28.12.06

Das Crônicas Raimundianas XII - O Descanso

Das Crônicas Raimundianas XII - O Descanso

Por Paulo Heuser

Após um ano especialmente agitado, Raimundo mereceu um descanso. Optou por passar alguns dias no litoral, fazendo absolutamente nada. Queria ficar jogado numa rede, apenas lendo e descansando. Dormiria muito. Tomou a estrada na sexta-feira à tardinha, após o fim do expediente na Cotra. A maior parte dos funcionários sumiu aí pelo meio da tarde. Raimundo fingiu que nada via, colocando-se no lugar daqueles que passam apenas os finais de semana, no litoral. Ficavam com saudades da família.

Carregas as tralhas, lá se foi Raimundo, feliz com o tão sonhado descanso. Alugara uma casa espaçosa, pois o Velho e a família o acompanhariam. A viagem seria curta, se não houvesse aquele congestionamento na saída da cidade. Nem os outros. Mas, férias não permitiam estresse. Havia todo o tempo do mundo para chegar à praia, ou quase. As coisas até que não estavam tão ruins. Já percorrera dois dos 180km, em duas horas. Paciência, ar condicionado e uma boa conversa, foram suficientes para tornar imperceptíveis aquelas seis horas seguintes. Habilidade, também. Após deixar a auto-estrada, o motorista entra numa estrada curiosa, que exige habilidades especiais para trafegar. Construíram uma estrada com uma e meia pista de rolagem. Cabe um carro e meio ali. É necessário dirigir mantendo as rodas do lado direito sobre o limite do que seria o acostamento, com vento forte. Inevitavelmente, algum motorista não-iniciado resolve contrariar as regras informais de comportamento, provocando um engavetamento, pois a distância mínima entre veículos é reduzida à 12cm, com tempo bom, 18cm com chuva ou neblina. Dá para se sentir o mau hálito do motorista que vem atrás.

À meia-noite, Raimundo encostou o carro em frente à casa que alugara. Cansado, porém aliviado. Aquelas seis horas haviam passado, agora iniciaria o descanso. Iniciaria, se o vizinho defronte não houvesse planejado aquela festa country, que iniciou à 1h30. Trouxeram uma caminhoneta com imensos alto-falantes na parte traseira, e um amplificador de som digno de uma tele-mensagem por atacado. Raimundo nada notou, quando chegou. Deitaram-se lá pela 1h15, cansados, após Raimundo ter colocado as correntes e cadeados no portão, ter eletrificado a cerca, ligado o sistema de câmeras de vigilância e o alarme, e soltado os cães de guarda. Estavam ali para descansar, não para surpresas. Era o local próprio para descansar.
O primeiro indício de que algo não ia bem foi uma forte pressão no diafragma, seguida de outras, ritmadas. Recém-adormecido, Raimundo imaginou que iniciara-se um bombardeio. Após alguns instantes de confusão mental, teve coragem de olhar para fora, quando constatou que se tratava de uma festa no vizinho. Impossibilitados de dormir, Raimundo e o Velho quedaram-se em cadeiras de praia, no quintal, observando a festa. O Velho aproveitou para bebericar um drinque especialidade, agora com uma bala de goma amarela, simbolizando o verão. Acendeu um fedorento Cohiba, esfumando tudo ao redor, com longas baforadas. Raimundo descobriu-se admirando as garotas que dançavam uma espécie de quadrilha, vestindo minissaias, calçando enormes botas de couro, combinando com o chapéu de vaqueiro, do mesmo material. Estranha e temática combinação, ao som ribombante de uma marcha agroteutônica, fugida de alguma festa de peão boiadeiro das partes mais centrais do País. Raimundo dormiu, lá pelas 6 horas, sentado na cadeira de praia, devorado pelos pernilongos, derrotado pelo cansaço. O Velho não dormiu, apesar das generosas doses de drinques temáticos, cada uma com 250ml de aguardente fortemente amarelada, devido ao fumo em corda colocado dentro do garrafão. Às 7 horas saiu para comprar fogos de artifício, querendo comemorar o início do veraneio e o fim da festa. Às 7h17 estava estourando os primeiros foguetes, para a alegria dos demais vizinhos e dos recém-deitados festeiros. Raimundo caiu da cadeira no primeiro disparo. Mas, tudo bem, estava no litoral, local para descanso. Poderia dormir após o almoço, aquela soneca dos justos.

Raimundo foi ao mercado, buscar os insumos para o primeiro de muitos churrascos. Encontrou alguma dificuldade para estacionar. Outra, para entrar. A fila do açougue impedia a entrada dos fregueses. Tudo bem, não havia pressa mesmo, estava no litoral, local para descanso. Raimundo pensou que já pensara nisto antes. Até que aquela hora teria passado mais rápida, ou menos perceptivelmente, se houvesse ar condicionado no mercado. Aquele telhado de zinco não ajudava a refrescar o local. Em trajes de banho dava para suportar. Chegada a vez de Raimundo, o desdentado açougueiro lhe apresentou, orgulhoso, a carne restante. Raimundo a levou, acreditando que o tom azulado se devesse ao carimbo da inspeção sanitária. E que aquelas moscas congeladas não faziam parte do pedaço, apesar de serem pesadas com ele. Aquele foi o momento de descobrir por que havia outra fila enorme. Era a fila dos caixas. Às 14h30 Raimundo chegou em casa, no instante exato em que um caminhão descarregava equipamentos de som na casa do vizinho da direita. Tudo bem - pensou Raimundo -, poderia dormir um pouco após o almoço, antes da festa da noite.

O almoço foi de descontração, apesar do cansaço. O Velho assou a pelanca azulada, enquanto a defumava com o Cohiba. De vez em quando a regava com um pouco do drinque especialidade de verão. Como um estrangeiro já lhe dissera, ao ser apresentado ao autêntico churrasco gaúcho, carne temperada apenas com sal era comida de índio. Havia de se temperá-la com os temperos secretos do Velho. Raimundo recusou o drinque especialidade e optou pela cerveja, ainda não bem gelada, mas cerveja, bebida universal do litoral, local para descaso. Haveria muito tempo para outras, mais geladas. E um pequeno aviso, no pacote da carne congelada, que dizia: “Imprópria para consumo humano. Para uso em ração animal”. Raimundo queria devolvê-la, mas o Velho não deixou. Afinal, se alguém entendia de boi, era o próprio boi. Se o boi a comia, por que não eles? Raimundo acabou comendo a salada e um pedaço de pão. Haveria tempo para outros churrascos, para consumo humano, inclusive. Afinal, estava no litoral, local para descanso.

Após algumas cervejas, a última quase gelada, Raimundo pediu licença para descansar. Tomaria uma ducha fria e cairia na cama. Pena que faltou luz. Poderia até tomar uma ducha fria, se houvesse água. Com a falta de energia, a bomba parou. O banho que se danasse, queria mesmo era dormir, pois estava praticamente sem dormir havia mais de 36 horas. E estava no litoral, local para descansar.

Raimundo pegou no sono instantaneamente. O pesadelo veio rápido. Acordou meio minuto depois, com o som estridente da buzina do caminhão que trazia vendedores de redes artesanais. Milhares de redes artesanais do Ceará. O Velho ficou interessado na mercadoria, examinando minuciosamente diversas peças, enquanto nelas caiam cinzas do Cohiba. Houve um princípio de incêndio, que fez o sogro do Raimundo perder o interesse. Não compraria redes sujas de cinzas e apresentando furos de queimados. Não era trouxa.

Os vendedores de redes deixaram a rua no momento em que o caminhão das Rapaduras Patiné a adentrava, trombeteando jingles e anúncios para os quatro ventos, que sopravam predominantemente do setor nordeste. “Rapadura, pé-de-moleque, puxa-puxa, marshmallow, a marca é Patiné!”. O caminhão parou umas três vezes, sem parar o som. Apesar dos olhos marejados pelo sono e pelas cervejas, Raimundo não conseguiu dormir enquanto o caminhão espalhava todo aquele ruído. Nem logo após, quando passou a perua dos vendedores de cabides fálicos, espantosos criados-mudos cheios de projeções de aparência suspeita.

O sono finalmente venceu, Raimundo desmaiou. Não chegou a ver a passagem dos ciganos vendedores de panelas, dos vendedores de olhos de sogra, de picolés e sorvetes. Entrara numa espécie de coma induzido pelo instinto de sobrevivência. Acordou, sobressaltado, com a frase “A lâmina da espada do Senhor cortará a cabeça dos pecadores!”. Que pesadelo horrível! - pensou ele. Era tão real, que os olhos continuavam lacrimejando. Pareceu mais real quando os gritos estridentes se sucederam, sempre elevando o tom e as ameaças de punição celestial. Um grupo de pregadores da Igreja das Punições Litorâneas Eternas ocupara a praça, próxima dali. Ainda bem que o som alto de música infantil abafou a pregação da praça. Som da festa infantil que se iniciava, no vizinho da direita. Havia um animador na festa, que narrava tudo o que acontecia. Após 12 execuções de Atirei o Pau no Gato, veio o Parabéns a Você. A essas alturas, Raimundo já pensava em fazer justiças com as próprias mãos, estrangulando o felino, se ainda tivesse forças para tanto. O animador da festa foi avisado de que um irmão do aniversariante fizera aniversário, havia um mês. O mais estranho é que haviam nascido no mesmo ano. São coisas de praia. E assim seguiram-se os comunicados de outros aniversários, de outros parentes e amigos, em outras épocas. O narrador continuava cantando o Parabéns, a cada novo anuncio. E olhe que havia gente naquela festa! Trinta e sete Parabéns depois, a festa seguiu, com outros sucessos musicas infantis, como os Shows da Xuxa, do I ao XXIII.

Festas infantis não são mais como eram. Não costumavam durar até a meia-noite. Exausto, com ressaca, Raimundo certificou-se do funcionamento do sistema de segurança e foi dormir, finalmente. De tão cansado, não conseguiu. Ainda bem, pois seria acordado, logo a seguir, pela festa-vingança do vizinho da esquerda, em retaliação à festa da noite anterior, do vizinho em frente. Fizeram uma roda de pagode na parte da frente do quintal. O Velho não se fez de rogado, foi ensinar o pessoal a preparar os drinques especialidade de verão. Levou apenas um saco de balas de goma sabor abacaxi. A aguardente foi fornecida pelos convivas. Aí pelas 2 horas a dona da festa começou uma sessão de karaokê, embalada pelos drinques do Velho. A lua cheia, levemente encoberta pelas nuvens, combinou com os ganidos musicais da dona da casa. Raimundo desmaio novamente, às 5 horas. Às 6 horas acordou, pois o Velho resolveu saudar a chegada do dia, batendo tampas e panelas, enquanto ouvia o seu programa radiofônico dominical preferido.

Conformado com a impossibilidade de dormir, Raimundo resolveu acompanhar o pessoal à beira da praia, apesar de não gostar muito de lá. Talvez conseguisse tirar um cochilo. Percorreram a pé as 11 quadras que os separavam do Oceano Atlântico, chegando à tão sonhada, e disputada, beira-mar. Não havia muito espaço livre para armar acampamento, pois a praia já estava bastante populada, parecendo-se com um mar de panos coloridos. Além dos guarda-sóis, espalhavam-se gazebos de todas as cores. O que ao longe se parecia com bolas coloridas rolando na areia, eram guarda-sóis, rolando ao vento. Conseguiram em espaço de quase dois por dois. Suficiente para armar o guarda-sol e colocar as cadeiras. E próximo da barraca onde se vendiam bebidas e petiscos.

