29.8.07

Quando reina o medo

Não é auto-retrato! Foto: Wikimedia
Quando reina o medo

Por Paulo Heuser


Homens têm medo dos cães, especialmente daquelas feras assassinas criadas pelos homens que não temem os cães que atacam os homens. Os cães temem os homens, especialmente os homens que criam os homens que criam os cães que... bem, houve alguma ruptura na relação de causa e efeito, em algum lugar. Esse é apenas o medo.

Há algo bem pior do que o medo, o pavor. Se o medo ajuda na sobrevivência dos animais, o pavor destrói qualquer resquício de autocontrole e racionalidade. A palavra pavor, por si só, já é pavorosa. Pavor soa como pavor, mesmo. Medo pode ser disfarçado, pavor não. Os apavorados apresentam evidentes sinais físicos de pavor. Os cães apavorados ganem como bestas ensandecidas, mordem tudo e a todos. O mesmo acontece com o bicho homem, por vezes mais besta que os cães. Encurralados em algum canto, gritam e agridem de forma descontrolada.

A origem do pavor pode ser eventual ou sazonal. Cães têm pavor do Ano Novo, evento sazonal, devido ao massacre auditivo do espocar dos foguetes. Os cães da raça Pinscher deveriam ter, mas não têm, pavor dos cães da raça Pitbull. Há homens que agem da mesma forma. Atacam insanamente os mais formidáveis adversários, dos quais deveriam nutrir verdadeiro pavor. O Zé não é um desses destemidos. Sente pavor daquele dia. Sabe, daquele. Não, não desse. É do outro, aqueeele. Poucos confessam o pavor que sentem por aquele dia, mas são traídos pelos atos. Especialmente quando adoecem.

O Zé chegou mal. Chegou é eufemismo, ele desabou na cadeira, na realidade. O cabelo desalinhado e as olheiras profundas já davam boa idéia de que algo ia mal, muito mal. Respiração ofegante, irregular e com traços de ronco de porco, apenas corroborava o diagnóstico inicial: Zé estava passando pelos terríveis sintomas de uma gripe. Por trás daquelas olheiras abissais escondiam-se olhos brilhantes, não pela alegria, mas pela febre. Parecia tremer, levemente, e vestia roupa desproporcionalmente pesada, para a temperatura ambiente. Zé personificava a desolação total e completa.

Ao vê-lo, pensei logo na inconveniência de alguém vir trabalhar nesse estado. Por que espalhar vírus e bactérias para todos? Espalham os famigerados germes desde sua saída de casa até o retorno. Ninguém lhes escapa no elevador. Todos trancam a respiração, ao ouvir aquele característico ronco de porco, menos o próprio. Não consegui ficar quieto:

- Puxa, Zé! Por que diabos você vem trabalhar nesse estado? Para passar a pereba a todos?

- Não, é que hoje é...

Quedou-se quieto, porém o brilho nos seus olhos mudou do brilho-febre para o brilho-pavor. Seus ombros, já caídos até então, desabaram de vez. Tive pela dele, juro. Tentei parecer solidário:

- Ah, a Maria está... incomodada?

- Céus, não! Isso não seria nada, comparado ao dia do... você sabe...

Não consegui disfarçar o meu próprio pavor, ao entender por que o Zé tivera pavor de ficar em casa, convalescendo. Tentei aparentar calma:

- Certo, Zé. Se você precisar de qualquer coisa, por favor, peça. Amigos são para isso.

Tremi descontroladamente ao lembrar da última vez que fiquei doente naquele dia e fiquei em casa. Nunca mais. Posso estar acometido de uma terrível ostrombose retumbástica, mas naquele dia venho trabalhar, nem que venha de UTI móvel.

Carlos, o Estagiário, na sua infantil inexperiência perguntou:

- Que dia é esse que apavora tanto vocês?

Coitado, ele não conhecia aquela besta formidável que nos perseguia implacavelmente naquele dia, uivando pavorosamente e não deixando nada escapar, sugando a vida de qualquer coisa que ficasse no seu caminho, mesmo a de quem tentasse se esconder. Olhamos para ele, com olhares brilhantes de pavor e pensamos, em uníssono, mudos pelo pavor:

- É o Dia da Faxina! Ele não conhece o Inominável (O Aspirador de Pó)!
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