inglês, em Londres. Aqueles semáforos utilizavam luminárias a gás, acionados através de alavancas colocadas na base do poste. Ou seja, havia um policial operando o dispositivo. Contam que o primeiro espécime explodiu, realizando o sonho de muitos motoristas contemporâneos. Ainda me lembro do primeiro semáforo instalado em Santa Cruz do Sul, no cruzamento das ruas Marechal Floriano e Júlio de Castilhos. O semáforo virou assunto obrigatório na cidade. Famílias inteiras foram assistir, in loco, ao funcionamento da coisa. Quase conseguiram criar um congestionamento de trânsito, pois todos queriam experimentar a sensação de serem barrados por uma máquina, não mais pelo brigadiano apitando e gesticulando sobre o cubo. Quase conseguiram, mas a largura das ruas não o permitiu. Hoje há um semáforo moderno, naquele local, que indica em quanto tempo se dará a transição dos sinais.

Para quem não costuma vê-los, os semáforos são aquelas latas amarelas, dotadas de três lâmpadas coloridas, nas cores verde, amarelo e vermelho, dependuradas em postes. Servem, hipoteticamente, para ordenar o fluxo do trânsito, evitando as colisões dos veículos nos cruzamentos. Quando há mais de duas vias, faz-se necessário o estabelecimento de tempos, ou fases, para cada via.

O significado de cada cor, na prática, varia conforme o tipo de veículo. O sinal verde, para os automóveis em geral, significa que podem seguir em frente. Carroças e lotações param, exatamente sob o semáforo, no meio da rua. O sinal amarelo também é interpretado de forma diferente, dependendo do tipo de veículo. Alguns motoristas freiam, outros aceleram. Talvez por esta razão as colisões costumam ocorrem no sinal amarelo. Para muitos motoristas de ônibus urbanos, o sinal amarelo apresenta significados distintos, dependendo da via em que se encontram. Quando estão na via do sinal amarelo, este indica que há uma excelente oportunidade para obstruir a via perpendicular, avançando quando não há espaço à frente. Quando estão na via perpendicular (no sinal vermelho), significa que devem arrancar antes que mude para o verde, uma questão de honra, aparentemente. Finalmente, o sinal vermelho também admite múltiplas interpretações. Para a maior parte dos condutores, significa que devem parar o veículo. Para carroças e bicicletas, nada significa. Para muitos motoristas de automóveis, se apresenta como uma ótima oportunidade para a criação de pistas de rolagem adicionais, pela direita, pela esquerda ou pelo centro. Aparentemente me esqueci das motos. Não, para elas os sinais nada significam, nenhum deles.

Quando há cruzamento de mais de três vias, implanta-se uma rotunda, ou rotatória, permitindo a entrada dos veículos conforme algum critério de preferência. Sabe-se apenas que estando lá dentro, só saímos quando desejamos, temos a preferência. Fico tentado a dar voltas e voltas na rotunda, só para sentir o poder, olhando com desdém os coitados que tentam ingressar nela. As rotundas de grande diâmetro, como a do Arco do Triunfo, em Paris, até que funcionam. As pequenas são fábricas de colisões, denunciadas pelo acúmulo de cacos de faróis e sinaleiras de automóveis.

Em Brasília as rotundas são conhecidas como “balões”. Imagine o tamanho do balão necessário para controlar o trânsito de todas aquelas correntes nos ministérios? Com as últimas nomeações e intenções, um semáforo teria mais de dez lâmpadas de cores diferentes, algumas de cores tão distantes no espectro quanto o vermelho está do violeta. Por outro lado, a Esplanada dos Ministérios forma uma boa rotunda.

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10.3.07

A Fila

A Fila

Por Paulo Heuser

Filas boas são aquelas que têm hora certa para terminar, como as do cinema ou do teatro. Filas ruins são aquelas que não apresentam perspectiva clara de um final. Como uma que me meti nesta semana, para renovar um documento. Já tentara duas vezes antes, mas as filas, lá pelas 7 horas, haviam me desestimulado. Troquei de tática, indo para um local de atendimento menos visado. Antes de o sol nascer, lá me fui, esperançoso, para encontrar... uma fila, já na rua. Acabei ficando, desta vez, convencido pelo argumento ouvido de alguém atrás de mim: - hoje haverá senha para todos!