Avesso ao sol, Raimundo besuntou-se com bloqueador solar, antes de se deitar para dormir. Teria sido mais fácil, se não fosse o pessoal da área ao lado, que insistia em jogar frescobol em meio às barracas. O cachorro deles, que corria latindo atrás da bola, passando por cima de tudo e de todos, causou especial irritação. Tanta irritação que Raimundo resolveu experimentar os drinques especialidade do Velho. Este ia prevenido, levando copos de requeijão, um garrafão de aguardente e as balas de goma amarelas. Raimundo empinou um copo, estilo caubói, na seca. A coisa bateu feito martelo na bigorna, nocauteando-o. Assim, não chegou a perceber a inusitada transparência apresentada pelo guarda-sol da loja de um e 99. A vendedora comentara algo sobre poder se bronzear, mesmo sob o guarda-sol, mas ele não prestara atenção. Também não percebeu, logo, que não fora uma boa idéia comprar o bloqueador solar no camelô.

Acordou às 14 horas. Não foi bem um acordar, estava mais para uma tentativa de ressuscitar. A infame dor de cabeça se confundia com a ardência na pele, dificultando a seleção da pior sensação. A boca seca impedia qualquer som. Aceitou de bom grado aquele salvador copo d’água que lhe alcançaram. Não deu tempo para perceber a bala de goma, no seu interior. Nem que o copo era de requeijão. O Velho lhe alcançara mais um copo de drinque especialidade de verão. A ardência logo foi identificada como conseqüência de queimadura solar. A sogra, mulher do Velho, recomendou-lhe um banho de mar, para aliviar a ardência. Na falta de qualquer idéia melhor, Raimundo tomou o rumo leste e cruzou um campo minado por barracas, cadeiras, cocos de cachorro, e pelo buraco. Um buraco cavado pelos anjinhos de uma barraca próxima e coberto com um pedaço de papelão, disfarçado pela areia fina. Raimundo pisou com vontade no buraco, caindo a seguir sobre uma senhora que lhe encheu de ossos, literalmente. Comia uma galinha na farofa. Desculpas daqui e dali, Raimundo conseguiu chegar ao mar, agora também manco, além de intoxicado e queimado. Até que a sensação da água gelada aliviava a sensação de queimadura. Menos na perna direita, onde os tentáculos da mãe-d’água passaram. Gemendo de dor, Raimundo não percebeu a aproximação do surfista mirim que lhe acertou a prancha, por trás. Caiu ao sabor de uma onda, rolando e lixando a pele queimada, no fundo do mar. Chegou a ouvir o comentário, feito por uma mãe que banhava o filhinho: “tem adulto que não se enxerga!”. Realmente, ele quase nada enxergava, de tão inchado. Deu à praia, chorando copiosamente. O Velho percebera a confusão instalada à beira-mar e foi conferir. Encontrou Raimundo sendo auxiliado pelo salva-vidas e por um médico que, avaliando seu estado, achou melhor mandá-lo à capital, para alguns exames. O sogro ligou para o Japa, na Cotra, que providenciou um helicóptero para transportar Raimundo a um hospital com bons recursos.

Às 20 horas, no Hospital das Cínicas, a família ouviu o veredito da equipe médica multidisciplinar: Raimundo estava sofrendo de um profundo estresse pós-traumático, com diversas seqüelas físicas. A recomendação era uma só: descanso, muito descanso.

Tiveram a idéia de levá-lo ao litoral, local perfeito para descanso.

E-mail: prheuser@gmail.com

26.12.06

Estranhos Encontros

Estranhos Encontros

Por Paulo Heuser

Nesta quarta-feira, 27 de dezembro, será lançado o satélite francês Corot, a partir da base de lançamento de Baikonur, no Cazaquistão. O satélite irá procurar planetas extra-solares com condições, para abrigar vida, semelhantes às da Terra. Lá vamos nós, à cata de algo que nos diga que não estamos sós no Universo. Frank Drake (1930-), diretor do Projeto Seti - que procura sinais de vida inteligente fora da Terra -, criou a chamada Fórmula de Drake, que permite estimar a distância média entre civilizações supostamente inteligentes, a partir de diversas variáveis (http://astro.if.ufrgs.br/vida/index.htm). Chega-se à distância média de 13.500 anos-luz. É uma enorme distância. Ou seja, se mandarmos uma mensagem de rádio às estrelas perguntando sobre a presença de alguém suficientemente inteligente para receber a questão e respondê-la, passar-se-iam 27.000 anos até que o sim fosse por nós recebido. Se ainda houvesse alguém aqui para receber a resposta.

Uma coisa que me intriga é o que faríamos se descobríssemos que efetivamente não estamos sós no Universo. Iríamos criar o feriado do Dia do Exovizinho? E depois? Enviaríamos outro sinal dizendo “Que bom que vocês estão aí!”, esperando mais 27.000 anos pela resposta? Em Contato (1985), Carl Sagan (1934-1996) imaginou uma ótima saída para o problema: os vizinhos enviariam um esquema para que pudéssemos construir uma máquina para transporte através de buracos de minhoca (wormholes), ou algo parecido, percorrendo instantaneamente os 26.000 anos-luz que nos separam da estrela Vega.

Conhecendo a Humanidade, como a conheço, posso imaginar como seria o tão aguardado contato. O primeiro passo seria a escolha de um representante da população da Terra. Após dois anos de negociações e quatro anos de guerra mundial, escolheríamos um representante da sociedade civil. Mais dois dias de negociações, e quatro décadas de guerras, nos permitiriam escolher o representante religioso, ou melhor, os oito representantes, na verdade. A grande confusão se estabeleceria na hora de escolher o representante dos patrocinadores. Resolvida apenas quando uma holding comprasse todos competidores pela vaga. Acabariam enviando um advogado com uma minuta de contrato de exclusividade, seja lá do que fosse. Quando a comitiva chegasse no planeta habitado de Vega, o que fariam? Convidariam todos para um churrasco, com direito ao show da Ivete Sangalo.

Esta é uma preocupação para diversos povos, inclusive para os brasileiros, que participaram com dois por cento dos recursos do Projeto Corot, cerca de dois milhões de dólares. Bem melhor aplicados do que os hipotéticos sete milhões de reais mencionados em um factóide sobre a remuneração de uma suposta Ong Sociedade Amigos de Plutão, brincadeirinha inventada por um jornalista e alardeada por um senador da República. Depois desmentida. Depois das eleições. Brincadeirinha! Temos uma versão nativa do Orson Welles. Nossa guerra dos mundos era em Brasília.

O Brasil participou do Projeto Corot, com verbas. Poderia prover tecnologia também. Aqui há a convivência pacífica entre estrelas de quaisquer constelações. Menos do PSol.

E-mail: prheuser@gmail.com

22.12.06

O Ano da Fortuna

O Ano da Fortuna

Por Paulo Heuser

Não posso me queixar de 2006. Por mim, poderia continuar assim. Eu já havia sido comunicado, através de um gentil e-mail, que uma cidadã do Zimbábue resolveu me pagar 30% da sua poupança de 17 milhões de libras esterlinas, depositada em um banco da África do Sul. Apenas pelo uso do meu nome, minha conta bancária e minha senha, para retirar o dinheiro daquele país. Que barbada! Não posso revelar o nome da dita senhora, que solicitou sigilo absoluto. Talvez pelo fato de a mesma se fazer passar pela mulher do líder da oposição, no Zimbábue. Pode dar problema com o fisco de lá, que deve ser um leão, literalmente. Tudo foi esclarecido em um comunicado que encontrei na rede, cujo texto transcrevo a seguir, sem tradução, para que nada se perca:

Roora mutengo onobviswa nomunhurume kana achinge odakugara no munhukadzi. Roora izwi rino shandiswa zvikuru muChivanhu chechiZezuru. Rinowanikwawo mumarudzi mazhinji echiShona akaita seChiKaranga kana Chimanyika.”

Curto e grosso, como deve ser um comunicado fulminante, como esse. Ainda bem que tudo foi tão facilmente esclarecido.

Na segunda-feira recebi um e-mail da Grã-Bretanha, informando que ganhei 760 mil euros na loteria. Sem haver jogado! Por isso que aquilo lá se chama Primeiro Mundo. Se ganha sem jogar, mesmo sendo um cidadão do Terceiro Mundo. Segundo o aviso, Bill Gates teria patrocinado a loteria.

Ontem veio o prêmio supremo: uma viúva britânica, Mrs. Diana Felicia Bryant, às portas da morte, resolveu me legar sua fortuna de 15 milhões de dólares. Tudo porque eu teria sido generoso com os órfãos e as viúvas. Viu só, o bem compensa, afinal. Só não entendi bem o negócio das viúvas. Devo ter sido triplamente benemerente. E a viúva moribunda deve ter mandado as últimas duas mensagens do além. Ou então, o Alzheimer baixou nela, pois recebi o mesmo e-mail três vezes. São Pedro manterá uma LAN house? Haverá banda larga?

Ontem recebi o aviso de outro prêmio de loteria, desta vez 500 mil euros da Lucky Day Lotto. Coincidentemente, as duas loterias usam o mesmo e-mail. Deve ser para poupar despesas, aumentando o prêmio. Esta loteria seria patrocinada pela Microsoft, Intel, Dell e outras grandes companhias de TI. Céus, enquanto digitava este texto, ganhei mais um milhão de euros, de uma loteria da Espanha e 2,5 milhões de dólares de outra, não sei nem de onde. Eric Clapton é o contato, no banco onde o dinheiro está depositado.

Nem tudo foi fortuna, em 2006. Na semana passada, recebi um pedido, também por e-mail, para colocar um atalho no meu blog, apontando para a página de uma entidade terrorista que havia sido expulsa de todos os provedores. Coisa mimosa. Estão desabrigados. Poderão fundar o MTSH – Movimento dos Terroristas Sem Hospedeiro. O terrorismo também se manifesta através dos vários cartões virtuais infectados sabe lá com o quê. Pishing – pescaria de senhas, através desses cartões virtuais, virou moda.

Apesar das proteções adotadas, através de softwares especializados, em breve voltaremos aos tempos medievais, quando os reis temiam o veneno que poderia estar escondido na comida. Contrataremos um provador virtual.

Muito mais do que as tentativas de ataque desses malfeitores, muito reais, uma coisa me preocupa. Não chega a tirar o sono, mas me preocupa. É a improvável, mas não descartável possibilidade de que uma viúva moribunda e milionária da Suazilândia leia meu blog e decida doar sua fortuna para o pobre e humilde autor. Que, idiotamente, morreria de tanto rir, ao receber o comunicado, pensando que somente um trouxa cairia nessa.

E-mail: prheuser@gmail.com

Cybercondríacos e Powerpointlessnessiosistas

Cybercondríacos e Powerpointlessnessiosistas

Por Paulo Heuser

Impressionante um artigo entitulado Just can´t get e-nough – de difícil tradução, pelo trocadilho de enough (suficiente), e-suficiente, no caso –, publicado na revista New Scientist de 20 de dezembro, a respeito de comportamentos viciosos dos internautas. Alguns comportamentos obsessivos já estão sendo encarados como doenças. Há a classe dos cybercondríacos, que procuram descrições de doenças através da Internet. Quando picados por mosquitos, saem à cata de e-curas – descrições virtuais de curas. Acabam encontrando um artigo de uma obscura Enciclopédia Virtual Leiga de Medicina Alarmista, que lhes recomenda extremo cuidado com coisas que parecem marcas de picadas de mosquitos. Poderão ser depósitos de ovas do Devorossaurus armagedonium, verme da Ilha de Cracatoa que costuma devorar suas vítimas, de dentro para fora. Ou então, na melhor das hipóteses, uma chaga que implicará a amputação do membro afetado.

Já havia uma visão tão otimista como esta antes do advento da Internet. O Dr. Benjamin Spock (1903-1998) – nada a ver com o vulcano – escreveu o livro intitulado Meu Filho, Meu Tesouro, em 1946. Comprei o livro, motivado pela perspectiva de ser pai. Ninguém em sã consciência teria filhos, após ler alguns capítulos daquele livro. Deveria se chamar O Pesadelo da Paternidade ou 10.000 Doenças Inimagináveis. O homem não era exatamente um prodígio de otimismo. Choro poderia ser interpretado como uma manifestação de tumores cerebrais ou graves lesões na medula. Se o capetinha batesse o martelo de plástico no dedo, havia de se tomar extremo cuidado! Poderia se fazer necessária uma cirurgia exploratória para verificar a possibilidade de dilaceramento ósseo. Tosse poderia ser um indício de terríveis lesões no sistema respiratório. São essas coisas que dão segurança aos novos pais. Nunca tive coragem para ler o capítulo sobre febre. Acabei dando o livro, em uma festa de amigo secreto. Tão secreto que não fui à festa e não coloquei cartão que permitisse identificar o doador do presente de grego.

