30.8.07

Circo do Sol

Il Circo di Georges Seurat
Circo do Sol

Por Paulo Heuser


O Velho já não sabia mais o que fazer para tentar salvar seu novo empreendimento solo, o Circo do Sol. O negócio não ia de mal a pior, ia de péssimo a catastrófico. Em breve não conseguiria mais cobrir os custos fixos. Não teria outra opção senão fechar o tão sonhado circo. O Velho jogara todas fichas naquilo. Raimundo foi chamado para socorrer o sogro. Bem que ele prevenira o Velho do perigo de abrir um circo nestes tempos de jogos eletrônicos e second life. O Velho alegara que não tinha como não dar certo, e alegou suas razões.

O Cirque du Soleil conseguira vender a preço de ouro todos os ingressos, com um ano de antecedência, para as apresentações de um show que já tinha 13 anos, que tratava da disputa política pelo trono de um reino. Esse show já passara diversas vezes na TV. Por que ele não conseguiria fazer sucesso com um circo já instalado, palpável, onde só se pagava na bilheteria? O Velho tentara seguir a receita de sucesso da companhia canadense. Adaptara apenas algumas coisas. Chamou o espetáculo de Alergia. Adaptou também os personagens.

Fleur, o bobo vestido de vermelho, que pensava ser rei, sem o ser, deu lugar ao Seu Flor, que era rei, mas não sabia. O mago Tamir foi substituído pelo mágico Tampinha, personagem definitivamente mais ao gosto do povo. Les Nynphes – as Ninfas – eram muito sofisticadas para o público alvo do Circo do Sol. O Velho preferiu substituí-las pelo Corpo de Dança da Boyte (sic) Erotylkus Exdrúxulus, do Tonhão. A meninas passavam pelo circo, antes de irem ao batente na Boyte (sic). Mais estranho que qualquer outro aspecto, no nome da casa noturna do Tonhão, era o sic. Este sic não era simplesmente o sic (assim) do latim, pois fazia parte do nome. Foi sugestão do advogado, já que todo mundo o alertava que havia alguns erros de grafia no nome do estabelecimento. Com o sic, ninguém mais poderia falar nada, pois ficou claro que era assim, literalmente. A coisa pegou. Hoje o pessoal comenta que vai dar uma passada na sic. E o sic foi incorporado ao letreiro em néon, na fachada da Boyte (sic).

Mais alguns ajustes, daqui e dali, e o espetáculo estreou. Tinha tudo para dar certo, mas não deu. As cantoras em branco e negro foram interpretadas pela dupla Hermelina e Hermenêutica, que se empenhavam em danças de quadrilha, enquanto cantavam sucessos boiadeiros.

O Velho deu o braço a torcer e deixou Raimundo tomar conta do marketing, o Calcanhar de Aquiles do empreendimento. A campanha foi invisível. Primeiro, ele criou uma rede de intrigas e boatos operada através de uma rede de atores contratados no centro do País. Eles se infiltraram em ambientes das classes B, C e D, especialmente nas butiques de shopping e restaurantes da moda. Ouviram-se muitos diálogos protagonizados por elegantes casais:

- Querida, consegui dois ingressos para o Circo do Sol!

- O que? Como é que você conseguiu, se estão esgotados há dois anos?

- Bem, querida, mexi uns pauzinhos, sabe com é, não?

- Arlington, meu amor! Você realizou o sonho da minha vida!

- Uestvirgínia, minha paixão. Nada é demais para colocá-la no topo da escala social!

Nisso a linda personagem abraçava apaixonadamente o também lindo personagem, tascando-lhe um beijo que pedia holofotes e fanfarras. A seguir, caminhavam de mãos dadas, enquanto ela ensaiava passos esvoaçantes de uma valsa imaginária. O silêncio caia sobre os presentes, durante alguns instantes. Seguia-se um burburinho interrogativo, do tipo o quê, onde, como, quem vende, quando, tem propina? A notícia correu de boca em boca e ninguém admitia não saber o que seria o Circo do Sol. Alguns comentavam, à boca pequena, que seria uma dissidência do Circo Imperial de Alexandre, o Grande, que escapara de um massacre na Abissínia. Duas semanas depois, todo mundo afirmava ter conseguido os ingressos, seja através de um diplomata europeu, seja através de uma condessa de Paris. Porém, todos comentavam, como quem não queria nada, que necessitavam mais dois ingressos, para um casal de amigos que viria do estrangeiro, e estariam encontrando dificuldades para encontrá-los. Três semanas depois, o casal esvoaçante retornou ao restaurante, envolto em uma nuvem rósea de fumaça de gelo seco, gerada pelo contra-regra contratado especialmente para a cena. Novo silêncio. Até que o lindo e charmoso adônis segredou, quase aos brados, à sua diáfana artemísia, que os Bradley-Hampshire haviam sido convocados às pressas para assumir uma embaixada na Europa, e deixaram os ingressos à venda, com um exclusivo mercador de coisas impossíveis. O silêncio que se fez naquele ambiente foi tão terrível que todos olharam com ar de reprovação para o maitre que anotava um pedido. O ruído da caneta esferográfica deslizando sobre o papel pareceu ensurdecedor. Uestvirgínia pediu o telefone do cambista, pois os Kennel-Dachshound haviam manifestado interesse, após cancelarem a temporada de esqui no Himalaia. Em tom de conspiração, ele cochichou bem alto o número do celular do Hersheisyrup – o número do Velho.

O celular do Velho não parou mais de tocar. Os ingressos mais baratos, os de 300 reais, esgotaram-se em questão de horas. Vendeu 18 meses de lotação da casa, em duas semanas. A reestréia de Alergia foi um sucesso estrondoso. Criaram até uma categoria vip, denominada Pelego Encarnado.
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29.8.07

Quando reina o medo

Não é auto-retrato! Foto: Wikimedia
Quando reina o medo

Por Paulo Heuser


Homens têm medo dos cães, especialmente daquelas feras assassinas criadas pelos homens que não temem os cães que atacam os homens. Os cães temem os homens, especialmente os homens que criam os homens que criam os cães que... bem, houve alguma ruptura na relação de causa e efeito, em algum lugar. Esse é apenas o medo.

Há algo bem pior do que o medo, o pavor. Se o medo ajuda na sobrevivência dos animais, o pavor destrói qualquer resquício de autocontrole e racionalidade. A palavra pavor, por si só, já é pavorosa. Pavor soa como pavor, mesmo. Medo pode ser disfarçado, pavor não. Os apavorados apresentam evidentes sinais físicos de pavor. Os cães apavorados ganem como bestas ensandecidas, mordem tudo e a todos. O mesmo acontece com o bicho homem, por vezes mais besta que os cães. Encurralados em algum canto, gritam e agridem de forma descontrolada.

A origem do pavor pode ser eventual ou sazonal. Cães têm pavor do Ano Novo, evento sazonal, devido ao massacre auditivo do espocar dos foguetes. Os cães da raça Pinscher deveriam ter, mas não têm, pavor dos cães da raça Pitbull. Há homens que agem da mesma forma. Atacam insanamente os mais formidáveis adversários, dos quais deveriam nutrir verdadeiro pavor. O Zé não é um desses destemidos. Sente pavor daquele dia. Sabe, daquele. Não, não desse. É do outro, aqueeele. Poucos confessam o pavor que sentem por aquele dia, mas são traídos pelos atos. Especialmente quando adoecem.

O Zé chegou mal. Chegou é eufemismo, ele desabou na cadeira, na realidade. O cabelo desalinhado e as olheiras profundas já davam boa idéia de que algo ia mal, muito mal. Respiração ofegante, irregular e com traços de ronco de porco, apenas corroborava o diagnóstico inicial: Zé estava passando pelos terríveis sintomas de uma gripe. Por trás daquelas olheiras abissais escondiam-se olhos brilhantes, não pela alegria, mas pela febre. Parecia tremer, levemente, e vestia roupa desproporcionalmente pesada, para a temperatura ambiente. Zé personificava a desolação total e completa.

Ao vê-lo, pensei logo na inconveniência de alguém vir trabalhar nesse estado. Por que espalhar vírus e bactérias para todos? Espalham os famigerados germes desde sua saída de casa até o retorno. Ninguém lhes escapa no elevador. Todos trancam a respiração, ao ouvir aquele característico ronco de porco, menos o próprio. Não consegui ficar quieto:

- Puxa, Zé! Por que diabos você vem trabalhar nesse estado? Para passar a pereba a todos?

