20.8.07

Amnésia e repetição

Foto: Paulo Heuser
Amnésia e repetição

Por Paulo Heuser


Quem atende ao público nos restaurantes precisa contar, ou com um bloco de notas, ou com uma memória prodigiosa, para anotar os múltiplos pedidos. Lembro-me de um garçom de um restaurante que servia à la carte, que, independentemente do pedido, trazia sempre o prato do dia. De nada adiantava olhar o menu. Enquanto houvesse, ele trazia o prato do dia. Para esse garçom, bastava memorizar os pedidos de bebidas, pois a comida ele já sabia, prato do dia.

Na antiga sede de um clube, havia um maitre que não só memorizava os pedidos, como também quem havia pedido o quê. Mesmo numa mesa com 20 pessoas, o homem lembrava cada pedido, e orientava os garçons na hora de colocar os talheres de frutos do mar e servir. Os clientes divertiam-se, esperando que ele errasse, algum dia. Contudo, ele sempre acertou. Alguns tentavam fingir que haviam pedido outra coisa. Ele sempre tinha certeza absoluta do que haviam pedido.

Em um velho restaurante chinês, a conta era entregue compulsoriamente, junto com a comida. Sobremesa, só se fosse pedida junto com os demais pratos. Senão, era tarde demais. Em outro, recém-inaugurado, não falavam português, apenas chinês. Os pedidos eram feitos através de números anotados ao lado do nome dos pratos. Era particularmente interessante observar o proprietário tentando dizer “três tipos fritos”. Essa idéia dos pratos numerados depois foi copiada por uma grande empresa estrangeira de lanches rápidos.

Garçons com problemas de fala são raros, mas há. Recordo-me de um fanho que gritava ordens incompreensíveis para dentro da cozinha. E o pessoal lá de dentro gritava: - É prá já, chefe! Não sei se fingiam entendê-lo, mas a coisa funcionava.

Há também os garçons que sofrem de problemas de memória. Esquecem sistematicamente o que lhes foi pedido. Esquecem-se também de que o suflê de mandioca brava está em falta, desde antes da inauguração do restaurante, em 1961. Mas, estranhamente, ainda aceitam pedidos onde ele está incluído. O patrão esqueceu-se de retirá-lo do cardápio, que ainda traz os preços em cruzeiros novos e oferece um vinho tinto suave da Antunes (também em falta).

Outro dia participei de uma festa onde havia um garçom que se virava ao avesso, para atender os convidados. O que lhe faltava de cabelos, sobrava-lhe em disposição. Andava com desenvoltura por entre as mesas. Mal entrava na copa, já retornava, com a bandeja cheia. A principio pensei que o homem sofria de algum distúrbio de memória de curto prazo. Ele passou pela mesa e solicitou o pedido. Retornou trinta e três segundos depois. Sem o pedido. Retornou para solicitar novamente o pedido, como se nunca estivera ali. Foi-se novamente em direção à copa, voltando em menos de um minuto, desta vez trazendo o pedido. Ele retornou novamente, decorridos mais 47 segundos, trazendo outra vez o pedido. Antes dois pedidos atendidos do que nenhum - pensei lá com os meus botões. E então constatei o que me deixou perplexo: haviam clonado o garçom. Dois deles andavam pelo salão, idênticos. Copiaram até a calva. Há determinadas profissões em que os gêmeos idênticos chamam mais a atenção.
.
.
.

Marcadores: ,