Um pesquisador chamado Mark Griffiths, especialista em vícios, da Universidade Nottingham Trent, Reino Unido, afirma que podemos nos viciar em qualquer coisa que fazemos. Será? Não imagino um viciado em declarações do imposto de renda. Nem viciados em prisão de ventre. Há outra neodoença, chamada Powerpointlessness – realmente intraduzível – que caracteriza o vício em produzir apresentações cheias de efeitos, utilizando PowerPoint. Pensando bem, já fui vítima de alguns powerpointlessnessiosistas. Estima-se que uma boa apresentação demande tempo na proporção de 80% em pesquisa, e concepção intelectual, e 20% na produção da apresentação. Os powerpointlessnessiosistas invertem essa ordem.

Doença legal é o wikipediolismo. Os wikipediolistas são viciados em editar entradas na Wikipedia – enciclopédia livre. Bryan Derksen é um canadense viciado confesso em edição de entradas: editou mais de 70 mil. Outra moléstia moderna é Blog streaking. Os blogstreakistas costumam divulgar coisas pessoais em blogs e ... e ... bem, isso é doença? Acho completamente normal. Qual é o mal, afinal? Que gente!

E-mail: prheuser@gmail.com

21.12.06

A Gaveta

A Gaveta

Por Paulo Heuser

Uma gaveta fechada à chave me intrigava, desde 2001. Quando mudei de endereço, uma escrivaninha mudou-se comigo. Das três gavetas, uma foi chaveada. E chegou da mesma forma, chaveada. Havia algo importante no interior dela, de outra forma não estaria chaveada. Finalmente chegados ao novo endereço, nos encontramos sentados em meio a muitas caixas de papelão, todas iguais. Havia uma relação que descrevia detalhadamente o conteúdo de cada uma das caixas, todas numeradas.

O primeiro desafio foi encontrar a relação. Em qual caixa estaria? Estava na bolsa. O segundo desafio foi encontrar o cachorro, indexado com a letra P de poodle, ao invés da letra C de cachorro. Estaria na caixa 37, junto com a guia, o prato de comida, o pote de água e as pulgas. Onde estaria a caixa 37? Um longo e lamurioso ganido a denunciou. O terceiro desafio foi para o cachorro - encontrar-se em meio àquelas caixas formando um imenso labirinto. Para o cachorro, o horizonte passou a ser o topo das caixas.

Chegada a hora da escrivaninha, verifiquei se tudo estava intacto, nas gavetas. Foi então que constatei que a gaveta superior estava chaveada. Onde estariam as chaves? Após nova consulta na relação, nada. Havia chaves na caixa 13, mas nada explicitava o tipo de chave. Custei a encontrar a caixa 13 porque eu estava sentado sobre ela. Realmente havia uma caixa de sapatos cheia de chaves no interior da 13. Tentei todas na gaveta, sem sucesso. As chaves daquela gaveta deveriam estar em outro local. Fiquei tranqüilo, pois elas apareceriam à medida que tudo fosse desencaixotado. Algum tempo depois, quando abri a última caixa, esperei encontrar as chaves. Cheguei ao fundo da caixa, sem encontrá-las.

O que poderia haver dentro daquela gaveta? Não senti falta de nada específico. Se bem que, após uma mudança, não sentimos falta de algo. Sentimos falta de tudo. Encontrei até o meu descaroçador de melancias preferido, há muito desaparecido. Ele estava numa caixa identificada com A3, código que utilizei na mudança anterior, em 1983. Aparentemente, a caixa A3 sobrevivera, hermeticamente fechada, por 18 anos. Onde, só Deus sabe. A transportadora foi a mesma, em ambas as mudanças. Teriam guardado a A3 para devolvê-la na mudança seguinte?

Abrir a gaveta misteriosa não era uma prioridade, já que nada faltava, aparentemente. Aparentemente não tranqüiliza muito, apenas um pouco, o suficiente para não arrombá-la. O que haveria ali dentro? Comecei a me lembrar dos filmes nos quais alguém deixa uma vovó assassina trancada em um quarto ou no sótão. Deveria ter chamado um chaveiro para resolver logo a questão. Mas, fiz aquilo que às vezes fazemos com as nossas gavetas interiores. As fechamos e não olhamos mais lá dentro. Estão lá, trancadas. Nos esquecemos do seu conteúdo. Até que uma mudança de leiaute aposentou a escrivaninha. Hora de mandá-la ser útil em outro local. Não poderia me livrar da escrivaninha daquele jeito. Não com aquela gaveta chaveada. Imagine se houvesse algo comprometedor naquela gaveta. Minha foto, dançando qualquer coisa pocotó, por exemplo. Não, aquela escrivaninha não poderia sair sem que se soubesse o que havia ali dentro.

Num raro rompante de inteligência, descobri que poderia soltar o tampo da mesa, dando acesso à gaveta. Por que não pensei nisso antes? Como nas nossas gavetas interiores, há mais de uma forma de abri-las, mesmo não estando de posse das chaves. Não sei por que não a abri antes. Fiquei tanto tempo imaginando o que havia lá dentro, que cheguei a temer que fosse algo perigoso. Bastou o auxílio de uma chave de fenda para que o mistério fosse em fim revelado. Assim, a escrivaninha pôde ir em paz, finalmente. E eu pude dormir tranqüilo, novamente.

O que havia na gaveta? Nada, literalmente.

E-mail: prheuser@gmail.com

20.12.06

O Oráculo

O Oráculo
Publicada no jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul, em 27/12/2006
http://www.gazetadosul.com.br/default.php?arquivo=_noticia.php&intIdConteudo=67490&intIdEdicao=1042

Por Paulo Heuser

A vida de oráculo é difícil nesta época do ano. O número de consultas aumenta muito. A complexidade das questões, também. Somos o SPC das esperanças. O Ano Novo acabou se transformando em uma espécie de época de indulgências. As promessas não cumpridas acabam sendo esquecidas na virada do ano. As frustrações são zeradas durantes as orgias. São coisas do passado, do ano que passou. Tudo será diferente em primeiro de janeiro. Como sempre foi, nos anos anteriores. Não deu certo neste ano? Dará no próximo, com certeza. Se não der, joga-se para o seguinte.

O Ano Novo é uma barreira temporal que impede a perpetuação das coisas indesejáveis. Contudo, as pessoas não confiam cegamente no Ano Novo. Razão suficiente para consultarem os oráculos. E não é de hoje. No início dos tempos, os deuses respondiam às perguntas diretamente ao cliente, por meios às vezes estranhos. Através dos sonhos, por exemplo. Zeus resolveu delegar atribuições e passou a prever o futuro por meio dos humanos. Criou as figuras do chefe e do atravessador de adivinhações. Ele se manifestava aos sacerdotes, que deviam andar com os pés descalços, e não podiam lavar os pés. Terá também inventado o celibato, circunstancialmente?

Afrodite não gostava de dizer as coisas duas vezes. Lia o futuro nas entranhas e no fígado dos clientes. À pergunta sobre a vida após a morte, não havia de responder. O cliente obtinha a resposta antes desta ser revelada, durante o processo de obtenção do material para a leitura. Seus clientes nunca retornavam. Até que alguém teve a idéia de terceirizar essa parte do processo. Quem podia pagar por um, levava um escravo para fornecer o kit leitura. Quem não podia pagar, fornecia mesmo. Azar o seu, quem mandou ser pobre. Esperto mesmo foi quem passou a levar pombos e outros animais. Garantia uma certa sobrevida, apesar de postergar a resposta à pergunta sobre a vida além da morte.

O oráculo de Delfos foi mais um exemplo de empreitada que cresce até que a concorrência também cresce. Foi muito popular até o período cristão. Apolo, o dono do lugar, havia contratado uma intérprete – a pítia. Pois os cristãos a difamaram. A acusaram de histeria e de ser usuária de drogas. Apolo acabou contratando Putarco, que se tornou gerente do templo.

Hoje os tempos e os templos são outros. Não se faz mais necessário sacrificar animais, nem o permitem. As perguntas também são outras. Algumas nem consigo entender. Outras carecem de seriedade. Noutro dia, um sujeito apresentou a seguinte questão: “os calvos têm melhor desempenho sexual?” Deu vontade de responder de acordo com o que veio à cabeça na hora. Mas, oráculos não podem ser sarcásticos, cínicos nem parciais. Devem consultar os deuses e transmitir as respostas, nuas e cruas. Somos apenas intermediários. Na semana passada um sujeito importante, um cônsul, perguntou sobre o máximo aumento, do próprio salário, permitido pelo povo, sem provocar uma revolução. Transmiti a questão, recebi a resposta e a repassei. Coisa simples, na verdade. Não entrei no mérito. Responderam na forma de um cálculo matemático: 367-350=17. Cabe ao cliente interpretá-la.

Se eu trabalho com Apolo? Não, Apolo se foi há muito. Google tomou o seu lugar. Não só em Delfos, em toda parte.

E-mail: prheuser@gmail.com

19.12.06

Extra, extra, extra...

Extra, extra, extra...

Por Paulo Heuser

Raimundo lia as manchetes da manhã, naquela rápida passada de olhos pelos jornais, sem grande compromisso com a leitura. Informação rápida, sem pretensão. Ele gosta de sair de casa informado, mesmo que sem detalhes. Estes ficavam para a noite, quando se torna mais crítico e mais seletivo. Horóscopo, não lê. Não se prende muito na seção de cultura, revoltado pelo que anda ocorrendo na cultura. Cansou dos discursos do ministro, que sempre começam, continuam e terminam, com um “Abiba êba, aiaiaiaiaaaaaaaaaaai”. Musical, pero no consistente.

O gole da coca-cola se entalou na garganta, ficando naquele vaivém que acende todos alarmes internos. São os breves momentos em que perdemos as boas maneiras e entregamos o timão ao instinto, que faz o que bem entende para resolver o impasse. No caso em questão, Raimundo acabou engolindo parte da coca-cola, borrifou a mesa e o jornal com outra parte, enquanto os gases saíram pelo nariz e demais orifícios próximos. Coca-cola no café da manhã é muito boa, desde que não se leia determinadas partes do jornal. Foi o erro de Raimundo. O motivo do engasgo foi a manchete colocada frente aos seus olhos, ainda lacrimejantes pelo gás carbônico que afluíra involuntariamente pelos orifícios e trompas: “Caçador atropela veado hermafrodita de sete patas”. O choro gasoso, carbônico, e involuntário, deu lugar à gargalhada compulsiva e espasmódica, igualmente involuntária.

Nunca vira manchete mais ridícula. Ficou imaginando como o jornalista escrevera tal coisa. Pela primeira vez na vida, concordou com a necessidade de um diploma em jornalismo para exercer tal profissão. Faz-se necessário muito estudo, para conceber uma manchete como essa. Por três vezes tentou ler a notícia, sempre interrompido pelos novos espasmos de riso. Conseguiu lê-la apenas na quarta tentativa, apesar da visão embaralhada pelas lágrimas. Teria o vivente ido caçar na Ilha do Doutor Moreau (1896), ciceroneado pelo personagem Edward Prendick, de H.G. Wells? O Papai Noel estaria fazendo manipulação genética nas renas, obtendo veados mutantes? Ou então, teria o ET de Varginha reaparecido para as festas de Natal?