- Não, é que hoje é...

Quedou-se quieto, porém o brilho nos seus olhos mudou do brilho-febre para o brilho-pavor. Seus ombros, já caídos até então, desabaram de vez. Tive pela dele, juro. Tentei parecer solidário:

- Ah, a Maria está... incomodada?

- Céus, não! Isso não seria nada, comparado ao dia do... você sabe...

Não consegui disfarçar o meu próprio pavor, ao entender por que o Zé tivera pavor de ficar em casa, convalescendo. Tentei aparentar calma:

- Certo, Zé. Se você precisar de qualquer coisa, por favor, peça. Amigos são para isso.

Tremi descontroladamente ao lembrar da última vez que fiquei doente naquele dia e fiquei em casa. Nunca mais. Posso estar acometido de uma terrível ostrombose retumbástica, mas naquele dia venho trabalhar, nem que venha de UTI móvel.

Carlos, o Estagiário, na sua infantil inexperiência perguntou:

- Que dia é esse que apavora tanto vocês?

Coitado, ele não conhecia aquela besta formidável que nos perseguia implacavelmente naquele dia, uivando pavorosamente e não deixando nada escapar, sugando a vida de qualquer coisa que ficasse no seu caminho, mesmo a de quem tentasse se esconder. Olhamos para ele, com olhares brilhantes de pavor e pensamos, em uníssono, mudos pelo pavor:

- É o Dia da Faxina! Ele não conhece o Inominável (O Aspirador de Pó)!
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28.8.07

Da série Meus Micos - O porta-malas


Cave em Reims. Foto: Paulo Heuser

Da série Meus Micos – O porta-malas

Por Paulo Heuser


Eu já ouvira diversos relatos de experiências passadas pelos viajantes que locaram carros cujos porta-malas não abriam, por desconhecerem algum comando secreto. Constatavam a anomalia no estacionamento dos aeroportos, longe de qualquer pessoa que pudesse auxiliá-los. Eu nunca ouvira falar de viajantes que não conseguiam fechar o porta-malas. Era preciso que alguém inovasse!

Arrendei um carro francês, em Paris. A primeira experiência interessante foi localizar o balcão de atendimento da montadora, no aeroporto Charles de Gaulle. Após um passeio de trem, longas caminhadas, muita conversa, um passeio de van e algum alpinismo, conseguimos. Lá, num estacionamento a 10 minutos do aeroporto, estava aquela maravilhosa máquina preta. Zero quilômetro, tudo cheirando a novo. Um francês com cara de Asterix tentava me explicar, em franglês – mistura de inglês com um carregado sotaque francês – o funcionamento do bólido. O estranho sotaque dele me ajudou a entender por que os povos ainda jogam bombas uns nos outros. É pela impossibilidade de comunicação. O homem zumbia qualquer coisa que eu não entendia, como bzziuí zzztrí uí azzzuí bzzzô. Eu acenava afirmativamente, enquanto fingia compreender, nada compreendendo.

- Carros são carros – pensei eu. Aquela coisa tinha três pedais, volante e câmbio, de seis marchas, mas ainda um câmbio. Não havia freio de mão, mas e daí? Havia uma geladeira no lugar dele. Tudo bem, quem tem uma geladeira não precisa de freio de mão.

- Putzz thiz cardz inz thiz holez andz prezz ztártz. – era a explicação que me faltava!

Veja só, eu já compreendia franglês, fluentemente. Dispensei o treinador e assumi o comando da máquina que começou a falar e exibir coisas em francês, no painel. Parecia simples, bastava inserir o cartão no sulco do painel, pressionar o pedal da embreagem, apertar o botão start (em inglês, em franglês é ztártz) e pronto, o motor estava funcionando. Malas a bordo, GPS programado para Reims, em Champagne-Ardene, e lá fomos nós, estrada afora, felizes a cantar. Ótimo carro, ótima estrada e manhã ensolarada sobre os campos verdes. Tudo perfeito.

Ao chegar na linda Reims, estacionamos no centro para procurar um hotel. Aí o brazuca aqui fez o que faria com qualquer carro estranho. Verificou se o porta-malas estava fechado. Necas, abriu. Pressionei o botão que mostrava o símbolo de fechar porta-malas, ouvi o clique da tranca e... nada. Abriu-se novamente, quando pressionei a lingüeta na tampa. Então, constatei horrorizado que as portas também se abriam, apesar de tê-las trancado. A discussão em torno do carro chamou a atenção de um casal de franceses que, curiosamente – devido à fama deles –, prontificou-se a nos auxiliar. Como tripulavam um carro aparentemente igual, aceitamos imediatamente. O homem tentou de tudo, inutilmente. A mulher dele ligou para o zero oitocentos da montadora e insistia que deveriam ajudar os étrangère. A muito custo consegui explicar-lhe, no recém dominado franglês, que eu recebera um número telefônico para socorro mecânico.

Fui atendido por uma operadora que me deu várias opções de línguas, para o atendimento. Optei pelo português, e logo fui atendido por uma portuguesa muito simpática que prontamente descobriu a origem do problema. Aquela maravilha mecânica detectava, através de rádio, a presença do motorista, por este estar de posse da chave, permitindo a abertura de todas as portas. Coisa inteligente, não? Fiz o teste que ela recomendou. Afastei-me uns 20 metros do carro enquanto minha mulher tentou abrir o porta-malas. Pois ela conseguiu. Havia algum defeito - concluiu a atendente da montadora. Lá fomos nós até a concessionária da marca. Mais franglês. Mandei o meu melhor – je ne ferme pa le coffre, tomando o cuidado de parecer engasgado, enquanto pronunciava coffre. Passei novamente pelo ritual do teste de afastamento. O mecânico francês constatou que havia um defeito, já que a coisa insistia em abrir, apesar do afastamento a chave. Até que um sujeito, que a tudo assistia com ar de divertimento, falou algo ao mecânico. Este me perguntou sobre a localização da outra chave, já que haviam me entregue duas. Ora, estava na bolsa da minha mulher, ao lado do carro. A maravilha detectava a presença da chave que estava na bolsa! Constrangimento e risadas em franglês à parte, seguimos aliviados. Depois, descobri também que não era necessário colocar a chave no painel, para fazer o motor funcionar. Bastava estar com ela no bolso e apertar no ztártz. E que o freio de mão existia, acionado automaticamente ao desligar-se o motor.

Aquela experiência me ensinou três lições. Carros são carros, mas não são iguais. Constatei também que os franceses podem ser muito gentis com os estrangeiros, apesar da fama deles. E que os manuais são úteis, mesmo em francês. Há figuras que mostram como fermer le coffre – fechar o porta-malas. Ensinam-lhe também por que às vezes sua carteira sai gelada daquele estranho console, outras vezes, não.
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24.8.07

Transparência insidiosa


Foto: Wikimedia
Transparência insidiosa

Por Paulo Heuser


Há algum ditado inventado por alguém, que diz algo sobre aliar-se ao inimigo, quando não se consegue derrotá-lo. O esforço despendido no combate supera o benefício esperado. Esse princípio é muito usado na política. A Holanda inovou no campo das drogas, descriminando o uso da maconha, vendida em 800 bares espalhados pelo país, com a bênção da coroa. Lá, há até cardápios, indicando a quantidade do princípio ativo da droga. Uma conseqüência direta da descriminação das drogas leves na Holanda foi o aumento do turismo, protagonizado pelos turistas que ninguém mais quer, os viciados em drogas. Aviões e ônibus despejam milhares de turistas temáticos que ajudaram a Holanda a superar todos os índices de assassinatos por mil habitantes, na Europa. Conseguiram até superar a terra de Bush, John Wayne e Sylvester Stallone, com folgados 50 por cento de vantagem. A idéia era terminar com os traficantes. Eles apenas mudaram o foco no produto. Agora vendem apenas as drogas pesadas, pois é difícil competir com o estado.

Teozinho estava em férias na Holanda, participando de um grupo de turístico temático, quando teve uma idéia flamejante e fumarenta, talvez decorrente do estado mental em que se encontrava, durante um curso de degustação de ervas, digamos assim. A idéia veio do nada, enquanto provava do sétimo item do cardápio, chamado Natureza Insolitamente Alternativa. Coisa potente. Teozinho perguntou-se sobre a pior droga da sua terra natal. Maconha, haxixe, cocaína, salgadinhos de bacon? Não, ele viu a palavra PROPINA, maiúscula assim, em um letreiro de neon imaginário. Um neon amarelo, oscilando sobre o fundo preto do cardápio. Coisa potente mesmo. Teozinho percebeu que o problema, tanto com a droga, como com a propina, era a informalidade. A propina estava na economia invisível. Só ganhava quem a recebia.