O aspecto terrível de uma fila é a ociosidade forçada. Nada há para se fazer, senão esperar. Cães sabem esperar, homens não. Nos distraímos olhando quem está na fila, nos primeiros minutos. Depois começa o sofrimento. E eu esqueci Tolstoi em casa! Guerra e Paz seria uma boa pedida, pelo tamanho da fila. Alguns acabam se socializando rapidamente, ao ingressar na fila. Os assuntos giram em torno da própria fila e das experiências anteriores nas filas. Imagino que numa fila do SUS fale-se sobre doenças. Aqui não, fala-se sobre filas, mesmo. Uma senhora carregando uma bolsa enorme parecia ter muita experiência, pois contava causos de filas, engatando um no outro.

Às 7 horas foram distribuídas as senhas. Coube-me a 36. Barbada, acreditei. Havia apenas 35 na minha frente. Parte do pessoal da fila pedia outros serviços. Havia até lugares para sentar! Cedo, entendi porque. A fila não andava, talvez por estarmos sentados. Ali, apenas o relógio andava, muito lentamente. Relógios de filas não têm ponteiros de segundos. Parecem estar parados, como a fila. Quando o estômago começou a reclamar, lá pelas 8h30, saí para procurar um lanche, já que perdera o café da manhã. Havia diversos bares nas proximidades. Todos com algo em comum. A falta de jornais, para vender, e a abundância de máquinas de jogos. Máquinas pretas, formando extensas fileiras, maiores do que as fileiras de banquetas junto aos balcões. Desisti, contentei-me em mastigar um jornal. Li tudo, editorial, horóscopo, obituários, resultados de loterias, tudo mesmo. Bem, nem tudo, evitei notícias sobre filas. E já chamavam a senha 11! Apenas 25 me separavam da liberdade. Vinte e cinco - hipoteticamente falando, pois havia numeração separada para os que merecem tratamento diferenciado, como idosos e deficientes físicos. Repentinamente, me passou pela cabeça que o Lar da Vovó Documentada poderia trazer todas as suas 128 internas para renovar o documento. Minha senha saltaria para 164.

A cada cinco minutos, um menino sentado à minha direita me perguntava sobre o número da senha que estavam chamando. Creio que, por três vezes, lhe respondi o mesmo. A expressão de angústia dele dava pena. O tempo não passa, para as crianças. Para os adultos, também não. Um sujeito sentado mais atrás gritava que estaria tudo errado. Documento de identidade seria uma bobagem. Deveriam tirar sangue, apenas. O DNA seria a resposta, segundo ele. À esquerda, uma funcionária discutia com um rapaz que aparentava problemas de comunicação, entre o Tico e o Teco. Parecia ser um velho conhecido, por ali. Quando a funcionária, pacientemente, lhe explicava como proceder, ele saltava para trás, num curioso movimento elástico, quase ninja, para fugir, enquanto gritava que não sairia dali sem o documento. Saiu, logo depois, conduzido pelo segurança.

As histórias se sucediam, aqui e ali, em vários focos. Um ouvido treinado e uma mente ociosa conseguem acompanhá-las, concorrentemente. Algumas documentadas em velhas e esfarrapadas certidões de nascimento, ou casamento, com ares de haverem saído da Biblioteca de Alexandria. Distraído com as comédias e os dramas, quase não ouvi o grito abafado, vindo de trás do biombo, chamando a senha 36. Bingo! Quebrei a banca! O menino, surpreso, perguntou-me novamente sobre a senha chamada. E eram apenas 10h30! Eu ficara apenas 3h30 horas sentado ali! Certo, esperei durante quatro horas, somando os 30 minutos de fila na rua. Daria apenas para voar a Salvador.

O simpático rapaz que me atendeu comentou que eu estava muito tenso, dificultando a digitalização das impressões digitais (não é que combina?). Fiquei tentado a lhe contar que eu estava esperando há quatro horas, mas desisti. Apenas sorri e relaxei. Imediatamente antes de o tripé da câmera fotográfica desabar sobre mim, trazendo-a consigo. Foi então, ao agarrar a câmera, feito pegador de beisebol, que eu me dei conta que uma fila não é apenas uma espera, é uma experiência de vida. Penosa, por vezes, mas interessante. Dá o que falar ou escrever.

Saí de lá às 10h45. Na passagem para a saída, tive de rir muito. Dei uma boa gargalhada quando vi o número da senha que o menino perguntador segurava impacientemente entre os dedos. Era o número 80!