Quando a visão embaraçada o permitiu, Raimundo conseguiu ler o texto da notícia. Um sujeito chamado Rick Lisko atropelou o mutante. Não poderia deixar de jogar no 24. O fiscal Doug Bilgo atendeu a ocorrência, em Mud Lake, Osceola, EUA. É raro encontrar tal sucessão de nomes improváveis. Edward Prendick parece bem mais verossímil. Raimundo imaginou que Lisko e Bilgo poderiam ser personagens de algum seriado de tv infantil, como Jambo e Ruivão (Ruff and Reddy) ou, para os mais jovens, Timão e Pumba (Timon and Pumba). Talvez conseguissem destronar o Pee Wee Herman, certamente a coisa mais ridícula que já povoou o planeta tv.

Raimundo preferiu não se servir de outro copo de coca-cola antes de terminar a leitura das manchetes, por precaução. Ele ficou pensando por que ainda não inventaram o café com gás. Roubariam algum mercado da coca-cola, pelo menos no café da manhã. Pizza fria amanhecida, ao alho e óleo, e café com gás, que combinação fantástica! Azia matinal para viagem. Blurrrrp! Deve ser porque o gás carbônico não se dilui na água quente. Que se tome o café gelado, então. Para arrematar, olina com gás, a gás-olina. Aí estava algo para se pensar. Homem de mercado, Raimundo fez algumas anotações. Com 22% de álcool?

Apesar de quase engasgado, Raimundo relaxou. Aquela sessão de gargalhadas lhe lavara a alma. Fechou o jornal, pois nada mais leria naquela manhã. Deixou de ler a próxima manchete: “Rebelo descarta revisão de reajuste”. Outra história insólita vivida por personagens com nomes improváveis?

E-mail: prheuser@gmail.com

18.12.06

Newton e o Presidente

Newton e o Presidente

Por Paulo Heuser

Hoje já mencionei duas vezes o nome de Isaac Newton (1642-1727). A primeira foi em um e-mail, o primeiro da manhã, ainda antes do café. A segunda, em conversa pós-almoço – é um ótimo assunto para ajudar na digestão. Esta é a terceira, no pós-jantar. Faço as refeições com Newton? Pedro negou conhecer alguém, por três vezes, mas ceou com ele. Falo em Newton pela terceira vez, todas pela admiração que nutro por ele. Newton foi um filho de agricultores, nascido no dia de Natal, em 4 de janeiro de 1643, em Woolsthorpe, Inglaterra. Enlouqueci completamente? Não, foi o calendário quem enlouqueceu.

O Papa Gregório XIII implantou o Calendário Gregoriano, em 1582, para corrigir algumas anomalias do Calendário Juliano, vigente até então. Dez dias foram suprimidos, na conversão de um calendário para outro. Há quem diga que a mudança foi realizada para evitar que a Páscoa cristã caísse junto à Páscoa judaica - o Pessach. A Inglaterra, país não-católico, somente implantou o Calendário Gregoriano em 1752. Nesse ano, o calendário pulou de 4 de setembro (quinta-feira) para 15 de setembro (sexta-feira). Assim se explica a confusão na data de nascimento de Newton. Aqui, nos dias de hoje, far-se-ia qualquer coisa que redundasse em um grande feriado.

As contribuições de Newton à Física e à Matemática são inquestionáveis. O livro Philosophiae naturalis principia mathematica (1687) é considerado a maior obra científica já publicada. Na opinião dos físicos, é claro. Nessa obra estão as três leis de Newton – estudadas já no Ensino Médio – e os princípios do Cálculo. Newton formulou também a Teoria Gravitacional. Fez inestimáveis descobertas no campo da Ótica, como a constatação de que a luz branca era composta de vários raios, refratados em ângulos diferentes, conforme sua cor (comprimento de onda).

Há outros nomes importantíssimos, como o escocês James Maxwell (1831-1879), que transformou uma salada de frutas de eletricidade e magnetismo em um suflê eletromagnético que explica a propagação da luz no vácuo. Ele demonstrou que a luz é uma combinação de campo elétrico e campo magnético. É de Maxwell a equação considerada a mais bela da Física. Falando de equações, é impossível não nos lembrarmos de Albert Einstein (1879-1955), pai da equação mais famosa do mundo, igualando a energia ao produto da massa pela velocidade da luz elevada ao quadrado. Na verdade, há ainda muitos outros nomes a lembrar, todos merecedores de admiração, como Hook, Laplace, Boltzmann e Planck.

Dentre todos, continuo admirando mais a Isaac Newton. Talvez ele fosse um dos poucos, senão o único, a explicar o estranho fenômeno do desvio cromático, para longe do vermelho, que ocorreu com o Presidente. Bem ao contrário do esporte, onde ocorreu forte desvio para longe do azul, na direção do vermelho. Este, bem explicável e justificável, por qualquer leigo. Se aceitarmos a explicação oficial, ainda não provada cientificamente, há indícios de que tendemos para o azul, na medida em que envelhecemos. Senão, temos algum problema. Devo andar pelo violeta. E a torcida do Grêmio deve ter envelhecido um bocado no domingo pela manhã.

E-mail: prheuser@gmail.com

15.12.06

Uma Crônica Natalina

Das Crônicas Raimundianas XI – Uma Crônica Natalina

Por Paulo Heuser

Raimundo fica estressado a cada novo final de ano. Não só ele, mais de 90 por cento da população. Os outros 10 por cento estão em coma alcoólico. O homem deve gostar do estresse, senão mudaria seu comportamento nessa época. O Velho, sogro do Raimundo, tem uma teoria particular sobre essas épocas. Ele acredita que o estresse urbano natalino substitui o estresse das batalhas que o homem travava contra inimigos ancestrais. Na falta de tigres dente de sabre, tiranossauros e troianos, luta ferozmente contra seus pares. Passada a guerra de fim de ano, todos voltam para algo próximo do normal.

Na última reunião da Cotra, holding do grupo controlado pelo Raimundo, o assunto estresse voltou à baila. O Velho soltou uma baforada alegórica e falou:

- É como eu digo, o negócio é tirar férias e sumir em dezembro.

- Começo a lhe dar razão, meu sogro. Fico pensando se não há meio de canalizar o estresse para algo produtivo.

- O cinema já o fez – disse Zé Tongo. -, há dezenas de filmes sobre o estresse de fim de ano.

- Filme se vê uma vez e já era. – interveio o Velho.

- Tem de ser algo mais duradouro, que prenda a atenção por mais tempo! – continuou.

- Como um seriado de tv? – inquiriu o Japa.

- Que tipo de seriado? – foi a vez de Raimundo.

- É tudo cópia de algo de fora. O Jô não copiou o Late Show do David Letterman, até na canequinha? E aqueles seriados, de gente competindo no mato, como Survivor? Sem falar dos Big Brothers, onde pagam para ver gente tomando banho e fazendo coco. Basta copiar um desses. – falou o Velho, enquanto soltava fumaça pelo nariz.

Raimundo teve aquela sensação estranha, aquela que precedia novas idéias de empreendimentos. A sensação de estar sentado sobre um pote de ouro, ainda sem poder tocá-lo. Aprendera, com o tempo, que devia persistir quando sentia essa cócega. A idéia veio enquanto pensava nisso, conforme prenunciava a cócega. Falou:

- É isto, os programas de sobreviventes e os reality shows provocam estresse, e o povo gosta de estresse. Vejam os parques temáticos que giram, espremem e jogam as pessoas de despenhadeiros. Elas gostam disso, e pagam pelo sofrimento, para depois sentirem o alívio.

- Vamos vender estresse! – completou.

- Essas velhas fórmulas estão muito batidas. Quem ainda quer ver casais embaixo de cobertores, fazendo fuxicos? Ou alguém comendo olhos crus de siri? – perguntou novamente o Velho.

- Temos de aproveitar o estresse local, os estrangeiros não rendem tanto. Basta que se faça uma lista das coisas mais estressantes no fim de ano. – entrou o Japa.
- Posso tratar disto.

Raimundo acenou afirmativamente e encerrou a reunião, convocando a próxima para a semana seguinte. Queria a participação da irmã do Zé Tongo, que estava em São Francisco, Califórnia, para tratar do arrendamento da Ilha de Alcatraz, onde a Cotra pretendia instalar o novo spa temático CotrAlcatraz, seguindo na linha de tratamento dos altos executivos estressados. Assunto para outras reuniões. Até a próxima semana, o Japa já teria concluído seu estudo psicomercadológico das fontes de estresse de fim de ano. Raimundo tinha suas próprias lembranças.

Durante seu período de desemprego, pré-Cotra, fora Papai Noel em um shopping de fábricas, no centro da cidade. A temperatura lá beirava os 40° C na sombra do telhado de zinco. Às 7 horas. Ele recebeu uma roupa vermelha, de tecido grosso, almofadas para aumentar a barriga, botas, gorro e barba postiça. Os primeiros 15 minutos foram bem toleráveis. Os seguintes, uma sauna. Quando a primeira hora passou, encerrou-se também a carreira noelina de Raimundo. Enlouquecido pelo calor, arrancou a roupa que voou para todos os lados, ante os olhares incrédulos das pestinhas que, havia pouco, recebiam pirulitos e outras fontes de cáries. A segurança do shopping teve um bocado de trabalho para contê-lo, enquanto bebia a água do relógio d’água que decorava o centro da praça de alimentação. Raimundo ainda acorda sobressaltado, em algumas noites de verão. Sonhava que um grupo de Papais Noéis tentava arrastá-lo de volta ao shopping, enquanto renas assistem à cena, dando gargalhadas. Sempre acorda gritando, todo suado, e sedento.

Raimundo tinha consciência de que nada mais poderia ser feito naquele dezembro. Teria de ficar para o ano seguinte. Poderiam fazer o trabalho de pesquisa de mercado, deixando a execução para o próximo ano. Agora, seria muito estresse. Um estresse adicional de fim de ano.
Nova reunião ocorreu na semana seguinte. A irmã do Zé Tongo foi a primeira a chegar. Raimundo aproveitou para interá-la sobre o assunto em pauta. Alcatraz ficaria para uma próxima reunião. Enquanto conversavam, chegaram os outros membros do Conselho da Cotra: Japa, Zé Tongo e o Velho.

Japa pareceu entusiasmado:

- Gente, há estresse em tudo relacionado ao fim de ano, a começar pelo Natal. Fiz uma pequena relação dos fatores estressantes:

1. Comprar presentes financiados, em lojas populares, no último sábado antes do Natal. Quanto mais andares a loja tiver, melhor. O financiamento deve ser pedido no balcão da financeira, não vale usar o cartão da loja.

2. Comprar lâmpadas de Natal em lojas de 1,99, na semana do Natal.

3. Montar as lâmpadas no pinheiro e fazê-las funcionar. Uma de duas situações sempre ocorre: ou as lâmpadas não acendem, ou metade pisca, metade não. Fica parecendo pinheiro de bordel antigo. Apesar de mandarem lâmpadas sobressalentes na caixa, nunca funcionam. E as explicações em mandarim, impressas na caixa, não ajudam muito.

4. Comprar um peru congelado, ou qualquer coisa assemelhada, na tarde da véspera de Natal, em um hipermercado popular. Perus são aves, ou pretendem ser, que reúnem todos os defeitos das demais carnes. São duras, secas e insossas. Nos últimos anos surgiram outras aves natalinas. Ninguém as viu vivas, até hoje. Devem nascer mortas e depenadas, já dependuradas nos ganchos das esteiras industriais. Aí se incluem fiesta, chester, e bruster, animais criados em laboratórios. Perus, pelo menos, fazem glu-glu, quando vivos. Essas coisas não cacarejam, nem piam. Nem gluginejam.

5. Assar o objeto da compra acima. Todos métodos de descongelamento parecem falhar, apesar do calor senegalês na data. Devido ao seu tamanho paquidérmico, essas aves, seja lá o que forem, não cabem no forno de microondas. O clima convida a assá-los no forno convencional, horas a fio.

