30.8.07

Circo do Sol

Il Circo di Georges Seurat
Circo do Sol

Por Paulo Heuser


O Velho já não sabia mais o que fazer para tentar salvar seu novo empreendimento solo, o Circo do Sol. O negócio não ia de mal a pior, ia de péssimo a catastrófico. Em breve não conseguiria mais cobrir os custos fixos. Não teria outra opção senão fechar o tão sonhado circo. O Velho jogara todas fichas naquilo. Raimundo foi chamado para socorrer o sogro. Bem que ele prevenira o Velho do perigo de abrir um circo nestes tempos de jogos eletrônicos e second life. O Velho alegara que não tinha como não dar certo, e alegou suas razões.

O Cirque du Soleil conseguira vender a preço de ouro todos os ingressos, com um ano de antecedência, para as apresentações de um show que já tinha 13 anos, que tratava da disputa política pelo trono de um reino. Esse show já passara diversas vezes na TV. Por que ele não conseguiria fazer sucesso com um circo já instalado, palpável, onde só se pagava na bilheteria? O Velho tentara seguir a receita de sucesso da companhia canadense. Adaptara apenas algumas coisas. Chamou o espetáculo de Alergia. Adaptou também os personagens.

Fleur, o bobo vestido de vermelho, que pensava ser rei, sem o ser, deu lugar ao Seu Flor, que era rei, mas não sabia. O mago Tamir foi substituído pelo mágico Tampinha, personagem definitivamente mais ao gosto do povo. Les Nynphes – as Ninfas – eram muito sofisticadas para o público alvo do Circo do Sol. O Velho preferiu substituí-las pelo Corpo de Dança da Boyte (sic) Erotylkus Exdrúxulus, do Tonhão. A meninas passavam pelo circo, antes de irem ao batente na Boyte (sic). Mais estranho que qualquer outro aspecto, no nome da casa noturna do Tonhão, era o sic. Este sic não era simplesmente o sic (assim) do latim, pois fazia parte do nome. Foi sugestão do advogado, já que todo mundo o alertava que havia alguns erros de grafia no nome do estabelecimento. Com o sic, ninguém mais poderia falar nada, pois ficou claro que era assim, literalmente. A coisa pegou. Hoje o pessoal comenta que vai dar uma passada na sic. E o sic foi incorporado ao letreiro em néon, na fachada da Boyte (sic).

Mais alguns ajustes, daqui e dali, e o espetáculo estreou. Tinha tudo para dar certo, mas não deu. As cantoras em branco e negro foram interpretadas pela dupla Hermelina e Hermenêutica, que se empenhavam em danças de quadrilha, enquanto cantavam sucessos boiadeiros.

O Velho deu o braço a torcer e deixou Raimundo tomar conta do marketing, o Calcanhar de Aquiles do empreendimento. A campanha foi invisível. Primeiro, ele criou uma rede de intrigas e boatos operada através de uma rede de atores contratados no centro do País. Eles se infiltraram em ambientes das classes B, C e D, especialmente nas butiques de shopping e restaurantes da moda. Ouviram-se muitos diálogos protagonizados por elegantes casais:

- Querida, consegui dois ingressos para o Circo do Sol!

- O que? Como é que você conseguiu, se estão esgotados há dois anos?

- Bem, querida, mexi uns pauzinhos, sabe com é, não?

- Arlington, meu amor! Você realizou o sonho da minha vida!

- Uestvirgínia, minha paixão. Nada é demais para colocá-la no topo da escala social!

Nisso a linda personagem abraçava apaixonadamente o também lindo personagem, tascando-lhe um beijo que pedia holofotes e fanfarras. A seguir, caminhavam de mãos dadas, enquanto ela ensaiava passos esvoaçantes de uma valsa imaginária. O silêncio caia sobre os presentes, durante alguns instantes. Seguia-se um burburinho interrogativo, do tipo o quê, onde, como, quem vende, quando, tem propina? A notícia correu de boca em boca e ninguém admitia não saber o que seria o Circo do Sol. Alguns comentavam, à boca pequena, que seria uma dissidência do Circo Imperial de Alexandre, o Grande, que escapara de um massacre na Abissínia. Duas semanas depois, todo mundo afirmava ter conseguido os ingressos, seja através de um diplomata europeu, seja através de uma condessa de Paris. Porém, todos comentavam, como quem não queria nada, que necessitavam mais dois ingressos, para um casal de amigos que viria do estrangeiro, e estariam encontrando dificuldades para encontrá-los. Três semanas depois, o casal esvoaçante retornou ao restaurante, envolto em uma nuvem rósea de fumaça de gelo seco, gerada pelo contra-regra contratado especialmente para a cena. Novo silêncio. Até que o lindo e charmoso adônis segredou, quase aos brados, à sua diáfana artemísia, que os Bradley-Hampshire haviam sido convocados às pressas para assumir uma embaixada na Europa, e deixaram os ingressos à venda, com um exclusivo mercador de coisas impossíveis. O silêncio que se fez naquele ambiente foi tão terrível que todos olharam com ar de reprovação para o maitre que anotava um pedido. O ruído da caneta esferográfica deslizando sobre o papel pareceu ensurdecedor. Uestvirgínia pediu o telefone do cambista, pois os Kennel-Dachshound haviam manifestado interesse, após cancelarem a temporada de esqui no Himalaia. Em tom de conspiração, ele cochichou bem alto o número do celular do Hersheisyrup – o número do Velho.

O celular do Velho não parou mais de tocar. Os ingressos mais baratos, os de 300 reais, esgotaram-se em questão de horas. Vendeu 18 meses de lotação da casa, em duas semanas. A reestréia de Alergia foi um sucesso estrondoso. Criaram até uma categoria vip, denominada Pelego Encarnado.
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