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8.3.07

Dia das Mulheres

A Ordem Das Mulheres

Por Paulo Heuser

Às mulheres coube o papel de mártir, na História. Diz-se dos prostitutos que exercem a profissão por prazer, apesar da remuneração. Já delas, nenhuma virtude é enaltecida, afora a do próprio ato. São messalinas, megeras, devassas. Nada a dizer a respeito de quem as remunera. Quem tem o poder do capital sempre é puro. Na corrupção há apenas o corrompido. O corruptor aparece como uma espécie de vítima do sistema. Assim sempre foi com as mulheres. Hereges, como Joana D’Arc. Fogueira para aquelas que se sobressaíssem em alguma ciência. Bruxas, com certeza. Catarinas, Anas e Jane experimentaram a ira do Rei Henrique VIII. Muito antes disso, o apedrejamento das infiéis, ou assim consideradas, era a norma.

A elas cabe a reprodução, ativamente, apesar de serem consideradas passivas durante o ato. É delas que emerge o rebento, rebentando tudo pelo caminho, enquanto o exausto guerreiro distribui charutos ou bombons aos amigos do bar. Orgulhoso pelo feito. Às meninas as bonecas e as rendas. Numa vã tentativa de afastá-las do mercado de trabalho deles. São emotivas demais, dizem os concorrentes, quando elas agem, em verdade, com a razão. Chamadas de barbeiras no trânsito, quando não ultrapassam pela direita, nem o sinal. As seguradoras lhes dão bônus, pela menor periculosidade.

Quando chegam ao poder constituído, através do sufrágio, antes lhes negado, têm de suportar achaques dos colegas machistas, que lhes atribuem o papel de musas. Serão bibelôs parlamentares. Quando pilotam um avião comercial vêm as piadas e o espanto. Como ela aprendeu tal arte masculina? O pai a introduziu nas artes mecânicas, com certeza. Subverteu a ordem natural das coisas e lhe deu aeromodelos de presente, na infância.

Deixaram de assumir cargos de chefia nas empresas. Imagine só se engravidarem. Ficarão afastadas por muito tempo. E se o filho ou a filha tiverem febre no dia da reunião de diretoria? Nada como um homem para esses cargos. Estarão sempre disponíveis, mesmo quando os filhos estiverem doentes.

Freiras não rezam missas. Só podem rezar para si mesmas. Apenas os padres têm o poder de espalhar a palavra divina. Mesmo nas novas igrejas protestantes, nada se observa de progresso. Cabe às mulheres apenas o papel de pecadora. Redimida ou não, sempre a pecadora. Na hora de retirar o demo de dentro de alguém, este alguém sempre será uma mulher. Homens não incorporam o Inominável. Apenas as mulheres, fracas de espírito, na opinião dos homens, fracos de autoconfiança.

Os clubes ingleses, nos quais os homens fumavam charutos e liam o jornal, não admitiam mulheres. Assim é a maior parte das agremiações masculinas, leões, rotarianos, bisões, confrades e maçons. Dá para imaginar o poder que as mulheres perdem, sozinhas, contra essas confrarias? Um bando de barbados conspirando contra apenas uma mulher? Escoteiros podiam entrar no mato, aventurar-se. Meninas deveriam vender doces e acompanhar velhinhas. E assim a coisa segue, sem grandes mudanças.

Mulheres: aliem-se e conspirem. Reúnam-se em confrarias secretas, de bruxas, que seja. Exerçam seu poder. Recusem-se a tirar fotos ao lado dos velhos barrigudos da Câmara. Demitam homens que não cuidam dos filhos com febre. Façam loucas acrobacias com o seu avião de passageiros quando lhes contarem piadas sobre a comandante.

Sejam Damas de Ferro na Câmara, Joanas D’Arc nas reuniões da empresa e Madres Terezas de Calcutá consigo mesmas!

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A Volta de Shuma-Gorath

A Volta de Shuma-Gorath

Por Paulo Heuser

Os toaletes da universidade sempre foram um capítulo à parte. Foram os murais onde os estudantes expunham idéias, anseios, pensamento político e paixões. As portas dos sanitários eram um dos poucos locais seguros para alguém expor as idéias, em tempos de repressão. As câmeras ainda não estavam tão desenvolvidas. O único risco era de que um agente infiltrado do DOPS – Departamento de Ordem Política e Social - o visse saindo de lá. Pela porta do sanitário era possível identificar o curso ministrado naquele prédio. As inscrições mudavam conforme a ciência ministrada no local. Havia portas políticas, filosóficas, sociais, técnicas, anatômicas, etc. Algo como “mostre-me a porta do teu banheiro e te direi o que estudas”. Os amores platônicos estavam em todas, sem exceção. Através dessas portas descobriu-se que os engenheiros também amam. Infelizmente, nunca foi possível realizar uma bienal universitária sanitária. Apesar da pichação, havia arte ali.