De volta, Teozinho expôs sua idéia no diretório da faculdade. Escorreram lágrimas na face do mais veterano de todos os veteranos do diretório. Franklin estava ali há 32 anos. Nem aluno era, por sinal, e não havia notícia sobre se havia sido, algum dia. Porém, portava-se e vestia-se como um autêntico membro do diretório. Era o presidente de honra, já que a reitoria insistia em não reconhecer a legitimidade da sua militância. Tentara audiência com seis reitores, sem sucesso. Ele exclamou:

- Gênio! Gênio puro! Descriminar a propina, que idéia!

A idéia do Teozinho era relativamente simples, na essência. A propina desapareceria do código penal e figuraria no código tributário. Isso sim que seria reforma fiscal. Passariam a tributar a propina, como uma nova espécie de CPMF. Pagar-se-ia pelo que já se pagava, agora institucionalmente. A propina perderia o manto da clandestinidade e passaria a compor uma das rubricas da área de serviços, visto que aquele que cobra propina presta algum serviço, nem que seja o da inação. Franklin propôs a criação de alíquotas progressivas, conforme o tipo de propina. Haveria a propina bronze, com alíquota de 10 por cento, como a gorjeta cobrada pelos restaurantes. A propina prata, paga para desentravar esquemas mais complexos, receberia alíquota de 15 por cento, e assim por diante, até a propina platina, com alíquota de 30 por cento. O imposto sobre as propinas obedeceria às alíquotas do imposto de renda. Portanto, seria necessário acrescentar rubricas novas aos formulários, como “Rendimento de propina recebido de pessoa física/jurídica”. Outra medida importante seria a tipificação dos serviços e agentes da propina, para evitar a sonegação através de declaração das propinas a valores menores.

A reunião estendeu-se além das 22 horas, o que determinou a transferência para o bar do Bicho Grilo. Em meio à fumaça, durante a madrugada, Teozinho estacou, subitamente. Havia terror estampado nos seus olhos esbugalhados. Soltou a fumaça, de pronto, enquanto exclamava:

- E se..., e se..., inventarem a propina sobre o pagamento de propinas?

Franklin rasgou os planos de criação do PDP – Partido da Descriminação da Propina e mudou de vida. Largou a militância política. Não havia como competir, afinal.
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23.8.07

Das vidraças e dos testículos

Das vidraças e dos testículos

Por Paulo Heuser


Quem anda pelas nossas cidades lembra-se cada vez mais da “teoria das vidraças quebradas”, dos cientistas políticos norte-americanos James Q. Wilson e George L. Kelling, que apregoam a intolerância com os pequenos desvios de conduta. Não chega a ser uma teoria, de fato, pois carece de embasamento experimental. Ficamos com uma hipótese, portanto. Contudo, é uma hipótese que dá o que pensar, pois encontra abrigo na lógica.

Segundo essa hipótese, quando alguém quebra um vidro de uma janela, e aquele não é imediatamente substituído, logo outros serão quebrados. Ou seja, quando toleramos pequenos delitos, ou desvios de conduta, logo se seguirão outros maiores. A tolerância implicaria abandono dos costumes, da ética e da norma legal. O mesmo valeria para a comunidade. Filhos abandonados, ou sem fiscalização dos pais, tenderiam à delinqüência. A “teoria” tem defensores e inimigos ferrenhos. Os defensores citam o exemplo do estado norte-americano de New Jersey, nos EUA, onde ela foi aplicada de uma forma um pouco distinta daquela que foi difundida como “tolerância zero”. Esta defende prisão para qualquer delito ou desvio de conduta, por menor que seja. Algo como prenda agora e pergunte depois. Em Newark, New Jersey, na década de 70, o policiamento passou a ser feito a pé, designados os mesmos policiais para os mesmos bairros. Os policiais passaram a conhecer a população, e vice-versa. O conhecimento mútuo permitiu que os policiais classificassem quem estava na rua. Havia os locais e os estranhos. Entre os locais, a população residente no bairro, os policiais identificaram os “normais”, pessoas aderentes à norma e aos costumes aceitáveis, e os “diferentes”, os alcoólatras, viciados, mendigos e os transgressores da lei. Os outros, os não residentes, ou passantes, eram os “estranhos”, sobre os quais nada se sabia. Essa classificação empírica permitiu que os policiais passassem a voltar sua atenção para onde ela deveria estar focada: naqueles dos quais nada se sabia e naqueles dos quais já se sabia da possibilidade de delinqüirem.

Curiosamente, a criminalidade não diminuiu, estatisticamente, não pelo menos nos crimes clássicos, como assassinatos e roubos. No entanto, por alguma razão buscada até hoje, a população sentiu-se mais segura, segundo as estatísticas. Alguns defendem a hipótese de que a população “normal” deixou de ser importunada pelos residentes “diferentes”, já que a polícia passou a combater o achaque por parte dos mendigos, traficantes e agentes de outros desvios menores. A população teria passado a denunciar os delitos, confiante com a presença policial. Apesar da manutenção dos índices de criminalidade, sentiam-se mais seguros. Sob essa ótica, faz sentido.

Em Nova Iorque, o prefeito Rudolph Giuliani (1944-) implantou em 1994 a “tolerância zero”, a fim de retirar o controle dos traficantes de drogas sobre as ruas. A estatística dos crimes caiu significativamente em Nova Iorque. Os inimigos da “tolerância zero” alegam que a queda se deveu mais a outros fatores, como a queda do consumo de crack, já antes desse período. Segundo os maiores opositores, como Löic Wacquant, sociólogo da Universidade da Califórnia (UCLA), autor do livro As prisões da miséria (Les prisons de la misère), a “tolerância zero” seria apenas mais uma forma de oprimir os pobres e as minorias raciais, pois não levaria em conta os fatores socioeconômicos, nos desvios da conduta social aceita. Segundo Wacquant, a “teoria das vidraças quebradas” seria tão somente uma evolução da antiga “teoria dos testículos despedaçados”, que afirma que quando a polícia persegue insistentemente o pequeno criminoso, este vai delinqüir em outro lugar. Seria também uma forma de discriminação racial, pois perseguiriam principalmente os jovens pertencentes às minorias étnicas.

Essas hipóteses tratam primariamente do combate aos crimes maiores a partir da erradicação dos menores, nos EUA. Aqui, olhando ao redor, podemos concluir que se despedaçássemos (figuradamente, é claro) alguns imensos testículos, haveria dinheiro de sobra para substituir as vidraças quebradas.
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20.8.07

Amnésia e repetição

Foto: Paulo Heuser
Amnésia e repetição

Por Paulo Heuser


Quem atende ao público nos restaurantes precisa contar, ou com um bloco de notas, ou com uma memória prodigiosa, para anotar os múltiplos pedidos. Lembro-me de um garçom de um restaurante que servia à la carte, que, independentemente do pedido, trazia sempre o prato do dia. De nada adiantava olhar o menu. Enquanto houvesse, ele trazia o prato do dia. Para esse garçom, bastava memorizar os pedidos de bebidas, pois a comida ele já sabia, prato do dia.

Na antiga sede de um clube, havia um maitre que não só memorizava os pedidos, como também quem havia pedido o quê. Mesmo numa mesa com 20 pessoas, o homem lembrava cada pedido, e orientava os garçons na hora de colocar os talheres de frutos do mar e servir. Os clientes divertiam-se, esperando que ele errasse, algum dia. Contudo, ele sempre acertou. Alguns tentavam fingir que haviam pedido outra coisa. Ele sempre tinha certeza absoluta do que haviam pedido.

Em um velho restaurante chinês, a conta era entregue compulsoriamente, junto com a comida. Sobremesa, só se fosse pedida junto com os demais pratos. Senão, era tarde demais. Em outro, recém-inaugurado, não falavam português, apenas chinês. Os pedidos eram feitos através de números anotados ao lado do nome dos pratos. Era particularmente interessante observar o proprietário tentando dizer “três tipos fritos”. Essa idéia dos pratos numerados depois foi copiada por uma grande empresa estrangeira de lanches rápidos.

Garçons com problemas de fala são raros, mas há. Recordo-me de um fanho que gritava ordens incompreensíveis para dentro da cozinha. E o pessoal lá de dentro gritava: - É prá já, chefe! Não sei se fingiam entendê-lo, mas a coisa funcionava.