Raimundo não pode deixar de se lembrar de um episódio ocorrido muitos anos antes, quando recém-casado. Passaria o Natal ao lado da sua querida mulher, somente os dois, romanticamente. Como o bolso estava curto, e Raimundo não era dado a desperdícios, comprara a ceia proporcional ao número de comensais - dois. Às 18 horas recebeu uma ligação, do sogro, o Velho, avisando que viriam para a ceia. O Velho foi logo avisando que não precisariam preocupar-se com nada, pois levaria tudo que era necessário para uma autêntica ceia de Natal: os charutos e a aguardente. Raimundo entrou em pânico. Correu ao supermercado onde havia perus congelados de ponta de estoque. Verdadeira barbada. Conseguiu sair de lá às 21h15. Feliz, pois conseguira garantir um dos últimos espécimes da raça.

Às 22 horas, toda família, inclusive os primos, olhava para o paquiderme semivoador congelado. Surgiram várias idéias. O Velho já havia preparado, e consumido, vários drinques especialidade de Natal. A receita é simples: num copo longo, daqueles de requeijão, colocar 250ml de aguardente e adicionar uma cereja artificial (bala de goma). Deixar descansar durante 15 minutos e beber na temperatura ambiente. Simples, mas natalino – por causa da cereja vermelha, necessariamente vermelha. O Velho insistia em usar o seu método, infalível. Já o teria utilizado em muitos outros Natais, apesar de nada lembrar no dia seguinte. O homem já estava chegando naquele ponto onde ninguém mais o contrariava.

O método era um assombro de imaginação. O homem era realmente criativo. Colocou o paquiderme semivoador congelado dentro da lava-roupas de Raimundo, ajustando o programa para água quente. Gastaria um monte de energia elétrica - pensou Raimundo -, mas, afinal, era Natal. Vá lá. Orgulhoso, pela idéia, o Velho acendeu outro fumarento charuto e convidou todos à sala de Raimundo.

– Deixem que a tecnologia faça o seu trabalho – dizia.

Já imaginava uma forma de apressar o assado, devido ao adiantado da hora. Algo a ver com o maçarico que Raimundo guardava no quartinho. Um pesadelo de cada vez – pensou Raimundo. Distraídos pelos drinques do Velho, e embalados pelo clima natalino, esqueceram-se de parar a lava-roupas antes dos ciclos de centrifugação. A coitada bem que tentou centrifugar o paquiderme semivoador, já não tão congelado. O terrível barulho de latas batendo tirou todo mundo do torpor abestalhado natalino pós-drinques especialidade em que se encontravam. Raimundo foi o primeiro a chegar na área de serviço, a tempo de ver a lava-roupas cruzando toda a extensão, em movimentos planetários. Quando a tampa se abriu, espirrou sangue do paquiderme em todas as direções, conferindo um ar todo natalino à cozinha. Do primeiro peru centrifugado ninguém se esquece. Da ressaca do drinque especialidade do Velho, também. Raimundo sentiu uma pontada na fronte, só de se lembrar.

6. Comprar cervejas em cascos retornáveis (de 600ml) em um hipermercado popular, na tarde da véspera de Natal e do Ano Novo. As filas para entrega dos vasilhames se estendem por meia quadra. Depois vêm as filas nos caixas. Há de se lembrar também da fila por uma vaga no estacionamento. Depois de tudo isto, basta gelar a cerveja, em 15 minutos, tempo para a chegada das primeiras visitas.

Raimundo lembrou-se das visitas que nunca estão satisfeitas com a temperatura da cerveja. Reclamam constantemente que estão quentes, mesmo quando congeladas.

7. Comprar um celular pré-pago, em oferta, na loja da operadora, na véspera do Natal.

8. Comprar lombo de porco no açougue da praia, no dia 31 de dezembro.

9. Almoçar em rodízios, no dia 25 de dezembro, às 13 horas.

10. Pegar a estrada para a praia em 31 de dezembro, em direção à Florianópolis.

11. Provar roupas de inverno nos provadores das lojas sem ar condicionado, sob a luz de lâmpadas dicróicas, no sábado anterior ao Natal.
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12. Atravessar o centro da cidade, a pé, através das ruas onde se concentram os camelôs.
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13. Comprar tênis, nas lojas de calçados, no dia 24 de dezembro.
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14. Evitar que os vizinhos de praia consigam explodir sua casa, durante as comemorações pirotécnicas. Alguns começam a explodir coisas na semana anterior, terminando meses após o Ano Novo.

Raimundo lembrou-se de veraneios na praia de Bombinhas, Santa Catarina, onde um louco soltava foguetes de hora em hora, dia e noite, com sol ou chuva. Lá se podia ajustar o relógio pelas explosões. O padre iniciava a missa na explosão das 18 horas, terminando-a na explosão das 19 horas. Os mercados abriam as portas na explosão das sete, cerrando-as na explosão das 22. Seria uma equipe de loucos, trabalhando em turnos? Agora, Raimundo se dava conta de que nunca ouvira um sino lá. Seria o padre?

Lembrou-se também do cachorro de um parente, que ficava completamente neurótico – o cachorro -, com as explosões dos fogos de artifício, na passagem do Ano Novo. Na tentativa de acalmá-lo, lhe deram generosas doses de uma infusão de melissa, planta arbustiva da família das Labiadas. Deu o maior barato no animal, que passou a andar de lado, feito caranguejo, tentando subir pela parede. Antes da meia-noite, as ruas da praia já lembravam as trincheiras de Champagne, na França, em 1915. O cheiro de pólvora impregnava o ar e a fumaça embaraçava a visão. De Champagne também vinha o líquido que embaraçava a visão de poucos afortunados. O da maioria, vinha de Garibaldi. Só faltava o gás mostarda, apesar de o condimento estar presente em muitas mesas. Durante a passagem da meia-noite, o céu explodia em sons e cores. Pareceria natural, se soldados franceses e alemães surgissem repentinamente das sarjetas, empunhando fuzis com baionetas e vestindo estranhas máscaras contra gases. Enquanto os cachorros subissem as paredes, andando de lado.

- Além das fontes de estresse desta relação, há ainda aquelas relacionadas ao deslocamento pelas cidades, nesses dias. – completou o Japa.
– levam-se horas para percorrer centenas de metros, seja a pé, seja de carro. O calor torna penosas as caminhadas, desviando de obstáculos de toda sorte.

- Pimenta no dos outros é refresco no da gente – atalhou o Velho -, vamos criar um programa ao estilo Survivor (Sobrevivente), para acompanhar os pobres concorrentes, nas peripécias de fim de ano. Quem a ele assistir, sentirá uma cumplicidade com os protagonistas, até por passar pelo mesmo sofrimento, na vida real.

Todos concordaram com a idéia. Chamaram o empreendimento de Projeto Boas Festas. O Zé Tongo e a irmã passaram os últimos dias do ano realizando pesquisa de campo. Passaram o mês de dezembro na Capital, indo até o litoral no Ano Novo. Conseguiram coletar material para montar o piloto da série. Reuniram o Conselho diversas vezes, até haver consenso quanto à estrutura do programa. Seria um programa de aventura, rodado na Capital. As tarefas de cada etapa foram planejadas ao longo do seis primeiros meses do ano, com base no levantamento feito pelo Japa. Em agosto iniciaram a seleção dos concorrentes, escolhidos a esmo. Quem topava, levava. A idéia básica era selecionar pessoas do povo, completamente autênticas e naturais.

Optaram por realizar todas tomadas ao vivo, para evitar vazamento precoce do teor das tarefas. Tornaria a coisa mais espontânea. Decidiram também contratar um apresentador famoso, já com alguma experiência nesses eventos.

Em outubro começou a campanha publicitária da série Sobrevivente!. Sem tomadas externas, para não dar pistas sobre o programa. Os candidatos selecionados a esmo compunham um grupo bem diversificado.

Dona Eulália fora escolhida no supermercado. Xingava o atendente do açougue, quando foi abordada pelo pessoal da produção. Passou a xingar também o entrevistador, acreditando se tratar de um golpe qualquer. Mulher na casa dos 60, forte, muito alta, decidida, Dona Eulália era o tipo de pessoa que não filtra o que vai da mente à verbalização. Realmente não tinha papas na língua, apesar de tê-las em abundância sob o queixo. O cabelo no estilo “escova para limpar canhão” lhe conferia um ar ainda mais severo, emoldurando a fronte vincada. Casada com o pacato Onofre, mãe de dois filhos, avó, Dona Eulália transmitia a imagem da dona de casa que comandava um regimento de familiares submissos e omissos. Resolvia tudo no peito e no papo, enquanto o pacato Onofre balbuciava algo inaudível, sacudindo a cabeça.

Carlos foi abordado na loja de ferragens, num sábado pela manhã, enquanto comprava pregos. Comprou 100 gramas de pregos, examinando um a um, verificando se nenhum estava torto. Contabilista de profissão, Carlos era um homem meticuloso. Vestia-se de modo absolutamente compatível com a imagem de um austero contabilista. Calças de tergal cinza, camisa creme e sapatos clássicos. Três canetas no bolso da camisa e óculos de armação pesada completavam o ar de quem crê que zero realmente fecha zero. Carlos estava na meia-idade, seja qual fosse esta. Nunca casara, pois não encontrara uma mulher que desse o devido valor aos zeros que fechavam os zeros dos seus balanços. Morava com a mãe, exímia doceira artesanal.

Alexandre foi abordado no sinal. Estava entregando uma pizza, medicamentos, um poodle e três plantas baixas. Motoboy de profissão, ele vestia-se de acordo com a moda skatista pós-urbano gótico – roupa folgada e tênis com bordas de quem está chutando tudo. Magro, com a pele morena do sol e da fuligem do trânsito, completara 20 anos. Encarou a proposta como encara a vida – um desafio a cada esquina, e vários entre estas.

Ana pensou em fugir, apressando o passo, quando o pessoal da produção a abordou na saída do cursinho pré-vestibular. Nada deveria desviá-la da sua meta: o curso de Parapsicologia Noturna. Filha de Ageu, leitor fanático da revista Planeta, ela desde cedo mostrou vocação para as ciências não tão visíveis. Teve um amigo imaginário, na infância. O tal do amigo aprontava horrores, cabendo a culpa à meiga Ana. Até que ela explicou a situação, apresentando o amigo imaginário à família. A partir de então, todos passaram a repartir a culpa pelas peraltices de Blender, o Imaginário. Segundo uma tia-avó, Blender seria a encarnação virtual do Tio Ernípedes, ovelha negra da família. Fora um homem terrível, sempre pregando peças nos outros. Esquecia também de pagar as contas. Agora encarnara virtualmente no amigo imaginário da meiga Ana.

A primeira manifestação de Blender ocorreu quando Ana recebeu um caderno de uma colega de escola, para escrever um poema meloso de adolescente. Ana escreveu algo realmente meloso, cercado de corações cor-de-rosa e borboletas primaveris esvoaçantes, perfumando a folha com uma fragrância floral, típica das meninas da idade. Paralelamente, Blender encheu a folha seguinte do caderno com obscenidades e derramou extrato de salgadinho de bacon sobre o papel. Quiseram internar Ana em um colégio para alunos especiais. Graças a Deyse, orientadora metapedagógica da escola, que acreditou na hipótese Blender, Ana passou a ser vista como uma aluna como qualquer outra, que conta com a amizade de um amigo imaginário. A descoberta da inocência da meiga Ana foi festejada por toda vizinhança. Difícil foi conter Blender, que continuou aprontando das suas.

Marcelo tomava uma cerveja, em um bar da moda, quando foi convidado a participar do programa. Sujeito atlético, jovem, fazia o gênero metrossexual. Unhas bem aparadas, sapato estilo Ali Babá, corpo sarado e produção impecável. Ali estava um homem de bem com a vida. Bem sucedido profissionalmente, recém entrado nos 30, Marcelo mantinha apenas namoros superficiais. A vida ainda tinha muito a lhe oferecer antes que se comprometesse de forma mais definitiva. Pois a mesma vida lhe oferecia agora esse desafio. E uma oportunidade de aparecer na tv durante alguns dias. Nada mau para a imagem. Autoconfiança é o que não lhe faltava.

O que mais atraía os candidatos, era o prêmio, sem dúvida. Quinhentos mil reais. O pessoal da produção procurou não apelar para tipos muito pobres, estilo coitadinho semi-analfabeto, nem tipos estranhos demais, apesar de Blender se enquadrar neste adjetivo. Mas, como era um sujeito imaginário, a escolha de Ana foi mantida.