A pichação dos banheiros deixou de ser arte quando começaram a soprar os ventos da democracia. Ou da demagogia, seja como for. O fato é que virou pichação pura. Nada mais justifica a inscrição de frases ou desenhos nos toaletes da universidade. Nem uma grande paixão. Os banheiros foram reformados e pintados de branco.

Talvez foi o contraste da frase pintada em preto, com a parede branca, o que me chamou tanto à atenção. Dizia simplesmente: “Shuma-Gorath vai voltar!”. Quem diabos seria Shuma-Gorath? Algum teorema? Um professor visitante (da Hungria) de Cálculo? Um prato exótico do RU? Perguntei a todos, ninguém sabia. Lembrei-me do Keyser Söze, misterioso personagem de Os Suspeitos (1995), de Bryan Singer. Ambos apresentavam algo em comum: temidos, mas nunca vistos. Aquilo não soava mais como pichação, apesar de ser. Soava como uma ameaça. Shuma-Gorath soava ameaçadoramente. Por via das dúvidas, passei a evitar aquele toalete. Noite, tudo meio deserto, melhor não arriscar.

Um a um, os toaletes passaram a exibir a mesma misteriosa inscrição, com a mesma letra: “Shuma-Gorath vai voltar!”. No fim das contas não houve alternativa. Todos os toaletes estavam pichados com a mesma frase. Google, o Oráculo do Século XXI, acabou revelando quem (ou o quê) é Shuma-Gorath. Trata-se de uma coisa verde, com ares de salgueiro-chorão (Salix babylonica) de galhos grossos e com um enorme olho vermelho no meio do caule. Um monstro da Marvel, também conhecido como Chtuma-Gurath ou Senhor do Caos – talvez em alusão à crônica falta de papel -, que seria omnipotente (?!) na sua dimensão de origem. Aí tudo ficou claro, ele estava em outra dimensão! Sem saber o que é pior, Shuma-Gorath ou Chtuma-Gurath, fiquei imaginando no que levaria alguém a escrever aquilo no toalete. E aliviado, por ele estar em outra dimensão, não nos toaletes.

Deixei de freqüentá-los, de vez, quando alguém trocou a inscrição por: “Shuma-Gorath voltou!”.

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7.3.07

Navegadores dos Maricás

Navegadores dos Maricás

Por Paulo Heuser

O Navegador (1988) é um filme dirigido por Vincent Ward. Feito na Austrália e Nova Zelândia, definitivamente não fez sucesso nos EUA, passando longe do modelo certinho da Academia de Hollywood e das salas cheias de trituradores de pipocas. O filme retrata uma pequena aldeia inglesa ameaçada pela peste negra, no século XIV. Guiados por um menino que tem sonhos fantásticos, com uma missão que poderá salvar a aldeia, os aldeões cavam um túnel desde lá até a Nova Zelândia do século XX. Não se trata de um filme de ficção científica, como poderia parecer à primeira vista. É um drama que utiliza o fantástico como alegoria. Nos sonhos do menino a aldeia seria salva se ele conseguisse colocar uma cruz sobre uma igreja do outro lado do túnel.

Uma cena impressionante do filme é a da saída dos aldeões, através de um bueiro, em plena cidade do século XX. Hoje esta cena me veio à lembrança. Na Avenida Edvaldo Pereira Paiva, aquela que contorna o Parque Maurício Sirotsky Sobrinho (Harmonia). Por lá há muitos maricás, arbustos ribeirinhos que atingem boa altura, formando uma espécie de paredão verde, entre o parque e o Guaíba.

O que seria apenas uma barreira verde, com água de um lado, parque de outro, é, na verdade, algo muito mais complexo. Não é muito fácil vê-los, mas há seres que moram em algum lugar cuja entrada, ou saída, deve estar escondida em meio àqueles maricás. São mais facilmente observáveis no nascer e no pôr-do-sol, quando migram como siris na maré. Saem do meio dos maricás no início da manhã, retornando à tardinha. A aparência deles é muito semelhante àquela dos personagens do filme. Maltrapilhos, têm a aparência de quem vive à margem deste mundo - o institucionalizado -, socialmente, pelo menos. Homens, em sua maioria, caminham sem pressa, cruzando a avenida, talvez a procura de uma igreja para colocar sua cruz, como fizeram os personagens do filme.