Há também os garçons que sofrem de problemas de memória. Esquecem sistematicamente o que lhes foi pedido. Esquecem-se também de que o suflê de mandioca brava está em falta, desde antes da inauguração do restaurante, em 1961. Mas, estranhamente, ainda aceitam pedidos onde ele está incluído. O patrão esqueceu-se de retirá-lo do cardápio, que ainda traz os preços em cruzeiros novos e oferece um vinho tinto suave da Antunes (também em falta).

Outro dia participei de uma festa onde havia um garçom que se virava ao avesso, para atender os convidados. O que lhe faltava de cabelos, sobrava-lhe em disposição. Andava com desenvoltura por entre as mesas. Mal entrava na copa, já retornava, com a bandeja cheia. A principio pensei que o homem sofria de algum distúrbio de memória de curto prazo. Ele passou pela mesa e solicitou o pedido. Retornou trinta e três segundos depois. Sem o pedido. Retornou para solicitar novamente o pedido, como se nunca estivera ali. Foi-se novamente em direção à copa, voltando em menos de um minuto, desta vez trazendo o pedido. Ele retornou novamente, decorridos mais 47 segundos, trazendo outra vez o pedido. Antes dois pedidos atendidos do que nenhum - pensei lá com os meus botões. E então constatei o que me deixou perplexo: haviam clonado o garçom. Dois deles andavam pelo salão, idênticos. Copiaram até a calva. Há determinadas profissões em que os gêmeos idênticos chamam mais a atenção.
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Um páreo diferente


Um páreo diferente

Por Paulo Heuser

As corridas de automóveis continuam atraindo um público fiel. Milhares acorrem aos autódromos aos, onde muitos acampam, para saciar parte da fome pela velocidade. Alguns procuram saciar o resto nas ruas e estradas, após a corrida. Aí começa a parte chata das competições. Nos esportes, essa imitação é saudável, pois muitas crianças procuram o futebol, o vôlei e outras modalidades, atraídos pela cobertura dada aos maiores eventos. Mesmo que a febre passe, alguns continuam.

O automobilismo fora dos autódromos só pode gerara besteiras. Os pilotos que competem nas pistas arriscam apenas a sua vida e as dos que com eles competem, no melhor estilo quem sai na chuva é para se molhar. Apesar da lembrança de alguns eventos que provocaram morte ou ferimentos na platéia, as corridas de carros têm se apresentado como eventos seguros, pelo menos para quem às assiste. Nas estradas não há o mesmo aparato de segurança para proteger a vida dos que nada têm a ver com aquilo, dos atos daqueles que iniciam uma corrida para o além, a bordo dos seus veículos. Movidos pela emoção provocada pelas imagens e sons, alguns transformam carros populares em autênticas máquinas de competição, tentando voltar para casa na metade do tempo em que vieram. Não que o hábito necessariamente faça o monge, mas há um estereotipo do louco por corridas que corre na rua: veste um boné com algum logotipo relacionado ao automobilismo. Tome-se um gajo sugestionável, vestindo bermudas, camiseta e sandálias. Até aí temos apenas um sujeito curtindo a paz do domingo. Adicione-se um boné com logotipo de alguma marca de carros esportivos. Pronto, então teremos um potencial piloto de rua. Quando colocamos o sujeito no autódromo, agregamos mais potencial, faltando apenas a cerveja, o catalisador. Então, a combinação do sujeito impressionável, com boné e a cerveja, tornam-no um ás das pistas virtuais.

Quando o ás virtual embarca no seu carro popular, os mil centímetros cúbicos da cilindrada se transformam, também virtualmente, em vários milhares de cm3. As motos de 125 cm3 viram Hayabusas GSX 1300 R. E lá se vão aqueles ases estrada afora. Viajar em dia de corridas exige atenção redobrada dos motoristas que compõem apenas a platéia das corridas de saída de autódromo. Falar apenas de carros populares é uma discriminação inoportuna. Há também os ases virtuais que pilotam veículos bem maiores, como as grandes camionetes. Porém hoje, na estrada, por alguma razão qualquer, presenciei apenas a afoiteza daqueles.

Não é só nas estradas que os ases virtuais mostram seus dotes automobilísticos. Também promovem competições nas ruas das cidades próximas ao autódromo. Hoje assisti, involuntariamente, a dois rachas de rua. O primeiro envolveu ases virtuais pilotando motos de pequena cilindrada. Tele-entregas do além. O segundo foi o mais curioso, para não dizer inusitado. Um racha que iniciou no semáforo. Do lado esquerdo, um motociclista que pilotava uma moto de grandes dimensões. Não vi se usava boné sob o capacete. Do lado direito, um ás de boné que tripulava uma perua Opala. Enquanto o semáforo estava no vermelho, os dois aceleravam seus veículos, encarando-se desafiadoramente. Aberto o sinal, a dupla arrancou ruidosamente, subindo a rua, lado a lado. A perua conferiu alto grau de ineditismo à competição, pois sobre a pintura de cor escura havia um grafismo que lembrava aquele dos carros fúnebres. Alguém já foi ao enterro do coveiro?


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17.8.07

O chá da irmã do Zé


O chá da irmã do Zé

Por Paulo Heuser


A irmã do Zé é o tipo de pessoa que passa despercebida. Não é alta, nem baixa. Não é gorda, nem magra. Chamá-la de feia seria exagero, de linda, também. Ela é medianamente média, eqüidistante dos extremos de qualquer adjetivo físico. Quando caminha, ninguém percebe, pois não rebola e não usa saltos barulhentos. Usa o cabelo preso atrás, de forma prática e nada chamativa. Maquiagem, só para disfarçar algo que possa chamar a atenção. Veste-se de cinza ou marrom. Ou seja, ela é comum, extremamente e monotonamente comum.

Quem conhece a irmã do Zé há mais tempo, sabe que, por dentro, é outra pessoa. Ao seu modo, conquista a simpatia de todos, com o decorrer do tempo. Contudo, ela sofre com a transparência de sua presença em ambientes estranhos e no trabalho. Quando chega à festa, ninguém nota, nem o porteiro que confere os convites. É a última a ser atendida nas lojas. Nunca foi a escolhida para os times de hóquei no barro e newcomb. Jogava muito bem, mas ninguém notava. Jogava bem sem ser espalhafatosa. Jogava xadrez, em silêncio, sem gritar a cada jogada nem ameaçar fisicamente os adversários. Passou despercebida, também no xadrez. Perdeu a vaga na equipe para aquela morena que gritava “hãããããã...”, a cada jogada, enquanto chutava as canelas dos adversários, por baixo da mesa.

A depressão acabou tomando conta da coitada. A gota d’água foi um assalto no restaurante onde ela almoçava. Os ladrões limparam todo mundo. Levaram até o celular de cartão do cozinheiro. Após deixarem todo mundo pelado, trancaram-nos nos toaletes. Menos a irmã do Zé. Deixaram de notá-la. Voltou para casa sozinha, vestida, com suas coisas, porém chorava as lágrimas do esquecimento. Se nem os ladrões a notaram, que homem a notaria? No trabalho, as coisas iam de mal a pior. Ninguém lhe dava a mínima, nas reuniões. Pedia a palavra, através de gestos, mas nunca foi atendida. Entrava como saía, quieta e despercebida.

O Zé bem que tentou mudar o modo de vestir e de ser da irmã. Comiserado, pois assistia ao sofrimento dela, porém sabedor de que ela não mudaria o jeito de ser, Zé lhe recomendou uma terapia alternativa. Não acreditava no método, mas poderia fazer com que a irmã percebesse que o problema residia nela mesmo. Sua mesmice e a falta de autopromoção causavam seu esquecimento. Uma amiga segredou ao Zé, que conhecia uma terapeuta fito-hidráulica, que curava qualquer coisa não-diagnosticável, utilizando chás como medicamentos.

A irmã do Zé teve de chamar a secretária da terapeuta duas vezes. Já lera todas as revistas de consultório, enquanto sete pacientes passaram à sua frente. A secretária desculpou-se, não a havia notado. Seguiram-se oito sessões de RIFH – Reposição de Imagem Fito-Hidráulica. Já a partir da segunda, a irmã do Zé notou que algo mudara. Passou a procurar o tolete com mais freqüência. Contudo, ninguém notava quando abandonava as reuniões para ir lá. Tentou outra abordagem, beber o chá durante as reuniões. Nada, ninguém notou. Quando tudo parecia perenemente esquecido, ela colocou um saco de chá na boca, deixando a cordinha e a etiqueta para fora. Não sabe por que fez, apenas fez. Quando deu por si, doze rostos olhavam para ela. Pode ouvir alguém perguntando ao colega: - Nossa, quem é essa aí?

