20.7.09

538 - Como somos felizes

Foto: Wikipedia
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Como somos felizes

Paulo Heuser


É, somos felizes, às vezes, mesmo sem sabê-lo. Vejamos o caso dos astronautas que estão a bordo da ISS – Estação Espacial Internacional -, cuja caminhada no espaço foi atrapalhada pela quebra do mecanismo de descarga de um vaso sanitário. Ir aos pés na ausência de gravidade é algo extremamente complicado. Não bastam vaso e papel. Se há local onde a descarga tem de funcionar, aquele é o lugar. Na ausência de força aparente da gravidade, como é que aquele negócio cai, se é que esse é o termo correto? Aquele negócio não parece científico, melhor chamá-lo SDH – subproduto da digestão humana. Um estudo básico de mecânica celeste mostrará que um SDH embarcado na ISS se desloca a uma velocidade angular idêntica a do planeta. Parece coisa pouca: 7,27 x 10-5 rad/s. Numerosinho ínfimo. Contudo, na altitude média de 346 km, entre apogeu e perigeu – outro bom nome para dupla caipira -, mantida pela ISS, o SDH viaja a uma velocidade tangencial de 7,69 km/s, ou 27.684 km/h! Ou seja, quase 20 vezes a velocidade de uma bala de fuzil. Então, dá medo. O SDH deixa de ser apenas um reles cocô e transforma-se numa fantástica arma de destruição. Para sorte nossa, os ônibus espaciais trazem os SDH para a Terra. Não deixa de parecer ridículo. Gastam milhões e milhões de dólares para repatriar cocô.

Essa calculação toda vem apenas provar a assertiva inicial. Somos felizes, pois podemos nos sentar no vaso sanitário comum, sem a mínima preocupação com forças gravitacionais, velocidades angulares e tangenciais, a não ser no toalete do avião, durante turbulência. Aqui, na superfície do planeta, quase todo SDH desce. Há alguns mais complicados, devido aos problemas causados por variações na dinâmica dos gases, mas não são objeto deste estudo. O que nos interessa aqui é demonstrarmos nossa felicidade.

Os trabalhadores das estações férreas de Tóquio também se tornaram muito felizes. Nada a ver com os SDH, diga-se de passagem. Os gerentes, digo, facilitadores instalaram um sofisticado sistema de computador que analisa os sorrisos dos empregados, digo, colaboradores. O pessoal deve sorrir o tempo todo, sob pena de serem flagrados pela maravilha computacional facilitadora. Alertados pela máquina, os facilitadores humanos, ou quase, realizam a reciclagem dos colaboradores humanos pouco sorridentes.
Gente feliz. Sorriem o tempo todo.

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19.7.09

537 - O epílogo

Hamlet. Imagem: Wikipedia

O epílogo

Paulo Heuser


Essa mania de não pisar nos rejuntes tornava seu caminhar estranho. Seus passos pareciam resultantes de uma estranha marcha, na qual tentava constantemente acertar o passo. Além de contar coisas, como postes e pneus dos carros que passavam, ele apresentava essa mania de pisar somente no centro das lajes do passeio. A pé e contrapé ele avançava, alheio ao circo da vida real que fazia outra performance do dia a dia. Esmoleiros, flanelinhas, assaltantes, traficantes, rufiões e cafetinas zanzavam de um lado para o outro, provando que o negócio dos novos tempos era o setor de serviços. Uma prostituta loira - que já deveria batalhar no tempo dos bondes - tentou abordá-lo com o clássico: - Vamos fazer neném? O ruído irritante provocado por uma britadeira encobriu qualquer tentativa de resposta.

Humboldt Galifante passou quase toda a noite anterior trabalhando na encomenda de um cliente muito especial, o Grão Mestre da Nova Sociedade Imperial, agremiação que tentava reimplantar a monarquia como sistema de governo. Esse pessoal gostava das coisas à antiga, bem feitas, em materiais nobres. Humboldt preparou-lhes um novo carimbo, caprichando especialmente no brasão de armas dos Araujo Costa, família proto-imperial da nova ordem.

