16.8.07

Nova odisséia


Busto de Homero, autor desconhecido. Fonte Wikimedia.
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Nova odisséia

Por Paulo Heuser


Esses dias de verão, em meio à nova glaciação, me levaram a fazer algo que não fazia há tempo. Fui para casa a pé. Percorri os sete quilômetros em 1h20, intervalo que pareceu de 20 anos, tempo necessário para que Ulisses retornasse aos braços da fiel Penélope, no seu reino de Ítaca, ilha jônica, na Odisséia de Homero. Comecei a entendê-lo. Distância geodésica nada significa, quando há obstáculos pelo caminho.

O início da jornada foi fácil. Andei a passos largos, em meio ao pessoal que saía de bancos, financeiras, bolsas de (des)valores e assemelhados. Happy hour aqui é conseguir fugir do Centro antes do pôr-do-sol. À noite, faz-se extensa releitura dos hábitos e práticas sociais. Os camelôs de bugigangas dão lugar aos camelôs de outras coisas, do prazer pago ao aspirado. Passando pelo fumado, é claro. Os vendedores de cigarros falsos cedem posto aos vendedores dos autênticos cigarros artesanais, montados pelo próprio consumidor. Coisa verde-amarela. Enquanto os restaurantes e mosquinhas do entorno do Mercado fecham suas portas, surge a fumaça cheirosa dos churrasquinhos de gato. Há de se ter prática para atravessar esse novo mundo. As sombras escondem surpresas.

Em apenas 100 metros, após o Mercado, podem-se fazer coisas que exigiriam muito tempo e deslocamento, em outros locais e horários. Há qualquer mercadoria ou serviço à venda. Em meio ao caos de quinquilharias e roupas, fui abordado por um homem imenso, que solicitava ajuda para comprar um remédio. Parecia doente mesmo. Aliás, parecia-se com Polifemo, o pavoroso ciclope que azucrinou Ulisses na Sicília. Ulisses o derrotou após lhe dar um porre de vinho e furar-lhe o único olho. Pois esse Polifemo moderno tinha dois olhos, aparentemente defeituosos, incapazes de manter o foco em alguma coisa. Livrei-me dele com facilidade. Pelo estado geral dele, Ulisses já havia lhe dado muito vinho, ou equivalente. Nem precisei me amarrar à barriga de um carneiro para fugir.

Não escreverei 12 mil versos hexâmetros em 24 cantos, mas aquele número é boa estimativa do número de pares de tênis espalhados pela rua, após o shopping informal a céu aberto. Superado esse obstáculo, atravessei o mar revolto entre Caribdes e o rochedo de Cila, tentando escapar do cântico dos modernos sereios que lançavam aos quatro ventos os medonhos cânticos da dupla sertaneja Xenônio e Xarope. Logo cheguei à praça seguinte, onde a bruxa Circe já havia transformado homens em animais, pois muitos chafurdavam em meio aos sacos de lixo. Ao lado, o Vale dos Controles Remotos. Dezenas de estranhos gregos seguravam idênticos tabuleiros com centenas de controles remotos para qualquer tipo de aparelho, até para aqueles que não os suportam.

Maior perigo me esperava adiante. Uma reencarnação da deusa Calypso, que se declarava perdidamente apaixonada por mim, não me deixou seguir. A muito custo, consegui me desvencilhar dela, e continuei em frente. Até que um sujeito barrou meu caminho, girou o braço, em amplo movimento circular, terminando com o dedo apontando para o meu rosto e gritando:

- Eu sou da Divinéia!

Essa ilha não consta no mapa do Mar Jônico. Resumi minhas possibilidades de ação em cinco alternativas:

a) Morrer de medo e sair correndo;
b) Perguntar-lhe educadamente: o que é Divinéia?;
c) Gritar de volta, mais alto e mais forte, após girar o braço em sentido contrário: syggnomi! Den katalabaino! – Perdão! Não compreendo! (em Grego);
d) Morrer de rir;
e) Aparentar indiferença blasé de balconista de joalheria fina e ignorá-lo, seguindo em frente.

Optei pela última. Funcionou, na terceira vez. Uma hora e vinte depois da partida do Centro, cheguei em Íta... casa. Quando cheguei, a fiel Penélope não estava mais me esperando. Foi sozinha, ao supermercado.
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