Desde então, a irmã do Zé é outra mulher. Chega vistosa, em roupas coloridas esvoaçantes, chamando a atenção sobre si. Na rua, viram-se para olhá-la. Nas reuniões, basta um olhar, para que lhe dêem a palavra. Houve quem acreditasse se tratar de uma nova funcionária, ou alguém mandada pela matriz. Ela já não coloca mais o saquinho de chá na boca. Deixa apenas a cordinha e a etiqueta, penduradas para fora. O chá ficava muito forte.

A irmã do Zé sabe que tudo muda, tudo evolui, inclusive o marketing pessoal. Já pensa em trocar as etiquetas vermelhas pelas verdes. Uma cordinha amarela, quem sabe? Ela também sabe que o chá deixará de fazer efeito, qualquer dia. Está fazendo testes com uma nova tática. Colocará pastilhas de sonrisal sob a língua e beberá fanta uva, enquanto fala.
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16.8.07

Nova odisséia


Busto de Homero, autor desconhecido. Fonte Wikimedia.
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Nova odisséia

Por Paulo Heuser


Esses dias de verão, em meio à nova glaciação, me levaram a fazer algo que não fazia há tempo. Fui para casa a pé. Percorri os sete quilômetros em 1h20, intervalo que pareceu de 20 anos, tempo necessário para que Ulisses retornasse aos braços da fiel Penélope, no seu reino de Ítaca, ilha jônica, na Odisséia de Homero. Comecei a entendê-lo. Distância geodésica nada significa, quando há obstáculos pelo caminho.

O início da jornada foi fácil. Andei a passos largos, em meio ao pessoal que saía de bancos, financeiras, bolsas de (des)valores e assemelhados. Happy hour aqui é conseguir fugir do Centro antes do pôr-do-sol. À noite, faz-se extensa releitura dos hábitos e práticas sociais. Os camelôs de bugigangas dão lugar aos camelôs de outras coisas, do prazer pago ao aspirado. Passando pelo fumado, é claro. Os vendedores de cigarros falsos cedem posto aos vendedores dos autênticos cigarros artesanais, montados pelo próprio consumidor. Coisa verde-amarela. Enquanto os restaurantes e mosquinhas do entorno do Mercado fecham suas portas, surge a fumaça cheirosa dos churrasquinhos de gato. Há de se ter prática para atravessar esse novo mundo. As sombras escondem surpresas.

Em apenas 100 metros, após o Mercado, podem-se fazer coisas que exigiriam muito tempo e deslocamento, em outros locais e horários. Há qualquer mercadoria ou serviço à venda. Em meio ao caos de quinquilharias e roupas, fui abordado por um homem imenso, que solicitava ajuda para comprar um remédio. Parecia doente mesmo. Aliás, parecia-se com Polifemo, o pavoroso ciclope que azucrinou Ulisses na Sicília. Ulisses o derrotou após lhe dar um porre de vinho e furar-lhe o único olho. Pois esse Polifemo moderno tinha dois olhos, aparentemente defeituosos, incapazes de manter o foco em alguma coisa. Livrei-me dele com facilidade. Pelo estado geral dele, Ulisses já havia lhe dado muito vinho, ou equivalente. Nem precisei me amarrar à barriga de um carneiro para fugir.

Não escreverei 12 mil versos hexâmetros em 24 cantos, mas aquele número é boa estimativa do número de pares de tênis espalhados pela rua, após o shopping informal a céu aberto. Superado esse obstáculo, atravessei o mar revolto entre Caribdes e o rochedo de Cila, tentando escapar do cântico dos modernos sereios que lançavam aos quatro ventos os medonhos cânticos da dupla sertaneja Xenônio e Xarope. Logo cheguei à praça seguinte, onde a bruxa Circe já havia transformado homens em animais, pois muitos chafurdavam em meio aos sacos de lixo. Ao lado, o Vale dos Controles Remotos. Dezenas de estranhos gregos seguravam idênticos tabuleiros com centenas de controles remotos para qualquer tipo de aparelho, até para aqueles que não os suportam.

Maior perigo me esperava adiante. Uma reencarnação da deusa Calypso, que se declarava perdidamente apaixonada por mim, não me deixou seguir. A muito custo, consegui me desvencilhar dela, e continuei em frente. Até que um sujeito barrou meu caminho, girou o braço, em amplo movimento circular, terminando com o dedo apontando para o meu rosto e gritando:

- Eu sou da Divinéia!

Essa ilha não consta no mapa do Mar Jônico. Resumi minhas possibilidades de ação em cinco alternativas:

a) Morrer de medo e sair correndo;
b) Perguntar-lhe educadamente: o que é Divinéia?;
c) Gritar de volta, mais alto e mais forte, após girar o braço em sentido contrário: syggnomi! Den katalabaino! – Perdão! Não compreendo! (em Grego);
d) Morrer de rir;
e) Aparentar indiferença blasé de balconista de joalheria fina e ignorá-lo, seguindo em frente.

Optei pela última. Funcionou, na terceira vez. Uma hora e vinte depois da partida do Centro, cheguei em Íta... casa. Quando cheguei, a fiel Penélope não estava mais me esperando. Foi sozinha, ao supermercado.
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Araponga


Araponga

Por Paulo Heuser


A ascensorista capta partes das conversas de outrem, dificilmente uma inteira, do prólogo ao epílogo. Habitua-se a assistir pedaços de filmes. Agora percebo que os motoristas passam por situações semelhantes, nos semáforos de trânsito. Paramos, e nos permitimos pequenos intervalos de observação do que acontece ao redor. Alguém vem pedir esmola, crianças giram calotas, um pedestre hesita antes de iniciar a travessia da faixa, chega o assaltante, o motorista do ônibus faz sinal de luz, reclamando da demora do assalto e, finalmente, o araponga fotografa.

Talvez eu devesse escrever “a araponga”, já que a palavra designa uma ave. Mas, aquele não era ave, era humano, do sexo masculino. O termo passou a designá-los, graças à novela escrita por Dias Gomes et alii em 1990, na qual associou o nome da ave a um espião.

Pois ali, na esquina em frente à Estação Rodoviária, estava aquele sujeito, parado próximo à entrada do metrô. Chamava a atenção, pois apenas os loucos e os incautos atravessam a avenida por ali. Os bêbados não são tão afoitos. Porém, ele não tentava atravessar. Andava nervosamente, de um lado para o outro. Vestia longa capa de gabardine, com a lapela levantada na parte de trás. O guarda-chuva preto pendia ao lado do corpo, pendurado no cotovelo esquerdo. Da orelha esquerda pendia o fio do fone de ouvido que desaparecia roupa adentro. Ele proferia frases curtas, enquanto olhava furtivamente para os lados. Aflito, consultou o relógio.

O que estaria fazendo aquele sujeito ali? Ele não pertencia àquela paisagem, com certeza. O que estaria arapongando? Não havia nada de interessante à vista. A paisagem defronte dele se resumia a um viaduto, um caótico cruzamento de trânsito, sem mendigos – eles não se arriscam ali -, concreto e asfalto. Estaria esperando a passagem de alguém importante, alvo de uma investigação? Ou, talvez, poderia estar a serviço de uma das inúmeras CPIs em andamento. Eu já antevia as manchetes dos jornais do dia seguinte: - “Escândalo do Viaduto! – descobriram que os pichadores utilizaram tinta desviada da merenda escolar da escola de artes marciais mantida pela empresa do terceiro setor que recebe verbas parlamentares oriundas de um fundo internacional de financiamento habitacional da classe média norte-americana que só come perus orgânicos e importa boxeadores cubanos”. Faria parte da fábrica de novos escândalos para diminuir velhos escândalos.

Então ocorreram os dois eventos que fariam com que minha vida não fosse mais a mesma. O primeiro foi a foto. O araponga sacou a câmera e me fotografou. Não uma foto comum, de gente apagando velas de bolo. Uma foto da única coisa interessante que havia por ali: eu. O segundo evento foi a virada do semáforo. Ficou verde.

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14.8.07

O Indeciso

Este texto nada tem a ver com a obra acima.