Os pensamentos na nova monarquia e o pisar errante foram interrompidos pelo livro que jazia bem no meio da laje sobre a qual pisaria. Humboldt parou e olhou para os lados. Centenas de pessoas haviam passado pelo livro, nenhuma parou. Apenas ele. Olhou para todos os lados, procurando algum eventual candidato a dono. Nada, ninguém, somente pessoas apressadas caminhando em todas as direções, como formigas saindo de um formigueiro recém-pisado. Ele olhou novamente para o livro órfão e o juntou. Não era seu, porém, seria inadmissível deixá-lo jogado no meio daquela laje. Afinal, era um livro. Colocou-o cuidadosamente na pasta e seguiu caminho.

A noite veio cedo. Em casa, Humboldt molhava bolachas no café com leite morno quando se lembrou do livro perdido. Ele depositou sua xícara de estimação na pia e abriu a pasta. Lá estava, um livro de capa pobre, sem orelhas, intitulado O sentido da vida, de um de tal Hieronymus Barbacena. Um pseudônimo, com certeza. Já vira esse título em diversas obras, mas desconhecia esse autor. A capa e as páginas internas não ofereciam pistas a respeito do dono do livro. Além do nome do autor, havia apenas o nome da Editora Hecatombe, outra desconhecida. Curioso, Humbold pôs-se a ler as primeiras páginas. Depois, as próximas. Encontrou um texto de leitura fácil, inicialmente, evoluindo gradativamente à profunda filosofia que levaria, aparentemente, à descoberta do sentido da vida. Quem seria esse escritor, que se escondia por trás de tão ridículo pseudônimo, capaz de criar obra de tamanha profundidade? O texto ficava cada vez mais rico e atraente, tornando impossível abandoná-lo. Leria mais algumas páginas, antes de deitar-se. Maria estranhou o desinteresse pela coleção de tampas de garrafas de leite, que ele manipulava todas as noites, após o jantar de bolachas, e quis saber o que ele fazia. – Estou lendo. - disse ele. Calou-se, a seguir, completamente absorto pela leitura que já se tornara voraz. O pulguento Rex roncava suavemente aos seus pés.

Humboldt ficou lendo, tendo por companhias a noite, o relógio de carrilhão, que dobrava a passagem das dez da noite, e o roncador Rex. Maria foi dormir. O relógio voltou a dobrar as horas seguinte. Humboldt pensou em dormir, diversas vezes, porém, o livro venceu. Fazia mais de vinte anos que ele não virava noite em claro. O silêncio da madrugada era quebrado pelo tique-taque e pelo som do virar de páginas. Finalmente, lá pelas cinco, chegou a hora da verdade, a hora da grande revelação. Ele viraria a última página. O tempo pareceu arrastar-se, e o fim da penúltima página demorou a chegar. Era hora. Veio-lhe aquela estranha sensação, misto de alegria pela chegada e de tristeza pelo fim de uma fantástica jornada pelas páginas dessa extraordinária obra.

Maria levantou-se, assustada, pois não encontrou o amado Humboldt ao seu lado. E, o que era mais estranho, não havia indícios de que ele havia sequer dormido naquela cama. Ela o encontrou sentado, onde o deixara, à escrivaninha. Ele estava acordado, apesar da aparência de catatonia profunda, segurando metade do livro em cada mão. – Humbi, o que houve? Por detrás de profundas olheiras, seus olhos finalmente se moveram. Ele tentou falar, mas sua voz não saiu. Maria apressou-se para lhe trazer uma xícara de café com leite morno. Ele mergulhou uma bolacha na xícara e a levou à boca. Então, murmurou: - Terminei o livro... Maria havia visto o título e não resistiu: - E então, Humbi, qual é o sentido da vida?

Humboldt juntou as metades do livro, como se pretendesse colá-las, e disse, olhando diretamente para algo que estaria atrás da parede:

- Não há epílogo. Leia a última página.

