10.3.07

A Fila

A Fila

Por Paulo Heuser

Filas boas são aquelas que têm hora certa para terminar, como as do cinema ou do teatro. Filas ruins são aquelas que não apresentam perspectiva clara de um final. Como uma que me meti nesta semana, para renovar um documento. Já tentara duas vezes antes, mas as filas, lá pelas 7 horas, haviam me desestimulado. Troquei de tática, indo para um local de atendimento menos visado. Antes de o sol nascer, lá me fui, esperançoso, para encontrar... uma fila, já na rua. Acabei ficando, desta vez, convencido pelo argumento ouvido de alguém atrás de mim: - hoje haverá senha para todos!

O aspecto terrível de uma fila é a ociosidade forçada. Nada há para se fazer, senão esperar. Cães sabem esperar, homens não. Nos distraímos olhando quem está na fila, nos primeiros minutos. Depois começa o sofrimento. E eu esqueci Tolstoi em casa! Guerra e Paz seria uma boa pedida, pelo tamanho da fila. Alguns acabam se socializando rapidamente, ao ingressar na fila. Os assuntos giram em torno da própria fila e das experiências anteriores nas filas. Imagino que numa fila do SUS fale-se sobre doenças. Aqui não, fala-se sobre filas, mesmo. Uma senhora carregando uma bolsa enorme parecia ter muita experiência, pois contava causos de filas, engatando um no outro.

Às 7 horas foram distribuídas as senhas. Coube-me a 36. Barbada, acreditei. Havia apenas 35 na minha frente. Parte do pessoal da fila pedia outros serviços. Havia até lugares para sentar! Cedo, entendi porque. A fila não andava, talvez por estarmos sentados. Ali, apenas o relógio andava, muito lentamente. Relógios de filas não têm ponteiros de segundos. Parecem estar parados, como a fila. Quando o estômago começou a reclamar, lá pelas 8h30, saí para procurar um lanche, já que perdera o café da manhã. Havia diversos bares nas proximidades. Todos com algo em comum. A falta de jornais, para vender, e a abundância de máquinas de jogos. Máquinas pretas, formando extensas fileiras, maiores do que as fileiras de banquetas junto aos balcões. Desisti, contentei-me em mastigar um jornal. Li tudo, editorial, horóscopo, obituários, resultados de loterias, tudo mesmo. Bem, nem tudo, evitei notícias sobre filas. E já chamavam a senha 11! Apenas 25 me separavam da liberdade. Vinte e cinco - hipoteticamente falando, pois havia numeração separada para os que merecem tratamento diferenciado, como idosos e deficientes físicos. Repentinamente, me passou pela cabeça que o Lar da Vovó Documentada poderia trazer todas as suas 128 internas para renovar o documento. Minha senha saltaria para 164.

A cada cinco minutos, um menino sentado à minha direita me perguntava sobre o número da senha que estavam chamando. Creio que, por três vezes, lhe respondi o mesmo. A expressão de angústia dele dava pena. O tempo não passa, para as crianças. Para os adultos, também não. Um sujeito sentado mais atrás gritava que estaria tudo errado. Documento de identidade seria uma bobagem. Deveriam tirar sangue, apenas. O DNA seria a resposta, segundo ele. À esquerda, uma funcionária discutia com um rapaz que aparentava problemas de comunicação, entre o Tico e o Teco. Parecia ser um velho conhecido, por ali. Quando a funcionária, pacientemente, lhe explicava como proceder, ele saltava para trás, num curioso movimento elástico, quase ninja, para fugir, enquanto gritava que não sairia dali sem o documento. Saiu, logo depois, conduzido pelo segurança.

As histórias se sucediam, aqui e ali, em vários focos. Um ouvido treinado e uma mente ociosa conseguem acompanhá-las, concorrentemente. Algumas documentadas em velhas e esfarrapadas certidões de nascimento, ou casamento, com ares de haverem saído da Biblioteca de Alexandria. Distraído com as comédias e os dramas, quase não ouvi o grito abafado, vindo de trás do biombo, chamando a senha 36. Bingo! Quebrei a banca! O menino, surpreso, perguntou-me novamente sobre a senha chamada. E eram apenas 10h30! Eu ficara apenas 3h30 horas sentado ali! Certo, esperei durante quatro horas, somando os 30 minutos de fila na rua. Daria apenas para voar a Salvador.

O simpático rapaz que me atendeu comentou que eu estava muito tenso, dificultando a digitalização das impressões digitais (não é que combina?). Fiquei tentado a lhe contar que eu estava esperando há quatro horas, mas desisti. Apenas sorri e relaxei. Imediatamente antes de o tripé da câmera fotográfica desabar sobre mim, trazendo-a consigo. Foi então, ao agarrar a câmera, feito pegador de beisebol, que eu me dei conta que uma fila não é apenas uma espera, é uma experiência de vida. Penosa, por vezes, mas interessante. Dá o que falar ou escrever.

Saí de lá às 10h45. Na passagem para a saída, tive de rir muito. Dei uma boa gargalhada quando vi o número da senha que o menino perguntador segurava impacientemente entre os dedos. Era o número 80!

E-mail: prheuser@gmail.com

1 Comments:

At terça-feira, 13 março, 2007, Blogger José Elesbán said...

Esta crônica me lembra muito quando eu tive que ir ao INSS tratar assunto de interesse de minha mãe...

 

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