Das vidraças e dos testículos
Por Paulo Heuser
Quem anda pelas nossas cidades lembra-se cada vez mais da “teoria das vidraças quebradas”, dos cientistas políticos norte-americanos James Q. Wilson e George L. Kelling, que apregoam a intolerância com os pequenos desvios de conduta. Não chega a ser uma teoria, de fato, pois carece de embasamento experimental. Ficamos com uma hipótese, portanto. Contudo, é uma hipótese que dá o que pensar, pois encontra abrigo na lógica.
Segundo essa hipótese, quando alguém quebra um vidro de uma janela, e aquele não é imediatamente substituído, logo outros serão quebrados. Ou seja, quando toleramos pequenos delitos, ou desvios de conduta, logo se seguirão outros maiores. A tolerância implicaria abandono dos costumes, da ética e da norma legal. O mesmo valeria para a comunidade. Filhos abandonados, ou sem fiscalização dos pais, tenderiam à delinqüência. A “teoria” tem defensores e inimigos ferrenhos. Os defensores citam o exemplo do estado norte-americano de New Jersey, nos EUA, onde ela foi aplicada de uma forma um pouco distinta daquela que foi difundida como “tolerância zero”. Esta defende prisão para qualquer delito ou desvio de conduta, por menor que seja. Algo como prenda agora e pergunte depois. Em Newark, New Jersey, na década de 70, o policiamento passou a ser feito a pé, designados os mesmos policiais para os mesmos bairros. Os policiais passaram a conhecer a população, e vice-versa. O conhecimento mútuo permitiu que os policiais classificassem quem estava na rua. Havia os locais e os estranhos. Entre os locais, a população residente no bairro, os policiais identificaram os “normais”, pessoas aderentes à norma e aos costumes aceitáveis, e os “diferentes”, os alcoólatras, viciados, mendigos e os transgressores da lei. Os outros, os não residentes, ou passantes, eram os “estranhos”, sobre os quais nada se sabia. Essa classificação empírica permitiu que os policiais passassem a voltar sua atenção para onde ela deveria estar focada: naqueles dos quais nada se sabia e naqueles dos quais já se sabia da possibilidade de delinqüirem.
Curiosamente, a criminalidade não diminuiu, estatisticamente, não pelo menos nos crimes clássicos, como assassinatos e roubos. No entanto, por alguma razão buscada até hoje, a população sentiu-se mais segura, segundo as estatísticas. Alguns defendem a hipótese de que a população “normal” deixou de ser importunada pelos residentes “diferentes”, já que a polícia passou a combater o achaque por parte dos mendigos, traficantes e agentes de outros desvios menores. A população teria passado a denunciar os delitos, confiante com a presença policial. Apesar da manutenção dos índices de criminalidade, sentiam-se mais seguros. Sob essa ótica, faz sentido.
Em Nova Iorque, o prefeito Rudolph Giuliani (1944-) implantou em 1994 a “tolerância zero”, a fim de retirar o controle dos traficantes de drogas sobre as ruas. A estatística dos crimes caiu significativamente em Nova Iorque. Os inimigos da “tolerância zero” alegam que a queda se deveu mais a outros fatores, como a queda do consumo de crack, já antes desse período. Segundo os maiores opositores, como Löic Wacquant, sociólogo da Universidade da Califórnia (UCLA), autor do livro As prisões da miséria (Les prisons de la misère), a “tolerância zero” seria apenas mais uma forma de oprimir os pobres e as minorias raciais, pois não levaria em conta os fatores socioeconômicos, nos desvios da conduta social aceita. Segundo Wacquant, a “teoria das vidraças quebradas” seria tão somente uma evolução da antiga “teoria dos testículos despedaçados”, que afirma que quando a polícia persegue insistentemente o pequeno criminoso, este vai delinqüir em outro lugar. Seria também uma forma de discriminação racial, pois perseguiriam principalmente os jovens pertencentes às minorias étnicas.
Essas hipóteses tratam primariamente do combate aos crimes maiores a partir da erradicação dos menores, nos EUA. Aqui, olhando ao redor, podemos concluir que se despedaçássemos (figuradamente, é claro) alguns imensos testículos, haveria dinheiro de sobra para substituir as vidraças quebradas.
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