Maria tomou-lhe das mãos a metade final do livro e procurou a última página.

“A quem encontrar este livro, pedimos a gentileza de ligar para 0800-55555. Esta obra faz parte de um estudo desenvolvido pelos alunos da Faculdade de Literatura da Universidade Laica de Eirunepé, que espalharam livros, sem o epílogo, pelos passeios públicos das capitais. Assim, poderão estimar o número de leitores que ainda existem no País.”

A Humboldt restou apenas uma certeza, a de que não existe sentido na vida.

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15.7.09

536 - Zigoto e gameta

Foto: Paulo Heuser
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Zigoto e gameta

Paulo Heuser


Quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha? A Dra. Huhntraudt Von Der Eier, do Instituto de Estudos Criacionistas de Roswell, NM, afirma que o ovo surgiu primeiro, pois a primeira galinha nasceu de um ovo posto por uma não-galinha, e um ovo de não-galinha não pode gerar uma galinha. Portanto, aquele ovo que gerou a primeira galinha era um ovo de galinha, apesar de posto por uma não-galinha. Simples assim, fenômeno que inspirou a dupla caipira Zigoto e Gameta.

Os ovos remetem à infância, literalmente. Fui alfabetizado através de uma cartilha cheia de vês e vogais, inclusive ovos. Havia frases como: Vovó viu os ovos do vovô, e Ivo viu a uva de Eva. Vivi a infância no tempo em que se podiam comer ovos. Época maravilhosa aquela. O sujeito levantava-se, pela manhã, e recebia um ovo cozido, daqueles que se tira a tampa. Havia um suporte que mantinha o ovo de pé – Eierbecher, na primeira língua que aprendi. Eu gostava tanto desses ovos que sonhava com um Doppeleierbecher, para dois ovos. Então, a grande nação do norte descobriu que os ovos faziam mal à saúde dos habitantes do Terceiro Mundo. Foram-se os ovos, ficou a maionese de vidro. Criaram massa sem ovos, maionese sem ovos, quindim sem ovos e ovos de gelatina. O mundo nunca mais foi o mesmo, pelo menos o Terceiro. Décadas depois, os cientistas descobriram que a morte atingia não apenas aqueles que comiam ovos, já que os que não comiam ovos também morriam. Isso bastou para que muitos vegetarianos se transformassem se em verdadeiros dragões de Komodo, farejando ovos enterrados na porta da geladeira.

Creio que foi em primeiro de abril de 2008. Impressionado pela reabilitação dos ovos, resolvi experimentá-los. Cavei meu amado Eierbecher, comprei ovos e me pus a trabalhar na cozinha. Descobri algo terrível. Andaram fuçando nos tais de gametas e produziram ovos que são muito maiores, quando comparados com aqueles que eu comia na infância. Nenhum ovo moderno cabe no Eierbecher antigo. Sobra ovo para todos os lados. Como a solução de Colombo, para deixar um ovo em pé, não se aplicava nesse caso, não tive outra saída senão quebrá-lo ao meio e servi-lo no prato. Outra fuçada nos gametas tirou o gosto das gemas dos ovos. Elas ficaram com gosto de maionese de vidro. Ainda se conseguem ovos caipiras, no mercado negro. A questão do gosto até que se resolve, mas mesmo esses ovos são muito grandes. Andaram trocando a raça das galinhas caipiras.

Cozinhar ovos parece ser a mais básica das atividades culinárias, porém, há segredos na manipulação dos ovos. Ovos que afundam n’água são ovos frescos. Isso se explica porque a casca é permeável, e permite a saída de substância, substituída por ar. Por mais incrível que possa parecer, ovos cagados são melhores que ovos limpos. O ovo apresenta uma membrana ao redor da casca que é removida ao se lavá-la. Essa membrana aumenta a durabilidade do ovo. Portanto, só se lavam os ovos imediatamente antes de utilizá-los. Novamente, por mais incrível que isso possa parecer. Há quem reclame do cheiro dos ovos não lavados, mas os ovos naturais são assim mesmo, fedem.