O Indeciso

Por Paulo Heuser


Claudir era um sujeito estranho. Simpático, porém estranho. Não há quem guarde lembranças ruins dele. Ruins não, talvez peculiares, defensivas. É difícil descrevê-lo. Fisicamente, é fácil. Contudo, Claudir tinha uma personalidade titubeante. Por isso é tão difícil descrevê-lo, ficamos indecisos quanto à escolha das palavras. Na última vez que o vi, em vida, troquei algumas palavras com ele:

- E aí, Claudir, tudo bem?

- É... – soando como éééé...

- Por que, há algo errado?

- Bem, não...

- Você não me parece muito confiante!

- Não..., sim...

- O que há de novo?

- É, bem... sabe como é, né?

- Não, do que você está falando?

- Daquilo, você sabe, lá do... daquilo...

- E a família, como vai?

- Hum... é... vai...

Claudir enlouqueceu o arquiteto da construtora que projetou seu apartamento. Após uma hora e meia de dúvidas e explicações sobre vantagens e desvantagens do uso de mármore branco ou granito preto, Claudir continuava indeciso quanto ao material que seria utilizado numa bancada de pia. Desesperado, o arquiteto sugeriu que ele perguntasse à mulher. Funcionou, em parte, pois ela foi direta, rápida e rasteira:

- Ora, escolha você, Claudir, marido serve para isso!

Isso ocorreu em 1987. Até o passamento do Claudir, em 2007, a pia ainda não havia sido utilizada, por falta da bancada. Mas, Claudir estava pensando nisso, quando morreu. Coitado, não conseguia mais ler nem assistir à TV. Jogos de futebol, só acompanhava pelo rádio. Pudera, não enxergava mais. Tentou inutilmente escolher uma armação para os óculos, durante os últimos 12 anos da sua vida entre nós. Os técnicos das ópticas fechavam as lojas, quando percebiam sua aproximação. Uma loja de shopping fechou as portas durante dois dias, tempo necessário para recolocarem todas as armações nos mostruários e refazerem o sistema nervoso dos técnicos. Claudir havia provado todas armações, ao longo de 12 horas. Aquele dia ficou conhecido como a Maratona Claudir. Doze horas seguidas de põe armação no nariz, olha no espelho e fica indeciso:

- E esta? Ficou-lhe muito bem, se me permite o palpite!

- Ah, esta ficou melhor. Seria quase a que desejo, se não fosse tão, como direi, assim... você sabe... Há outras, menos... você sabe?

Quando Claudir morreu, houve uma certa dificuldade para decidirem se ele seria enterrado ou cremado. A viúva sacudia a cabeça e repetia:

- Que falta faz o Claudir, na hora de decidir!
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12.8.07

Buracos, buracos?

Foto: Paulo Heuser


Buracos, buracos?

Por Paulo Heuser


Domingo lindo, de céu azul, temperatura amena, tudo conspirando a favor de uma caminhada, no fim da manhã. Ótimo dia para quem teve um pai a lembrar e uma prole a homenageá-lo. Enquanto alguns já lotam as filas dos bufês, caminho em direção ao parque.

Este dia, apesar de ser um evento comercial, leva as famílias à reunião. Menos aqueles dois, sentados na pequena praça triangular, na confluência das quatro grandes avenidas. Estão lá, sentados em meio às tralhas e aos trapos. Sei que é dia de festa, mas é impossível não vê-los. Têm idade para serem avós, ou, pelo menos, a aparentam. Novamente dirão que tenho fixação por mendigos. Tenho, confesso. Não tanto por eles, mas sim pela tolerância social que lhes demonstramos. Tenho ciência de que o problema não é meu, é nosso, de todos nós. Portanto, não é de ninguém. Nossa coletividade vai até o ponto que cruza nossa individualidade. Aí, o problema passa a ser deles. Há gente que é paga para tratar desse assunto.

Aqueles dois são pontos fora da curva estatística da normalidade. E somente toleramos os pontos que superam a média. Dos que estão abaixo, queremos distância. Alguém assim não terá pais nem filhos. Eles têm a si mesmos, não mais do que isso. Um cão, talvez. Tiveram pais, ou filhos?

Câmera à mão, resisto à tentação de lhes pedir que me deixem clicá-los. Noutro dia, talvez. Não hoje. Hoje, seria muito egoísmo. Usaria as fotos para um hobby. Qual será o deles? Fariam perfeitos personagens de fotos em preto e branco. Não representam, vivem a miséria. Já desci a escadaria onde jazem um sapato velho e uma capa de violão, fim de uma festa de rua interrompida sabe lá pelo quê. Passo pelos meninos, vestindo as cores do time, que insistem em tentar apedrejar a senhora que sai da missa. Falta-lhes força. As pedras não atravessam a rua. Sigo mais tranqüilo. A irmã deles, empurrando um carrinho de catador de papéis, lhes dá uma reprimenda. Apesar das cores das camisas, a cena não tem cor. Avanço rumo às cores do parque. Ali poderia clicar dezenas de cenas coloridas de pais e filhos em alegres brincadeiras que continuarão ao longo do dia.

Volto pela avenida em obras, cheia de buracos. Um pai pergunta ao filho, na casa dos cinco ou seis anos: - Filho, vamos olhar o buraco? É isso! Aqueles dois sentados na praça são buracos. Buracos na nossa organização social.

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Um novo sistema de cotas

Foto: Paulo Heuser

Um novo sistema de cotas

Por Paulo Heuser


Poucas vezes alguém disse algo que me pareceu tão louvável, nos últimos tempos. O Ministro da Defesa falou das suas dificuldades para sentar-se nas poltronas dos aviões das novas companhias aéreas. Quem mede mais de um metro e noventa, como ele e eu, sabe do drama em que uma viagem aérea pode se tornar. Para nós, não existe medo de voar, medo de Congonhas ou medo de avião pilotado pelo Flight Simulator. Existe o pavor de sentar-se naquelas poltronas. Ficamos com a impressão de que as poltronas da frente são colocados sobre o colo dos passageiros sentados atrás. Como se cada passageiro colocasse uma poltrona sobre o colo do passageiro sentado atrás dele, e sobre ela se sentasse. Ou então, sentimos que fazemos parte da fuselagem, firmemente encaixados nela.

Quem enxerga o espetáculo por cima dos outros, procurava viajar em dias e horários menos freqüentados, na esperança de cruzar as pernas sobre o espaço das poltronas vazias ao lado, tática esta que se mostra inócua nos modernos vôos boiadeiros. Enquanto o caminhão não estiver lotado de gado, a viagem não sai. Depois, recebemos barras de alfafa, uma por cabeça.

Nos áureos tempos em que Cruzeiro do Sul, Varig, Vasp e Transbrasil riscavam os céus mais cor de anil, havia mais espaço entre as poltronas. Hoje leio que perdemos cerca de 10 cm de espaço. Creio que foi mais. Uma viagem a bordo dos velhos e velozes Boeing 727 chegava a ser confortável, mesmo para alguém de dimensões não usuais. Chegávamos ao destino com os meniscos e rótulas intactos.

Os ortopedistas estão catalogando uma nova patologia, relacionada com a já conhecida Síndrome da Classe Econômica. É a Síndrome do Viajante Alto, uma pereba ortopédica. Pensam até em abrir franquias de clínicas traumatológicas da rede TraumaAir, nas áreas dos aeroportos. Ouvi falar também de um projeto que permitiria aos passageiros mais altos voar de pé, como os passageiros de coletivos urbanos. Seriam instalados canos no teto do avião, onde poderíamos nos segurar. Há forte oposição por parte do sindicato dos comissários de bordo. Não querem ficar gritando para que dêem mais um passinho ao fundo, por favor. Encontrariam também dificuldade para distribuir as barras de alfafa. Porém, as novas companhias aéreas devem estar analisando o projeto com outros olhos. Quantos passageiros mais poderiam acomodar nos corredores? Com aqueles corredores compridos, dá para se dar muitos passinhos ao fundo. E as barras de alfafa poderiam passar de mão em mão.

Pois estava eu em meio a um grupo de pessoas que discutiam acaloradamente sobre o sistema de cotas sociais e raciais. Juntei alhos com bugalhos, e percebi que há uma solução não muito traumática, tanto para os altos, como para as companhias aéreas, para a falta de espaço nos aviões. Lancei a idéia de um sistema de cotas para passageiros altos. O IBGE determinaria a distribuição de altura da população e as companhias aéreas deveriam reservar poltronas com mais espaço para um número proporcional de passageiros altos. O critério de seleção não seria subjetivo. Junto ao balcão do check-in seria colocada uma vara a, digamos, 1,80m de altura. Quem batesse com a cabeça nela, de pés descalços, seria brindado com as poltronas com maior espaço. Para quem não quisesse passar pelo mico, poderiam criar uma Carteira de Minoria Vertical Ascendente, atestando a altura.