Serão os habitantes de alguma aldeia portuguesa da Idade Média, ameaçados pela peste negra, procurando a salvação na sua colônia do futuro? Cavaram um túnel, de acordo com o sonho fantástico de algum menino, saindo entre os maricás?

Provavelmente, esses viajantes dos maricás não sonham com as pestes do século XXI. Não sonham, as vivem.

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6.3.07

Apocalipse, agora?

Apocalipse, agora?

Por Paulo Heuser

Aníbal protegeu-se atrás de um container de lixo, desnecessário na sua função original de guardar lixo, já que havia lixo espalhado por toda a rua. O container foi promovido à condição de trincheira urbana. Aníbal é brasileiro. Não entendia bem como acabara ali, naquele momento. A farda era plenamente explicável, tratando-se de um soldado. Mas, o que fazia ali, protegendo a bandeira de outra nação? Tornara-se, inadvertidamente, um soldado da fortuna, sem motivação patriótica nenhuma. Mal remunerado, diga-se de passagem.

O abrigo improvisado deu-lhe certo conforto. Os olhos ardiam, em função de algum gás que enchia o ar da rua, criando um quadro iluminado por estranha e fantasmagórica luz amarelada. A boca seca também ardia. Sorveu goles de água, do cantil. A secura logo voltava, aliada àquela ardência incômoda.

Em meio à fumaça, mal conseguia divisar os contornos dos prédios do que, até ontem, fora uma movimentada e viva avenida. Foram-se os homens vestindo ternos e as mulheres enfiadas em elegantes taiers, equilibrando-se graciosamente sobre finos sapatos de salto alto. Aquele mundo sofisticado e movimentado deu lugar a esta praça de guerra. Havia papéis espalhados por todos os lados. A cada passagem dos helicópteros de combate, os papéis alçavam vôo novamente. As sirenes enchiam o ar com seus gritos estridentes. Tudo o que Aníbal queria, naquele momento, era um pouco de paz e silêncio. Apenas alguns poucos minutos. Ajeitou o fuzil e pensou no que fazer. Os olhos lacrimejantes não conseguiam distinguir bem os vultos que eventualmente corriam em meio à fumaça espessa. Seria aquele um amigo, um aliado? Ou seria um inimigo à espreita, esperando que Aníbal mostrasse sua cara? Por via das dúvidas, resolveu ficar atrás da lixeira-trincheira. Seu corpo começou a dar os primeiros sinais de dor e cansaço, na medida em que a carga de adrenalina baixava. A dor no ombro era a maior. Alguma coisa o atingira ali. Parecia não haver sangramento, pelo menos.

Até então, Aníbal acreditava que aliados deveriam se proteger mutuamente, em caso de ameaça à integridade de um deles. Já não estava mais nem em dúvida. Sentia na carne o ônus de proteger os outros. Parecia muito poético, quando visto de fora. Ali, do lado de dentro do circo da guerra, as coisas pareciam muito diferentes. Não havia mais moral, ética ou decência. Era cada um por si. O calor reinante dentro do colete e do capacete começou a incomodar quase tanto quanto a ardência das mucosas. Tentou escarrar, para se livrar daquela saliva densa, pastosa. Não conseguiu.

Naquele momento, Aníbal conseguiu apenas pensar no que teria levado o Lula e o Bush a criarem sua confraria do álcool em plena Avenida Paulista. Por que não foram para Abrolhos ou Alcatraz? Lá somente o Greenpeace conseguiria chegar. E o problema seria da marinha, não do exército!

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5.3.07

Corações Dementes

Corações Dementes

Por Paulo Heuser

A evolução das espécies costuma ser lenta. Não notamos alterações evolutivas importantes, em prazos curtos como a nossa própria existência. O processo é muito lento, já que as alterações ambientais que os acarretam, ocorrem também lentamente. Não sei se foi o aquecimento global, muito rápido, o que provocou mutações estranhas em alguns animais. Nas galinhas, mais notadamente. Venho observando o inexplicável aparecimento de tecidos orgânicos estranhos, junto aos corações das aves.

