22.3.07

À Sombra da Criméia




À Sombra da Criméia

Por Paulo Heuser

Heino viveu os horrores de II Guerra Mundial. Sua excentricidade é atribuída aos momentos de angústia e desespero pelos quais passou. Sabe o que é escassez. Sabe o que é fome. Viu a morte de perto, muito perto. Uma granada explodiu ao lado dele, em Uerckermünde. Somente Judas, depois de perder as botas, e Heino sabem onde isso fica, mas ele sempre conta histórias de lá. Histórias tristes, sobre bombardeios, trincheiras e soldados mortos. Normalmente frio, distante, e reservado, como convém a todo oriundo da Prússia, Heino se soltava um pouco ao freqüentar aquele velho bar daquele clube decadente, onde ainda se jogava general em copos de couro. O ar empestado de odores de mofo e velhas bebidas destiladas, o ruído característico do copo batendo na mesa de feltro verde encardido, o vidro de rollmops de ovo cozido enrolado com sardinha, sobre o balcão, tudo o remetia de volta a pátria perdida, o Heimatland. Chegava, impecavelmente vestido, no seu terno cinza com gravata borboleta verde. Seus companheiros de chegada eram o copo de cerveja, ao lado do de Steinhaeger, formando o clássico ponto-e-vírgula. O cigarro com piteira e o jornal completavam o quadro.

Após ler o jornal, de cabo a rabo, Heino arriscava-se no jogo de sinuca e na conversa frugal decorrente. Depois, juntava dois pastéis e dois rollmops, e partia para casa, onde faria sua solitária ceia, num ritual que se repetia há incontáveis anos. Cada dia terminava como o anterior. A única perturbação eventual era a partida, para o reino do além, de algum velho companheiro da sua autista relação muda. Nunca deixou de comparecer aos velórios e enterros, nem de levar flores brancas. A gravata borboleta, contudo, continuava verde.

Ontem, a rotina de Heino foi quebrada. Em parte, na verdade. Mas todo mundo, pelo menos do mundo dele, reparou. A porta vaivém da entrada do bar abriu-se, como de costume, dando passagem ao dono da borboleta verde. Ele sentou-se sobre um dos altos bancos com topo de couro vermelho, saudou formalmente o ecônomo, pegou o jornal e congelou. Talvez seja esta a melhor palavra para descrever o que ocorreu. O cigarro queimou sozinho, o copo de Steinhaeger restou abandonado sobre o centenário balcão, a cerveja perdeu seu colarinho, apenas o cheiro de mofo permaneceu.

Quando a brasa do cigarro atingiu a piteira, criando um cheiro desagradável de resina queimada, Heino saiu do seu transe. E saiu do bar, apressado, em direção ao mercado. Heino esqueceu pastéis e rollmops nesse dia. Comprou batatas, cinco sacos de batatas, e muita carne enlatada, encalhada há muito, por sinal. Comprou também um enorme estoque de velas, fósforos e Steinhaeger. Quem o viu deixar o bar, e adentrar o armazém, jura tê-lo ouvido murmurar, entre os dentes, a frase “Eles de novo, não!”. Não saía da cabeça de Heino a fotografia oficial da Conferência de Yalta, na Criméia, em 1945, mostrando as poderosas figuras de Churchill, Roosevelt e Stalin. “Eles não podem ter voltado! De novo, não!” – atormentava-se ele, enquanto enchia o carrinho de compras com latas.

Seu Norberto, do bar, não entendia o que acontecera com Heino. Não levara pastéis nem rollmops, fato realmente notável. O pessoal dos jogos de sinuca e general reuniu-se, pela primeira vez em 45 anos, para debater o assunto. Sobre o balcão, abandonado, jazia o jornal que Heino viu. Na capa, em evidência, as figuras de um presidente, um vice e um ex, sorriam alegremente para a posteridade, na Criméia do Planalto. Heino pedia querosene, um estoque de querosene. - Não tem da marca jacaré? – perguntava ele, aflito.





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