Em 15 de dezembro, um sábado, o piloto do programa foi ao ar. Após aquelas apresentações de praxe, Donaldo Trampa, o famoso apresentador desse tipo de programa, explicou o primeiro desafio aos participantes. Deveriam embarcar no ônibus da linha Tabatinga ao Centro, carregando uma caixa com doze bolas de Natal. Chegando ao Centro, iriam percorrer o camelódromo, sempre carregando as bolas de enfeite e uma placa de isopor tamanho 1 x 1,5 metros. Após o camelódromo, desceriam a Rua dos Caminhadas, em direção à Praça da Aduana, berço de ótimas lojas de 1,99, onde comprariam um conjunto de 1000 lâmpadas decorativas com 32 modalidades de pisca-pisca. A seguir, retornariam à Vila Tabatinga, através do mesmo coletivo. Lá, além da verificação do funcionamento do conjunto de lâmpadas, seriam feitas a contagem das bolas de enfeite, e a medição da superfície restante da placa de isopor. Quem conseguisse fazer as lâmpadas funcionar, piscando todas no mesmo ritmo, tivesse mais bolas intactas, e a maior superfície de placa de isopor, venceria a prova. Tudo narrado e calculado pelo Donaldo Trampa. E planejado pela irmã do Zé Tongo. Para aumentar a audiência, rodaram o programa às 10 horas e transmitiram após a novela das oito. Não fora ao vivo, moribundo na melhor das hipóteses.

O ônibus deixou a Tabatinga carregando nosso plantel de concorrentes, dois câmeras, um narrador, e 47 passageiros civis. Cada candidato carregava sua caixa de papelão macio, contendo as bolas de Natal, de vidro fino. Donaldo Trampa ficou aguardando no Centro. Temia perder a peruca no interior do coletivo. Tomava muito cuidado com a imagem. Alguns meses antes fora acusado de usar peruca. Tivera de colá-la e aparecer em público dando puxões nela, para desmentir os boatos. Somente permitiram o embarque dos candidatos no ônibus quando todos assentos já estavam ocupados. O dito cujo ficara ao sol, tornando a atmosfera interior algo próxima da temperatura em Mercúrio, durante o dia.

Dona Eulália não era nada baixinha. Muito antes pelo contrário. Segurava a caixa de bolas de Natal com um braço, enquanto agarrava-se a uma poltrona, com o outro. Após 50 metros, primeira parada. Subiram umas 10 pessoas, inclusive um vendedor de camisetas de Liga Feminina Alternativa de Combate ao Câncer. Trouxe o mostruário a bordo, montado. Dona Eulália protegia a caixa de ovos, digo, de bolas como podia. Experiente, se dirigira imediatamente à saída, ficando pelas proximidades. Não tardou para que alguém se levantasse, sobrando um lugar. Quando Dona Eulália sentou, um rapaz fez o mesmo, no mesmo assento. Ela foi mais rápida, e mais pesada, empurrando o adversário, na luta pelo assento, para o corredor. Ouviu-se um plec, por trás do ruído do ônibus. Menos uma bola, restaram onze.

Marcelo aproveitou a maior estatura para proteger seus ovos, digo, bolas, no alto do ônibus. Acostumado a andar de carro, picava de um lado para outro, dando encontrões em tudo e em todos. Os sapatos Ali Babá não ajudavam em nada a árdua tarefa de permanecer de pé no corredor. Quem anda freqüentemente de ônibus tem jogo de cintura, acompanhando os movimentos laterais e longitudinais. Procurava resguardar suas calças de linho branco, que recebiam manchas de diversos tons de preto e marrom, a cada batida nos encardidos assentos. Todos que entraram nas paradas seguintes, nas 42 seguintes, traziam algo para vender, aparentemente. E o espaço foi encolhendo, a ponto de não haver onde pisar. Um sujeito avesso aos desodorantes e aos banhos pendurou-se no cano ao lado de Marcelo, encostando a axila molhada na camisa de seda do concorrente, que começou a ficar nauseado. A mistura do cheiro, calor e sujeira, começou a fazer efeito.

Alexandre estava no seu habitat. Morava na Tabatinga e com freqüência, quando levava algum tombo maior, deslocava-se ao Centro usando o ônibus. Proteger as bolas não foi problema, gingando entre os obstáculos humanos e inanimados. Esperto, trouxera o capacete, colocando as bolas no seu interior.

Carlos passou a viagem toda reclamando das condições do veículo, ameaçando denunciá-los à secretaria municipal competente. Educado na forma antiga, dava lugar às mulheres, não ficando sentado, portanto. Não teria tido maiores problemas, se não houvesse esbarrado na caixa de bolas da Ana, quando esta se sentou. Ana deixou passar sem protestos, ainda mais que nenhuma das bolas de Natal foi atingida. Quem não levava desaforo para casa, nem bolas ameaçadas, era o Blender. De pavio extremamente curto, Blender vingou-se de pronto, acendendo um fósforo e colocando-o no bolso da calça de Carlos. A calça de Tergal começou a fumegar, enquanto Carlos dava tapas para apagar o princípio de incêndio, soltando a caixa de ovos, digo, de bolas. A caixa caiu no corredor, imediatamente pisoteada pelos passageiros que tentavam se afastar do incêndio. Oito plecs anunciavam que dois terços da caixa de Carlos haviam sumido. Ele imediatamente contabilizou o prejuízo, inclusive o furo de bordas irregulares na calça. Disse ao cobrador que pediria indenização à empresa concessionária do trajeto.

Ana ficou quieta, por todo o trajeto, sentada com todo conforto que o velho ônibus permitia. Sorria meigamente. Até que ela tentou conter o Blender, que fez ouvidos moucos à solicitação. Peralta incorrigível, logo aprontou outra. Passou uma rasteira não-imaginária no cinegrafista que passava ao lado do assento de Ana. O coitado perdeu o equilíbrio e deixou a câmera cair sobre a infortunada caixa de bolas do Carlos. Mais três plecs anunciaram a proximidade do fim da carreira deste. Agora Carlos segurava a caixa com a bola restante com todo cuidado, enquanto dizia que processaria o canal de tv e a Cotra, por danos físicos e morais. Ana seguia sem dar um pio, alheia à confusão causada pelo seu amigo imaginário. Com todas as bolas inteiras. E um sorriso meigo no rosto.

A essas alturas, o ônibus já estava chegando ao Centro. Entrara naquele trânsito denso de vai, não vai. O calor era tanto, que Marcelo teve medo de que os seus ovos chocassem. Os ovos não, as bolas. Ele conseguira colocar a cabeça no vão formado pela clarabóia do teto do ônibus. Assim, pelo menos os miolos recebiam um pouco de ar. Até que o arrastão começou. Três pivetes entraram no ônibus, assaltando todos os passageiros. Todos não, graças ao Blender, que salvou Ana. Ele espirrou tinta em spray nos olhos dos pivetes. Para sorte deles, não conseguiu riscar o fósforo a tempo. Os três pequenos meliantes deixaram o coletivo uivando de dor. A meiga Ana fora salva pelo herói imaginário. Blender sempre carregava uma lata de tinta, na bolsa da Ana, para o caso de surgir alguma oportunidade de pichação.

Na correria, Carlos teve sua última bola esmagada. Fim prematuro de uma duvidosa carreira. Deixou o maldito ônibus, sentindo um misto de frustração e extremo alívio. Deixou também a carteira e o relógio, levados por alguém que tirou proveito do pânico e da confusão, levando os pertences deixados para trás pelo trio dos olhos de fogo. Blender, o Imaginário, piscou marotamente para Ana, enquanto sussurrava – menos um!

As bolas do Alexandre sobreviveram à confusão, pois estavam bem protegidas dentro do capacete. Ele já estava ansiando pela volta ao aconchego do trânsito urbano, após o sururu a bordo. Alexandre começou a olhar com uma certa desconfiança para Ana. Algo ali não batia bem. Ela permanecia sentada com um sorriso de Gioconda, mesmo após o traumático episódio do assalto frustrado. O resto da viagem ao Centro não foi documentado, pois alguém levara as câmeras. Ficaram todos na parada seguinte, esperando a chegada de duas novas câmeras e dois novos cinegrafistas. Os atuais se recusaram a seguir viagem. Achavam mais tranqüilo trabalhar em Bagdá.

Dona Eulália estava furiosa. Aliás, muito furiosa, pois furiosa sempre estava. Perdera sua bolsa de palha da feira, com a carteira no seu interior. O máximo que conseguira de reação foi espetar a sombrinha nas costelas de um dos meliantes. Malditas sombrinhas chinesas, quebravam-se antes de furar o adversário. Ainda tremendo, ela amaldiçoava os assaltantes e o governo de Luiz XIII, o Destro, pela situação. Ao seu lado, Blender, o Imaginário, lia uma biografia de Vlad, o Empalador.

– Sujeito empreendedor – pensou ele.

A xingação de Dona Eulália lhe tirara a concentração na leitura. Para interrompê-la, deu uma beliscada no amplo traseiro dela. Enfurecida, Dona Eulália virou-se e arremessou a caixa de ovos... bolas contra Carlos, que esperava um ônibus para voltar para casa. Oito plecs anunciaram que restavam apenas três bolas na caixa de Dona Eulália.

– Matei oito coelhos e um contabilista, com uma só beliscada – gritou Blender, enquanto dançava em círculos. Ao seu lado, Ana continuava impassível, com aquele meigo sorriso estampado no lindo rosto. Agora Dona Eulália xingava os pivetes, o governo e os contabilistas.
Quando os novos cinegrafistas chegaram, o pessoal embarcou no próximo ônibus, somando-se aos 92 passageiros que lá já estavam. Carlos voltou para casa a pé. Não conseguira dinheiro emprestado para voltar de ônibus. Melhor assim, seria menos perigoso. Dona Eulália ficou indignada com o pedido de Carlos, passando a xingar os pivetes, o governo, os contabilistas e os contabilistas pedintes, nesta ordem.

No interior do coletivo as coisas seguiam seu caminho. Os cinegrafistas filmavam uma interminável sucessão de mãos agarradas aos canos no teto do ônibus. Ana conseguiu sentar-se logo após o embarque. Graças ao Blender, novamente, que jogou um fósforo aceso dentro da bota de um operário que viajava sentado. Quando o sujeito saltou, desesperado, Ana sentou-se, rapidamente. Com as 12 bolas intactas. E o sorriso nos lábios. Marcelo foi outro que começou a olhar desconfiado para Ana. Aquela menina aparentava a profunda tranqüilidade do microssegundo infinitesimalmente anterior à explosão de uma bomba atômica. O olhar desconfiado de Marcelo não passou despercebido. Blender o notou, e agiu. Sorrateiramente, em movimentos dignos de um felino na caça, ele conseguiu amarrar os cadarços dos sapatos Ali Babá de Marcelo, um no outro, voltando rapidamente para o seu lugar, lugar nenhum.

Ao lado de Marcelo, ainda de pé, Ana continuava sentada, sorrindo meigamente. Ainda de pé não durou muito. Na primeira pisada no freio do ônibus, Marcelo tentou colocar um pé à frente. Este não foi, amarrado ao outro. Como não conseguiu colocar os dois pés à frente, o momento inercial levou a parte superior do seu corpo à frente, junto com as de mais uns 53 passageiros, involuntários participantes de um imenso jogo de queda de dominó. O cobrador do ônibus estava muito admirado com o efeito conseguido por Marcelo. Conseguira fazer o que ele vinha tentando, havia mais de 40 minutos, sem sucesso, através do tradicional: - Mais um passinho no corredor, por favor! Dois plecs, em meio aos protestos, anunciaram que Dona Eulália estava a uma bola de deixar a competição. Seria a bola da vez. Passou a xingar os pivetes, o governo, os contabilistas, inclusive os pedintes, e Isaac Newton.