Quando visto pela perspectiva culinária, o coração da galinha é sempre a mesma coisa, mais gorda ou mais magra. Um pedaço de carne lisa, em formato de cuia, com encanamento na parte superior e gordura. Era, na verdade. De um tempo para cá, algo mudou. Eu posso jurar que nos corações de galinha vendidos nos supermercados têm aparecido tecidos que, ao primeiro exame mais superficial, na cozinha, apresentam hepatócitos e, o que considero mais grave, capilares sinusóides, que possuem macrófagos, denominados Células de Kupfer. E aí é aquilo que todo mundo já sabe, as células metabolizam as hemácias velhas (só as velhas!), digerem suas hemoglobinas, secretando coisas nojentas que atacam bactérias, etc. Nada de novo.

Ou melhor, há algo de muito novo nisso, pelo menos no coração. Qualquer cozinheiro ou cozinheira sabe que corações de galinhas não apresentam Células de Kupfer! Bilirrubina então, nem sonhar! Optei por um teste mais sofisticado, mais conclusivo, do que a mera observação visual. Cozinhei a coisa. Não sobrou dúvida alguma. A coisa tem aparência de fígado, cor de fígado e gosto de fígado. Trata-se de fígado, portanto.

À luz da nova descoberta, cheguei à conclusão de que podem ter ocorrido duas situações bastante distintas, uma sustentada pelo evolucionismo, que defende a evolução darwiniana, outra pelo criacionismo, que defende a presença de entidades inteligentes, por trás dos eventos como as mudanças nas espécies.

No primeiro caso, apesar de eu (e talvez todos demais) não conseguir entender por que, as galinhas estariam desenvolvendo células hepáticas no coração. Vejo apenas problemas, nesta hipótese. Passaremos a observar patologias combinadas de coração e fígado? Ainda bem que galinhas não comem feijoada nem tomam porres, senão poderiam adquirir hepatocardiopatias (ou cardiohepatopatias?). Algo aí não bate bem, pois mutações rápidas como essa costumam inviabilizar os indivíduos. O bicho nem teria crescido, para o abate, caso saísse vivo do ovo.

A segunda hipótese, criacionista, cai como uma luva, neste caso. Ora, parece evidente que há algo, ou alguém, inteligente por trás disso. Certamente há algum demente desgraçado, espertamente misturando o fígado nos pacotes de corações de galinha!

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Cego Aderaldo e a União

Cego Aderaldo e a União

Por Paulo Heuser

O Cego Aderaldo nasceu em 1878, em Crato, Ceará, e morreu em 1967. Cantando e tocando a rabeca, ele participou de um sem número de pelejas, com outros repentistas famosos, como o Zé Pretinho dos Tucuns.

Lembro-me das imagens dos cegos que as revistas e livros infantis traziam. Imagens associadas à música e, por vezes, à mendicância, provável decorrência da falta de acessibilidade às escolas e aos empregos, na época. Cego rico ia à escola, aprender Braille, cego pobre arrumava um realejo, um macaco e uma caneca. Nunca vi um cego tocando realejo, apesar da farta documentação apoiando a existência deles no passado. Imagino que o item mais difícil de se conseguir, da lista de insumos, era o macaco.

Havia também muitos relatos sobre falsos cegos, que passavam a enxergar, miraculosamente, quando a esmola não correspondia às expectativas. Seriam cegos profissionais, com carga horária definida. Sindicalizados, provavelmente.

O realejo sumiu faz muito tempo. Já Chico Buarque, em Realejo (1967), cantava:

“...Ninguém mais quer hoje em dia
Acreditar no realejo
Sua morte, seu desejo
Ninguém mais veio tirar
Então eu vendo o realejo
Quem vai levar?...”

Hoje seria necessário trocar o macaco por um boneco, ou outro simulacro qualquer. As únicas coisas fáceis de se conseguir, nesta historia, são os mendigos e as canecas. Abundam. Afloram, nas cidades e no campo. Realejos e macacos são coisas do passado. Os primeiros estão no museu, os últimos no zoológico.

Se ainda estivesse vivo, Cego Aderaldo poderia continuar pelejando, já que tocava rabeca. Esta poderia substituir os realejos, que voltaram à moda. Poderia cantar novamente Quem a Paca Cara Compra, Paca Cara Pagará, célebre peleja na qual enfrentou Zé Pretinho.

Será grande a próxima peleja, só não sei onde vão conseguir 27 realejos e 27 macacos. Os 27 pedintes não faltarão, nem as 27 canecas, imensas, por sinal. Pena que o resultado da peleja já esteja definido, por antecipação. Como em terra de cego pobre, quem tem um olho rico é presidente, vencerá o tal de Lula da União. Contra todos os 27 pedintes unidos, de canecas na mão.

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