Meu projeto foi fulminado, de pronto, pelo maior defensor dos sistemas de cotas, com o argumento de que ele não deveria pagar mais pela passagem, em razão de alguém mais alto tirar espaço no avião, implicando aumento das passagens. Raciocínio interessante. Os pobres e altos, como ficarão? Terão benefício, por um lado, ônus, por outro? Poderão criar vôos a quilo e a metro, no sistema pese, meça e pague. Garanto que voltarão a servir lautas refeições a bordo, pois quem vai, volta.
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11.8.07

Ritual e calçados


Foto: Paulo Heuser

Ritual e calçados

Por Paulo Heuser


Sei que vivemos novos tempos, mas algumas coisas parecem estranhas. Faz alguns anos, estive em um batizado celebrado por um padre que calçava tênis de lona, sob a veste ritualística, um vermelho, outro verde. Que ficou estranho, ficou. Os presentes acompanhavam todos os movimentos do padre, na esperança de verem a cor das meias. Ninguém logrou êxito, pois os tênis eram de cano longo. Que cores de meias um padre usaria em conjunto com aqueles calçados coloridos? Uma amarela, outra azul? Até aquele momento eu acreditava que os padres deveriam, ou assumir ares de franciscanos, calçando sandálias simples de couro, ou deveriam calçar discretos sapados pretos com cadarços. Aparentemente, aquele padre não pensava como eu. Haveria alguma mensagem subliminar naquela estranha combinação? Ou ele se esquecera de ligar o despertador, e saíra em louca correria, vestindo os primeiros calçados que encontrou pela frente? De qualquer forma, aquilo funcionou. Nunca me esqueci daquele batizado, celebrado há quase 20 anos. Nem dos tênis do padre.

De uns tempos para cá, venho sendo surpreendido por grupos de jovens, rapazes e moças, vestindo hábitos marrons de monges e usando cortes de cabelo estilo franciscano. O que chama mais a atenção é que alguns estão descalços! Gente, nossas ruas estão cheias de sujeira, propaganda política, cacos de vidro, pregos, bicho-de-pé, caca de cachorro, cavacos de metal e baganas acesas de cigarros. Há de se ter muita fé para andar descalço por aí. Sem falar do frio reinante neste inverno. Os vejo aí pelas sete e pouco da manhã, hora em que o sol ainda não fez efeito. Dói, só de se olhar.

Lembro-me de sujeitos famosos que vestiam trajes formais e não usam meias. Um ex-presidente de um enorme banco paulista andava assim. Não sei se fez moda, mas fez alguns seguidores. O presidente do banco certamente podia comprar muitos sapatos. Os menos afortunados tornavam os fungos mais afortunados, com certeza. Porém, sempre escapavam do mico da meia furada. Cena constrangedora: o sujeito é atropelado e sai de maca, diante das câmeras, ostentando aquele dedão enorme, saindo pelo furo da meia vermelha.

Hoje vi uma mulher trajando vestes ritualísticas de uma religião afro-brasileira. Vestido branco, detalhes em azul, quase tudo parecia combinar, naquela cena. Quase, pois havia algo errado, apesar de não tê-lo identificado imediatamente. O vento ajudou. Levantou um pouco a saia, e permitiu a visão dos tênis com molas e das meias de marca.
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9.8.07

Um dia incomum


Um dia incomum


Por Paulo Heuser



Nigel acordou cedo, cinco horas antes de Paulo, que também acordou cedo, naquele domingo. Como? Ora, Nigel estava em Budapeste, Paulo no Brasil. Havia apenas quatro horas de diferença de fuso? Sim, se lá não houvesse horário de verão. Cristina também acordou cedo. Estava especialmente agitada, naquela manhã de sol de inverno.

Enquanto Nigel afivelava o cinto de segurança, Paulo ligou a TV. Protagonistas de um mesmo evento, separados por cinco horas e 11.115,07 km. Aquele dia seria muito diferente dos outros, para ambos, apesar de não se conhecerem.

As tomadas de tempo se sucederam, ao longo da manhã. Nigel recebeu placas de aviso dos tempos. Paulo cronometrou cada volta. Nigel completou a prova em 1h49m39s3. Paulo afivelou o cinto quando Cristina andava na razão de três minutos por volta. Entraram no box, pela primeira vez, às 11h04. A segunda vez foi às 11h21. Cristina apertou o ritmo, deixando claro que, naquele dia, tudo seria diferente. Talvez o suspense se devesse ao fato de ser o aniversário de Alfred Hitchcock.

Nigel já relaxava, enquanto Paulo entrava naquele clima pré-prova em que os acontecimentos se sucedem sem que se tenha muito controle sobre eles. Cada prova é uma prova, diferente. Experiência não conta muito nesse ramo. Há pouco que possa ser feito ou planejado de antemão. A logística da coisa foi deixada para a equipe. Ela providenciou alojamento, ferramentas, apoio e todas as coisas necessárias para o sucesso. Uma equipe enorme para apoiar os astros do dia. Os que fariam toda a diferença daquele dia em especial. Nigel não se esqueceria mais daquele dia. Na Hungria, empurrado por toda a Itália e pela Inglaterra, obteve seu segundo grande triunfo, naquele ano.

Cristina, no Brasil, também empurrava. Paulo deixou o cronômetro de lado. Não era mais dele a responsabilidade de registrar as voltas. Era da equipe, que crescia a cada instante. Hora de dar apoio, sem atrapalhar. Cada um tem seu lugar e sua função numa equipe. Nigel já tomava banho quando as coisas começaram a tomar um rumo definitivo, a 11.115,07 km a sudoeste de Budapeste. Paulo sentia o que Nigel sentira algumas horas antes, um misto de ansiedade, esperança e de um turbilhão de outras emoções não muito bem identificáveis isoladamente. Cada prova era uma prova, antes e depois. Como explicar a quem delas não participou? Impossível, provavelmente.

Nigel Ernest James Mansell venceu o Grande Prêmio da Hungria de Formula 1, no circuito de Hungaroring, em Budapeste. Era 13 de agosto de 1989, ducentésimo vigésimo quinto dia do calendário Juliano. Paulo teve um Dia dos Pais diferente. Naquele domingo Cristina lhe deu Mariana, às quatro da tarde, hora em que Nigel já deveria estar comemorando em alguma festa, às nove da noite.
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7.8.07

Segunda vida

Foto: Paulo Heuser


Segunda Vida

Por Paulo Heuser


O gato tem sete vidas, nós, apenas uma. Melhor aproveitá-la, portanto. Quem não desejaria ter uma segunda vida? Seria a oportunidade de não pagar mico, como naquela vez em que entalei o dedo no gargalo da garrafa de coca-cola, na casa da menina que ia visitar pela primeira vez. Lembra-se daquela frase dita na hora errada, no lugar errado? Tudo poderia se corrigir, na segunda vida. Aquela pisada desastrada no pé da mãe da menina, no baile de quinze? Coisa de primeira vida.

Alguém criou o jogo Second Life, onde os jogadores simulam uma segunda vida, virtual. Uma vida em 3D – três dimensões (altura, comprimento e largura), para os menos, ou nunca, iniciados, como eu. Os jogadores escolhem um avatar, representação gráfica deles na segunda vida. A segunda vida simula o mundo real, no limite permitido pela virtualidade, ou seja, vale tudo. O caso de Márcio e Claudia é bem ilustrativo.

Márcio é o protótipo do felizardo bem sucedido. Pudera, bem nascido, tanto em berço como em DNA, é o tipo que toda mulher bem ou mal-nascida sonhava. Loiro, de olhos verdes, com 1,87 m de altura, bem-sarado, Márcio, se não bastasse, sempre foi prodígio nos esportes e nos estudos. Antes da formatura, já recebeu convite do cirurgião plástico Pitanga, para atuar como aprendiz de mago do bisturi estético. Em pouco tempo, Márcio se tornou um homem bonito, bem-educado e rico, tudo que já era. Esse excesso de atributos provocou alguns contratempos. Várias candidatas a sogras apaixonaram-se perdidamente pelo candidato a genro. Protagonizou versão anos zero-zero de Mrs. Robinson, filme da década de 70, onde uma sogra safada se apaixona pelo pimpolho que deseja sua filha.