Os cinegrafistas conseguiram registrar a confusão. Isso daria um bocado de pontos no Ibope. Alexandre acordou de sopetão, estava dormindo pendurado no poleiro, feito morcego. Esta era uma habilidade adquirida após anos de viagens em pé. O inconsciente mantinha, além das funções vitais, também aquelas relativas ao equilíbrio dentro de um ônibus lotado. Pedro, o motorista, tinha um bom emprego na empresa de transportes concorrente. Até que trocaram os velhos ônibus por novos, com câmbio automático e ar-condicionado. Pedro pediu demissão, pois dirigir coletivos não tinha graça sem as arrancadas e freadas bruscas. Gostava de sentir a massa se deslocando, para frente e para trás. Sentia um grande poder ao soltar o pedal da embreagem. Gostava mesmo era do efeito chicote, quando freava logo após acelerar, e vice-versa. Esses novos ônibus eram coisa de maricas. Saudoso, Pedro ainda lembrava das plaquinhas que pediam: “Fume somente cigarros de papel” e “Não fale com o motorista”. A primeira era um convite para que fumassem palheiros a bordo. A segunda, um convite ao bate-papo. Pedro gostou do tsunami humano provocado pelo Marcelo, com a inestimável colaboração do Blender. Nem sempre conseguia tal efeito. Pensou que deveriam levar esse sujeito aos jogos de estádio, para fazer a ola.

Meio-dia, chegada ao Centro, em meio àquela atmosfera de Bagdá. Ana conseguiu desembarcar em tempo recorde. Blender insinuara que ela não estaria se sentindo bem, estaria muito enjoada. Toda massa humana que a separava da porta de saída sumiu em uma fração de segundo. Havia gente dependurada pelas mãos e pelos pés nos poleiros do teto. Eram 117 os passageiros, quando da chegada. Dona Eulália xingava agora também o seu Onofre, o marido, por omissão:

– Se fosse homem mesmo, estaria aqui, no meu lugar, para enfrentar esses ladrões, esse governo, esses contabilistas, esses pedintes, e esse tal de Níuton. O frouxo vai assistir pela tv, lá de casa! – O pessoal já estava solidário com o Seu Onofre, pensando em lhe comprar um pijama listado e pantufas novas.

Marcelo desceu aliviado do ônibus, apesar dos seis plecs saídos da sua caixa de bolas. Conseguia respirar novamente. A mancha roxa do olho, resultado de uma agressão sofrida por ter iniciado involuntariamente o tsunami coletivo, não o preocupava tanto. Seus sapatos pareciam maiores, devido ao rompimento dos cadarços. A parte posterior do sapato adquirira vida, movimentando-se por vontade própria. Não seria isto que o tiraria da competição. Nem o odor de axilas alheias que exalava da sua camisa de seda. Por um momento, jurou ter visto Ana lhe dar uma olhada de esguelha. Agora estava parada, sorridente, e assistindo a tudo. Não parecia estar enjoada.

Reunido o pessoal, contabilizados os ovos – que sejam ovos de pinheiro –, receberam os envelopes com as novas missões.

Dona Eulália recebeu com evidente satisfação as novas missões, pois adorava camelôs e uma loja de 1,99. Comprava colares de havaianas para enfeitar o pinheiro de Natal e guirlandas de Natal para o colar das fantasias de havaiana, do Carnaval das filhas. Calculadoras chinesas eram irresistíveis. Dona Eulália já contava com 17 na coleção. Todas iguais. A nova missão não era um desafio, era uma diversão! Ela aproveitaria para comprar mais algumas coisinhas, como uma trena nova, para fazer o papel de varal, e fósforos de segurança, à prova de fogo.

A presença dos cinegrafistas causou sensação, no já conturbado Centro. Multidões que andavam sem destino acabaram formando um enorme círculo ao redor dos competidores e jornalistas. Quando a turba identificou Donaldo Trampa, apesar de este estar disfarçado de dono de hotel-bingo, começou o coro: “Peruca... peruca... peruca...”. O povo não perdoa mesmo. Raimundo esperava o tradicional gesto de puxar os cabelos, digo, a peruca, para tentar provar que se tratava de cabelo natural. Não sabia que a coisa estava colada apenas com escorega, adesivo para dentadura, devido à urticária alérgica da cola instantânea utilizada anteriormente. Trampa apenas fez alguns gestos imitando puxadas de cabelo, mas não os puxou realmente. Ana continuava sorrindo meigamente, parada atrás de Donaldo. Talvez foi por isso que ninguém percebeu o gesto rápido de Blender, arrancando a peruca de Trampa. O povo foi ao delírio. Era tudo o que queriam. Se encerrassem a campanha naquele momento, já teriam lucro. E Ana continuava sorrindo, atrás do desenxavido Trampa, que tentava ajeitar novamente a peruca. Na afobação, a colocou virada, aumentando mais ainda o ridículo da cena. Donald Trampa ficara com um topete misto de Elvis e um cão Yorkshire. Acabou fugindo para o interior de uma perua da produção, sob gritos de “Tira... tira... tira...”.

Ana não parou de sorrir quando recebeu sua placa de isopor. Como os outros, segurava a caixa de bolas numa mão, a placa de isopor na outra, colocando-a contra o corpo, lateralmente. Nesse momento, o escore de bolas era:

Alexandre: 12
Ana: 12
Blender: vide Ana
Carlos: 0 (eliminado)
Dona Eulália: 1
Marcelo: 6

Registrado o escore parcial, saíram em direção ao camelódromo, agora a pé.

Alexandre mostrou toda a ginga de quem dribla a tudo e a todos no trânsito. Atravessar o camelódromo carregando um capacete cheio de bolas e uma placa de isopor era coisa de principiante. Motoboy que se preze gosta de carregar um botijão de gás em um dos braços e um criado-mudo no outro. Enquanto pilota a moto com os dentes. A passagem pela área dos CDs e DVDs falsos foi o primeiro desafio, mediano. Realizando um verdadeiro ziguezague, conseguia desviar dos vendedores corpo-a-corpo.

Marcelo enfrentou um pouco mais de dificuldade, devido à altura e o corpo sarado. Perdera um pouco da elasticidade e da ginga necessárias para driblar os camelôs. Descobriu porque se chamam vendedores ambulantes. Andam de um lado para o outro, ora perseguindo potenciais clientes, ora fugindo do rapa. Na seção de DVDs falsos em lançamento, não conseguiu desviar do vendedor que lhe oferecia o pré-lançamento da pré-estréia do Código da Vinci 2 – A Vingança da Madona, dublado pelo DJ Buldogue Gordo, em ritmo de rap. Os sapatos, sem cadarços, não ajudaram. A parte frontal, Ali Babá, permitia que o pé dançasse dentro do sapato, lateralmente. Marcelo virou o pé à esquerda, o sapato seguiu em frente, na direção do vendedor. A colisão foi inevitável, e mais dois plecs foram ouvidos, restando-lhe quatro bolas. A placa de isopor quebrou-se ao meio. Ele escolheu o maior pedaço, deixando o outro, para diversão da meninada da praça. Com quatro bolas, meia placa de isopor, um olho roxo e princípio de bolhas nos calcanhares, seguiu em frente. Gostava de desafios.

Dona Eulália entrou no camelódromo xingando os pivetes, o governo, ....., e os camelôs. Gritava:
– Não quero essas porcarias falsas fabricadas pelos chineses que comem cachorro! Usou a sombrinha chinesa para dar golpes certeiros nas orelhas dos desafiantes vendedores brasileiros de CDs e DVDs falsos. Acabou perdoando o vendedor boliviano que vendia CDs de música francesa tocada em flauta peruana. Gostou do Tema de Lara. Protegeu como pode a bola restante. O que não impediu que perdesse um bom naco da placa de isopor. Não sonhava que o astuto, e imaginário, Blender dera uns trocados para a meninada da praça, para que puxassem a placa de isopor. Dona Eulália passou a xingar os pivetes em dobro.

Ana continuava sorrindo meigamente, a tudo assistindo. Passou tranqüilamente pela fase dos discos falsos. Os vendedores é que não ficaram nada tranqüilos. Misteriosos incêndios começaram a ocorrer nas sacolas de pano, onde guardavam os estoques. Se Blender pudesse ser visto, teria sido, correndo de sacola em sacola com a caixa de fósforos na mão. Ana cruzou em paz, sempre sorrindo.

A fase dos brinquedos chineses sobre o pano no chão também foi fácil para o Alexandre. Evitava pisar nos cavalos à pilha, carrinhos que davam cambalhotas e cachorrinhos saltitantes à corda. As habilidades para subir pelo meio-fio e cruzar canteiros lhe ensinaram os segredos da corrida de obstáculos. Cem metros com barreiras, no caso. Bem mais de 100 barreiras. O segredo era nunca encostar todo o pé no chão, mantendo uma dança saltitante, semelhante àquela executada pelos boxeadores.

Dona Eulália não foi tão diplomática. Acreditava piamente que o passeio público fora feito para ser pisado, não sendo, portanto, um lugar para se expor mercadorias. Foi diretamente em frente, pisando sobre tudo que barrava seu caminho. A iminência de ser atropelado pelo rolo compressor humano que se aproximava, fez um camelô puxar a cordinha que está amarrada aos quatro cantos do pano, para fugir do rapa, bem no instante em que Dona Eulália pisava. O rolo compressor desabou, pesadamente, sobre a placa de isopor, restando então apenas dois pedaços de um quarto do original. Levantou-se com o auxílio do pessoal da produção e seguiu xingando os pivetes, ...., e a fiscalização, pela ausência.

Marcelo já sentia a dor provocada pelas bolhas decorrentes dos sapatos frouxos. Cada passo era um martírio. Demorou muito para passar a fase. Ainda mais que parou, próximo ao final, para comprar um par de tênis chineses fajutos. Não agüentava mais a dor provocada pelas bolhas. Sentia lâminas cortando seus calcanhares. Comprou um modelo Rebocke, bem parecido com o original. Coisa vistosa, laranja com amarelo, bem ao gosto metrossexual. Seguiu andando, sentindo bem menos dor. Comprara também mais um par de meias marca Nique, vendidas pelo mesmo chinês, que só sabia dizer:

– tudo veldadeilo! As meias, usadas com os sapatos Ali Babá, estavam com manchas de sangue, das bolhas estouradas. Por fim, ele chegou à nova etapa de transição.

Ana passou sorrindo meigamente, como sempre. Não sem a ajuda de Blender, que gritara:
– Olha o rapa!!! – anunciando a chegada da fiscalização.

Os camelôs fugiram, deixando o caminho livre para Ana, que continuava sorrindo meigamente, à medida em que avançava. Passou carregando sua caixa com 12 bolas intactas e a placa de isopor, também intacta.

Seguindo à frente, todos, com exceção da Dona Eulália, passaram sem mais problemas pelas seções de eletroeletrônicos, jardinagem, linha branca, autopeças, decoração de Natal, e móveis do camelódromo. Na seção de autopeças havia um Chevette à venda, idêntico ao do seu Onofre, marido de Dona Eulália. Ela suspirou ao passar ao lado. Eis que um potencial comprador do possante automóvel clássico abriu a porta, exatamente na hora em que Dona Eulália passava. Plec! Fora-se a última das moicanas. Dona Eulália desesperou-se. Ainda aguarrada à placa de isopor, ou ao que dela restava, xingava também o carro do Seu Onofre e os desocupados que vinham comprar um igual. Interrompeu o grito ao bater o olhar na seção seguinte. Lera bem o contrato, nada lá havia contra a compra de bolas de Natal durante a prova. Do desespero passou à felicidade. Comprou uma caixa de 12 reluzentes bolas vermelhas com o logotipo de um time de futebol, na seção de decoração de Natal. E do xingamento passou ao elogio.

– Que grande serviço vocês prestam aqui – disse ela.

Por fim, saíram do outro lado do camelódromo.