O cozimento dos ovos também apresenta certos segredos. Um ovo padrão ABNT, de 57g, densidade 1,083 g/cm3, calor específico 3,7 J/gK e condutividade térmica 5,4 x 10-3 W cozinha em 3,5 minutos, quando a temperatura de partida é de 21⁰C, para se obter ovo mole. Se a temperatura inicial for a da geladeira, de 4⁰C, o tempo será de 4,5 minutos. Os ovos duros são de cozimento mais complexo, pois há o perigo de superaquecimento da gema. Uma técnica segura, porém demorada, é ferver o ovo por um minuto, desligar a chama e mantê-lo por mais 17 minutos n’água. Toma 18 minutos, mas o ovo fica perfeito. Se os seus ovos fogem desse padrão, não tema. Comece pela determinação da densidade, relação entre sua massa e volume. O volume pode ser determinado facilmente. Descubra duas funções que permitem determinar a curva de uma meia seção de um plano que o corta longitudinalmente. A seguir, deite a figura e calcule a integral de cada semi-plano, somando as duas partes. Quase pronto. Terá a área do plano. A partir daí, o processo é auto-explicativo, qualquer integral tripla calcula o negócio. Simples assim. Complicado mesmo, é ficar nessa posição.

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3.7.09

535 - O homem que morreu esperando

René Descartes - Frans Hals
Fonte: Wikipedia
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O homem que morreu esperando

Paulo Heuser


Houve quem queimou muita pestana tentando provar sua própria existência. René Descartes (1596-1650), em Discours de la Méthode (1623), escreveu: Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j'existe. Através do seu ceticismo metodológico, ele provou sua existência. Já que duvido, penso; já que penso, existo. Essa frase fez uma enorme diferença em várias ciências, como na Filosofia e na Matemática.

Argenor, primo do meu amigo Zé, não ficou famoso como Descartes, nem foi enterrado na Igreja de St. Germain-des-Près, em Paris. Foi um homem bom, nada havendo que o desabone. Acabou enterrado numa daquelas intermináveis carreiras de gavetas de um daqueles cemitérios subindo o morro. Descartes deveria ter sido levado ao Pantheon de Paris. Ficou no morro da Santa Genoveva. Argenor ficou no Partenon, o bairro.

O que os une? Nada, aparentemente, além do fato de ambos terem morrido. Contudo, Descartes escolheu uma frase do ressabiado poeta Ovídio, para a lápide do seu túmulo: Bene qui latuit, bene vixit. Descartes já havia percebido que vive bem quem bem se esconde. Assinar determinados textos poderia trazer muitos dissabores, principalmente quando eles afrontavam dogmas do clero e da realeza.

Pois o Argenor foi um mestre da dissimulação, ainda mais que nada criou e nada escreveu. Ele esperou, apenas. Passou a vida a esperar. Só não esperou mais porque morreu. Ele esperou pela maioridade para começar a trabalhar. Trabalhou para esperar a aposentadoria e aposentou-se para esperar a morte. Seus últimos dias não foram diferentes, acordava para esperar pela hora de dormir e dormia para esperar pela hora de acordar. O homem notabilizou-se pela espera de uma oportunidade para bem viver. Aprendeu, desde pequeno, que aqueles que foram bons durante a vida alcançariam o Paraíso, após sua morte. Lá, deixariam de esperar, presumivelmente. Certa feita, lá pelo fim, veio-lhe pavorosa dúvida. E se a próxima etapa, no Paraíso, não fosse a última? Na dúvida, Argenor não esperou pela resposta. Morreu, mesmo.

Tentaram contatar o Argenor e chegaram a convocar a Rosalina, da casa de umbanda São Jorge Guerreiro, lá das bandas do Alegrete, porém, ele não respondeu. Não se sabe se ele ainda espera ou se já deixou de esperar. Tampouco sabem se, do outro lado, há algo pelo que esperar. Esse negócio de eternidade é complicado. Lá, Argenor esperaria pelo quê?

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