Claudia nasceu com o derrière virado para o satélite natural da Terra. Misto de Sharon Stone e Isabella Rossellini, 25 anos atrás, herdeira de um império de estaleiros, ela se destacava em qualquer coisa, inclusive no xadrez. A moça derrotou o Azul Profundo, computador de muitos milhões de dólares, aplicando-lhe um Pastor, logo de início. O Gambito de Dama passou a se chamar Gambito de Musa, a partir daquele dia. Para não dizer que havia defeitos, a diva se dedicava intensamente ao voluntariado, limpando tatu de órfãos ranhentos, entre uma e outra ida a Cap Ferrat. A estrela de Claudia apresentava magnitude que a faria brilhar em qualquer canto da galáxia. Ofuscava tudo e todos ao redor. Menos Márcio, que brilhava em igual magnitude. Duas supernovas explodindo simultaneamente.

Quis o destino, como sempre acontece, que Claudia e Márcio se encontrassem. É sempre assim. Rico não namora pobre, a não ser nas novelas das seis e das oito. Botaram o olho verde, um no outro, durante a festa beneficente da lagosta. Conversaram, cavalgaram juntos, jogaram gamão, participaram do pôr-do-sol, como personagens principais, caminhando pela paradisíaca praia deserta de Barbuda (a ilha caribenha, não a mulher do circo!). O disco do sol mergulhava no mar, enchendo todo o cenário de tons de fogo vermelho, quando trocaram o primeiro beijo, abraçados apaixonadamente. Isso tudo na segunda vida, é claro. Na primeira, Márcio, o Bola, 1,61 m de altura e 85 kg, técnico em instalações sanitárias cloacais, encontra-se com Claudia, a diabo-em-conserva, como os colegas de repartição a apelidaram, carinhosamente. Chamavam-na também de Rainha Vitória, em homenagem a sua incomum aparência física. Encontraram-se, após meses de jogos na Second Life. Encontram-se na barranca do Tietê, com o Sol se pondo em meio à névoa seca da poluição. Botaram os olhos descoloridos, um no outro, e exclamaram, ao mesmo tempo: - Putz, que vida desgraçada esta First Life!
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6.8.07

Eterno lamento


Eterno lamento

Por Paulo Heuser


Banshee é um tipo de fada, segundo a mitologia celta da Irlanda. A mitologia escocesa tem as Bean Nighe. Ninguém lá desejava vê-las, pois anunciavam a morte, segundo as lendas. As Banshee anunciavam o número de dias de vida que restavam através de seus gritos de lamento, ouvidos a longa distância. Dois gritos, dois dias. Um grito apenas, não passava daquela noite.

As Banshee também atuavam como carpideiras, mulheres que choravam profissionalmente a morte de alguém. No caso das Banshee, no entanto, não eram pagas. Devido a alguma forma de estratificação social fúnebre, essas fadas só podiam lamentar a morte de entes das cinco maiores famílias irlandesas: O’Neill, O’Brien, O’Connor, O’Grady e Kavanagh. Cada uma dessas famílias contava com a sua própria fada, para lamentarem suas perdas. Os lamentos tornavam-se especialmente prolongados quando morriam marinheiros, cujos restos mortais não eram localizados imediatamente. A falta do corpo prolongava o sofrimento dos familiares e amigos, pois adiava o encerramento de uma fase da passagem. A vida dos que ficaram só continuava após os rituais de sepultamento. Apesar de não diminuir a falta, o enterro permitia que a vida dos demais continuasse. A morte por si só já é traumática. Da morte prematura, o que dizer?

Em outras regiões da Europa, surgiram as carpideiras profissionais, mulheres contratadas para chorar nos cerimoniais fúnebres. Recebiam dinheiro ou coisas de uso pessoal do falecido. As carpideiras choravam as lágrimas da oportunidade, pois nada sentiam em relação a quem foi e a quem ficou. Porém, como grandes atrizes, sabiam expressar o sofrimento com maestria. Seu choro era um negócio, um serviço como qualquer outro. O desaparecimento dos restos mortais de alguém se configurava como oportunidade de auferir ganhos adicionais, pois era possível chorar por mais tempo. A intensidade do lamento destacava a carpideira, aumentado a procura pelos seus serviços. Como aconteceu com outras estranhas profissões, toleradas pelas nossas organizações sociais, as carpideiras evoluíram ao longo dos séculos e milênios. Hoje ninguém encontrará anúncios dos serviços das carpideiras. Aliás, hoje se confundem em gênero, não mais se limitando a profissão às mulheres. Hoje há carpideiros, talvez até em maior número.

As conjunções das falhas institucional, do aeroporto com pista de aeroclube e do avião perneta abriram um mercado fantástico para as novas carpideiras. Estas não recebem mais em espécie nem em objetos das vítimas. Recebem em exposição da imagem. Aqui, aparentemente, as novas carpideiras se originam nas grandes famílias dos O’Governo e dos O’Posição, digladiando-se em intermináveis lamentos de acusações mútuas.
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5.8.07

Memorize seu setor!

Foto: Paulo Heuser
Memorize seu setor!

Por Paulo Heuser


Chegamos à fase da vida em que nos tornamos extremamente minimalistas. Trocamos qualquer bufê de 87 pratos quentes e 48 frios por um prato bem-feito. Um bom pão, acompanhado de boa manteiga, vira banquete. Ernest Hemingway vira opção de leitura. Fugimos de cafés coloniais como o diabo foge da cruz. Rodízios, só sob os móveis. Pizza? Margherita, ora. Enfim, trocamos quantidade por qualidade e caos por harmonia.

Num dia qualquer da vida, sem aviso prévio, passamos a freqüentar pequenos armazéns e lojas de miudezas. As bancas do Mercado Público passam a nos atrair. As bancas, até que não são tão minimalistas, mas o povo é. E isso é belo. Chega aquela senhora pedindo peixe seco. O que alguém fará com peixe seco? Sei lá, mas aí que reside a graça da coisa. Pedem coisas estranhas e exóticas, coisas que nunca encontrarão à venda nos supermercados das grandes redes. São aquelas coisas que estão guardadas em grandes vidros, na quarta prateleira, terceira coluna, atrás do pote de geléia de cactos da Abissínia.

Quando entramos na fase minimalista, fugimos da padronização, do modismo. Modismo é complexo, pois implica condicionamento social. O treinador mercadológico deve nos adestrar, para que compremos pasta de qualquer porcaria e digamos: - Oh, que como é bom comer Grlbh! Todos gostam, por que não eu? Passei da fase de comer Grlbh, hoje prefiro o pão. Não os pães de iogurte, 29 cereais, erva doce, alcachofras secas, batata azeda ou caju. Apenas pão. Quando comemos carne, preferimos a de sabor carne. Nada de carnes sabor pizza, guacamole, quatro queijos ou cheddar.

Na hora de comprar os mantimentos, passamos a preferir o armazém do Sergio. Não há necessidade de carrinho para colocar as compras. Basta largá-las sobre o balcão. O Sergio sabe de quem são. Também não há ilhas de mercadorias no Sergio. Pode-se caminhar livremente, sem arredar carrinhos esquecidos no meio do corredor pelos distraídos, para não dizer coisa pior. Ilhas de mercadorias são campos minados no meio do corredor de supermercados grandes. No Sérgio não há caderno de ofertas, basta lhe perguntar o que está barato. Ele sabe, e diz. As sacolas do Sergio são mais resistentes. Não furam com qualquer lata. O que dizer dos estacionamentos, então? No Sergio, há vaga na porta. Nos grandes, esquecemos onde deixamos o carro. Depois, vagamos pelo estacionamento, tentando encontrá-lo. Certa feita, perdi meu carro. Pior, sem saber onde. Já era noite feita, quando descobri que o deixara no dentista, pela manhã. Tive de apanhar um táxi, para buscá-lo. As grandes redes de supermercados criaram padrões de sinalização para seus estacionamentos. Maravilha, você vai a qualquer loja da rede e encontra os mesmos sinais, com uma advertência: Memorize seu setor.

Quando não vou ao Sergio, costumo comprar coisas na pequena loja da muito grande rede. Loja tão pequena que ficou meio esquisita, com a sinalização das grandes. No minúsculo estacionamento, para algo como 20 carros, há o aviso para memorizar o setor. Sigo à risca: Setor 1-A. Não é difícil memorizá-lo. É o único.
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