16.3.07

Organizações Trindade

Organizações Trindade

Por Paulo Heuser

O Chefe sempre era o primeiro a chegar nas Organizações Trindade. Os funcionários nunca conseguiam chegar antes dele, por mais cedo que chegassem. O sujeito parecia onipresente. Quando Dona Madalena chegou, ele lia o relatório do dia anterior. Não parecia nada satisfeito, apenas fazendo um gesto vago em retribuição ao alegre cumprimento dela. Quando ela pensou em fazer um café, ele rugiu:

- Chame o Gabriel!

Dona Madalena conseguiu localizá-lo no refeitório. Ele chegou, ainda mastigando, com migalhas de pão no paletó. Quando o Chefe chamava, não havia lugar para enrolação. Gabriel já vira do que o Chefe era capaz quando estava irado.

- Pois não, chefe...

- Você já leu este relatório? – berrou o Chefe.

- Sim, eu... – não conseguiu terminar a frase, interrompido por outro berro.

- Esse pessoal não aprende?! – as sobrancelhas do Chefe estavam ameaçadoramente erguidas, de uma forma que Gabriel vira apenas uma vez, no passado. Mau sinal, mau mesmo.

- Mande um aviso para esse pessoal. Se não pararem de vez com essas besteiras, eu engrosso o caldo! – as grossas sobrancelhas estavam ainda mais erguidas.

- Agora mesmo, chefe! – Gabriel sai correndo, em direção à sua sala.

Gabriel pediu que Dona Madalena convocasse uma reunião urgente com o pessoal do marketing. Rafael, gerente do marketing, bolou uma campanha para conscientizar o público alvo. Gabriel não acreditava muito naquelas mensagens baseadas em psicologia de mercado. Considerava mais eficiente o ataque direto, de frente. Mas, Rafael estudara a mente humana e suas reações aos estímulos da propaganda. Restou a Gabriel mandar as mensagens, através das agências de divulgação. Contrariado, pois não acreditava em mensagens subliminares. Parecia campanha de prevenção da AIDS, divulgada pelo governo. Ninguém entendia o recado.

Passado algum tempo, Gabriel teve seu café da manhã novamente interrompido, pela Dona Madalena:

- Venha correndo. O chefe está uma fera!

Gabriel saiu correndo, novamente, espanando as migalhas de pão. Encontrou o Chefe segurando outro relatório. Ou melhor, amassando outro relatório, enquanto atingia novo recorde de levantamento de sobrancelhas.

- Chega! – rugiu ele – tenho uma santa paciência, mas isto superou qualquer coisa aceitável. Chame o Uriel!

Gabriel tremeu só de pensar. Uriel não era exatamente um sujeito calmo e ponderado. Ele entrou na sala, olhou para o terno de Gabriel e disse:

- Por que você não come pão pitah? Não faz migalhas, como o pão francês.

Era sempre assim, Uriel chegava debochando de alguma coisa. O Chefe trovejou a ordem, sem demora:

- Uriel, dê um jeito nesse pessoal! Faça o que julgar necessário, você tem todo meu apoio.

Gabriel ainda se lembrava do que ocorreu da última vez que o Chefe deu carta branca a Uriel. Começou a suar frio. Uriel preparou um programa de ação de dez itens, para resolver a situação. Coube a Miguel, da segurança, executá-lo.

O primeiro item mandava estragar a água. De pouco, ou nada, adiantou. Miguel escreveu no relatório que a água já estava uma porcaria, ninguém mais a bebia mesmo. Quando Miguel foi jogar uma bactéria nos rios, deparou-se com milhões de peixes mortos.

- Pule para o item dois! - orientou Uriel.

Miguel encheu o lugar com sapos, conforme o plano. O tiro saiu pela culatra. O pessoal festejou a chegada dos sapos, pois estes comiam os pernilongos que infestaram tudo, depois da morte dos peixes.

- Vá ao três! Quero ver escaparem dessa! – falou Uriel.

Lá se foi Miguel, carregando piolhos suficientes para infestar milhares de crianças. Delas passariam para os adultos. A idéia de colocá-los nas crianças foi de Uriel. Seria fácil encontrá-las nas escolas. Deram com os burros n’água, novamente. Os piolhos enviados por Miguel encontraram milhões de cabecinhas já infectadas com piolhos bem mais agressivos, rechaçando os recém-chegados.

Do quarto item não há muito sobre o que falar. As moscas apenas foram encontrar suas colegas, já espalhados por tudo. O quinto item mandava exterminar o gado. Chegaram tarde, pois a aftosa já havia feito o serviço. Úlceras e tumores, parte integrante do sexto item, apenas engrossaram um pouco mais as filas da saúde.

- Toca a saraiva do item sete! – gritou o já encolerizado Uriel.

A chuva de granizo chegou logo após as tempestades de verão, que já haviam arrasado todas as lavouras e telhados. Foi apenas mais uma.

- Gafanhotos, então! Desta vez eles não escapam, item oito neles! – Uriel gritou, vermelho de raiva.

Como já não havia muito verde para os gafanhotos atacarem, Miguel escolheu uma região cheia de eucaliptos, para soltá-los. Muitos morreram de fome, já que um bando ensandecido se antecipou, arrasando tudo. Outros comeram gramados artificiais, morrendo de indigestão. Uriel tinha apenas dois cartuchos, não podendo mais errar o tiro. Quando ia mandar Miguel escurecer tudo, por três dias, o Chefe, que tudo observava, chamou todos para uma reunião.

- Chega! Desta vez, vou eu mesmo tomar conta disso. Se quiser algo bem feito, faça você mesmo!

- Ainda temos dois itens no plano... – protestou Uriel.

- Essa porcaria de plano não dá certo! – fulminou o Chefe – Já deu no passado, mas agora não dá mais!

O silêncio que se fez a seguir foi rompido pelo trovejar definitivo do Chefe, sem dar margem à contestação:

- Chamem o Noé!


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