Alexandre foi o primeiro a chegar. Estava confiante, pois nada poderia eliminá-lo em provas de habilidade. Era “O” homem para isso, com “O” maiúsculo. Talvez se superestimou, subestimando alguns perigos oferecidos pelo Centro da cidade, ainda mais abundantes longe dele. Parado junto ao meio-fio, Alexandre não percebeu a aproximação de uma moto, cujo tripulante arrancou seu capacete, que estava sob o seu braço. Ágil, o moto-larápio enfiou o capacete na própria cabeça, com um movimento brusco, de ambos os braços. Alexandre perdeu a competição, mas recuperou o capacete, com alguns pequenos danos. O larápio não imaginou que alguém colocaria 12 bolas de Natal, de vidro, no interior de um capacete. Doze plecs, quase simultâneos, selaram a sorte do novo proprietário do capacete. Cego pelos cacos de bolas, não percorreu mais de 20 metros antes de se estatelar de encontro a uma barraca de venda de lâmpadas alternativas. O ruído não será esquecido tão cedo, pelos freqüentadores das redondezas.

Alexandre era muito hábil na movimentação, mas não percebeu o que a Dona Eulália percebera. Também não percebeu que um vulto, sorrateiro, compatível com Blender, entregara algo ao moto-larápio. Foi eliminado pela ausência das bolas. Tudo bem. Tinha mesmo que entregar um aquário de carpas vermelhas, uma escrivaninha de cedro e oito bolas de boliche. Enquanto isso tudo acontecia, Ana continuava sorrindo meigamente.

Marcelo estava feliz com sua nova aquisição, os tênis, apesar de as palmilhas estarem viradas. A curvatura do pé estava do lado errado. Resolveu calçá-los ao contrário, aparentemente resolvendo o problema, apesar da estranha geometria resultante. Ficou com uma aparência estrábica divergente. Pelo menos, as bolhas já não lhe doíam tanto, protegidas pelas meias grossas. Restavam-lhe quatro bolas e meia placa de isopor. Apesar de metrossexual, Marcelo se preocupava mais com a competição do que com as aparências, nesse momento. Ainda bem, porque um sujeito com olho roxo, tênis virados, fedendo a sovaco, carregando uma caixa de papelão amassada e meia placa de isopor, dava dó. Estava mais para centímetrossexual.

Satisfeita mesmo estava a Dona Eulália. Depois do tremendo susto, ainda estava na competição. E poderia passar na amada loja de 1,99. Enquanto esperava pelo início da próxima etapa, distraiu-se procurando roupas de grife no shopping a céu aberto.

Ana chegou, como iniciou. Meigamente sorrindo. Ao seu lado, Blender lia novamente a biografia de Vlad. Blender estava cada vez mais impressionado com a criatividade do falecido. Nunca alguém lhe perguntara sobre a sua personalidade preferida. Mas, se o fizessem, responderia com certeza: Vlad, o Empalador!

Desceram a Rua dos Caminhadas, já mais relaxados. A coisa ainda estava calma. Presenciaram apenas três assaltos, oito injúrias, dois atropelamentos, 14 furtos e uma separação judicial, enquanto se dirigiam à Praça da Aduana. Movimento baixo para essa época. A turba que tomava meia rua anunciava a chegada à loja de 1,99. Enquanto uns tentavam entrar na loja, outros tentavam desesperadamente sair. Lembrava a pororoca – quando as águas do mar encontram as do rio. Algumas pessoas não encostavam mais os pés no chão, erguidas pela pressão da turba, e andando ao sabor da correnteza. Como entrar ali sem destruir as bolas e a placa de isopor? Cada um pensava numa tática.

Dona Eulália sabia que o corpo feminino escondia mistérios. E algumas outras coisas também. Como uma placa de isopor colocada entre os seios, quando estes assumem determinadas proporções. Colocou o que sobrara da placa entre os seios. A placa ficaria fininha, esmagada, mas manteria a área, que era o que contava. Manter um corpo com a consistência de uma divisão Panzer tinha suas vantagens. O que faria com as bolas de Natal? A altura a favoreceu. Cada vez que colocava rolos no cabelo, Onofre dizia, antes de apanhar, que ela se parecia com um pinheiro de Natal. Por que não? Onofre mereceria um beijo, o primeiro em doze anos, pela maravilhosa inspiração. Dona Eulália tirou o lenço da cabeça e tirou doze grampos de cabelo, dos 40 que costumava carregar. Prendeu as 12 bolas no cabelo, com os grampos, e levou a caixa de papelão sob a saia. Abriu caminho a golpes de sombrinha chinesa.

– Vão saindo da frente seus desocupados. Não tem de trabalhar? – gritava ela, enquanto tentava estabelecer uma cabeça de ponte no território inimigo.

Entrar na loja foi difícil. Chegar até os conjuntos de lâmpadas foi um trabalho hercúleo. A pressão da massa humana, deslocando-se naquela direção, fez com que as prateleiras dos paquímetros de plástico, por um lado, e a dos sacos de balas de naftalina, do outro, desabassem ruidosamente. A desgraça dos corredores ao lado foi a salvação do corredor em que Dona Eulália se encontrava. O desafio agora era conseguir sair dali. Segurando firmemente um conjunto entre os braços, voltou pelo corredor, numa atitude de atacante de futebol americano. Donaldo Trampa narrava o avanço, de cima de uma cadeira elevada, emprestada de um segurança de loja de calcinhas da Rua Voluntárias da Nação, a rua dos vales. Lá vale tudo, vale-transporte, vale prostituição.

Quando finalmente conseguiu sair, Dona Eulália passou por Marcelo, que tentava entrar. Três bolas haviam se quebrado, na tentativa. E não restava muito da placa de isopor. Não muito mais do que o tamanho de um punho. Dona Eulália comiserou-se com a cena. Cristã convicta, ela acreditava que se deveria ajudar os outros, mesmo quando adversários. E aquele rapagão parecia tão diferente, tão desamparado. O instinto maternal dela falou mais alto. Falou não, gritou.

– Ó imbecil, enfia essa placa no bolso da calça. Olha o tamanho dessa tua boca! Coloca a bola aí dentro. Só não engole!

Marcelo estava com a auto-estima abalada. Como não pensara nisso? Certo, a dor atrapalhava seu raciocínio. As bolhas haviam aumentado, pois não havia elástico nas meias, fazendo com que se amontoassem junto aos calcanhares. As solas dos tênis começaram a se soltar, o que também não ajudava. Mas, seria necessário que uma velha enfeitada de pinheiro de Natal viesse lhe berrar isso? Envergonhado, aceitou a sugestão. Era desconfortável ter uma bola de Natal na boca, mas era também a única solução à vista. Bem que seu apelido fora Bocão, quando estava no colégio. Transpirando aos borbotões, com um olho roxo, tênis virados, um volume suspeito no bolso e uma bola de Natal na boca, Marcelo, o centímetrossexual adentrou a loja de 1,99. A cena não era nova.

Marcelo lembrou-se de um vôo da finada VASP, a Malufthansa, que saía do aeroporto de Guarulhos às 22h30 das sextas-feiras, com embarque através de um suspeito portão 1A, vizinho do 1B. Pois esses portões não levavam aos tubos de embarque, levavam aos ônibus, que levavam às aeronaves. Em épocas que o overbooking – vender mais poltronas do que as existentes – corria solto, o embarque era semelhante ao desembarque. Na Normandia. Os até então civilizados executivos de gravata transformavam-se em perigosas bestas à procura de uma poltrona, seja qual fosse. Ao desembarcar do ônibus, pisavam sobre velhinhas e crianças para garantir seu lugar dentro do avião. Uma vez sentados, nada os retirava dali. Perder o último vôo de sexta-feira condenava-os a passar uma noite em Guarulhos.

Estes agradáveis pensamentos fizeram-no esquecer da dor, do calor e do sufocamento, enquanto avançava em direção às tão sonhadas lâmpadas de Natal, centímetro a centímetro. Levava vantagem no corpo-a-corpo, pela maior altura e maior massa corpórea.

Donaldo Trampa continuava narrando, do topo da cadeira alta, já meio abalada pela pressão da massa humana que, a essas alturas, já não sabia se estava entrando ou saindo da loja. Uma senhora que já desmaiara seis vezes não sabia mais o que era o Natal. Implorava que lhe vendessem ovos de Páscoa. Marcelo pensou em lhe vender a bola restante e desistir de tudo. Mas não, chegara até ali, então iria até o fim. Não se recordava bem como, mas conseguiu chegar ao conjunto de lâmpadas, pegá-lo, retornar ao caixa e sair, contra a maré que entrava. A mente humana se esquece das experiências muito traumáticas. É uma defesa contra a loucura. Quando Marcelo passava ao lado da cadeira alta, de onde Donald Trampa narrava emocionado, esta caiu, fragilizada pelo empurra-empurra. Tudo registrado pelos cinegrafistas.

Raimundo, que tudo observava pelo monitor, sentiu que haviam ganho a loteria. O piloto da série superava qualquer expectativa. Mais impressionante foi o que ocorreu em seguida. Uma senhora, baixinha, que levou um encontrão de Marcelo, olhou para o volume no bolso das calças dele, gerado pelo pedaço da placa de isopor, e gritou:

– Tarado, sem-vergonha! – Continuou gritando que ele estaria cometendo atos libidinosos.

Dois diligentes seguranças da loja interceptaram aquele sujeito esquisito, com um olho roxo, tênis trocados, com as solas soltas, sangue escorrendo pelos calcanhares e, finalmente, com um volume suspeito dentro das calças. Mandaram que se explicasse. Atônito, com uma bola de Natal na boca, permaneceu mudo. Até que um dos seguranças lhe esmurrou o abdome. Deu um soco e recebeu uma bola de Natal no meio da cara, expelida feito bala de canhão. Blender deu a mão à palmatória. Nem ele faria melhor. E Ana a tudo assistia, sorrindo meigamente. Marcelo foi levado preso, ao manicômio judiciário, balbuciando frases desconexas sobre uma bruxa em trajes de anjo. Dona Eulália tentou ajudá-lo, mas foi em vão.

Donaldo Trampa conseguiu levantar-se a tempo de narrar a prisão de Marcelo. Raimundo olhava incrédulo para o monitor. Não havia mente humana que pudesse criar uma cena dessas. Alheia à confusão, Ana entrou calmamente na loja, pegou um kit de lâmpadas e saiu. Foi fácil, depois que Blender espalhou o boato de que Marcelo seria um terrorista fundamentalista que colocara uma bomba no interior da loja, revoltado com a festa dos infiéis.

16h12. Dona Eulália, Ana e Blender embarcaram no ônibus, de volta à Vila Tabatinga, onde iriam decorar as árvores de Natal do Centro Comunitário Unidos da Tabatinga, uma árvore para cada concorrente. Como prêmio, por preservarem a totalidade das bolas, puderam ir sentadas. O cobrador do ônibus as reconheceu. Perguntou-lhes sobre o rapaz que conseguia fazer com que todos os passageiros dessem mais um passinho à frente. Ele não viria? Dona Eulália ficou tentada a responder à pergunta. Mas, como diria que aquele moço forte e simpático se transformara naquele farrapo humano? Achou melhor deixar assim. Ninguém entenderia nada mesmo. Dona Eulália não entendia como aquela moça, a Ana, aparentemente tão frágil, conseguira chegar até lá, com as 12 bolas, impecáveis, e a placa de isopor intacta. Ali havia gato na tuba.

Quando estavam a meio caminho, em um retorno muito calmo, Carlos chegou à casa da mãe, com a qual morava. Exausto, entrou na sala, e dirigiu-se ao armário da cozinha. Pegou a garrafa de conhaque, que sua mãe usava no preparo dos bombons artesanais, e tomou um longo gole, do bico mesmo. O primeiro gole da sua vida.

A viagem foi muito tranqüila, mesmo. Blender dormira enquanto lia a biografia de Vlad. Tivera um dia divertido e movimentado. Ana seguia sorrindo candidamente. Donaldo Trampa aproveitou para entrevistar as duas sobreviventes durante a viagem. Ele próprio já poderia se considerar um sobrevivente. Nunca imaginara que um programa desse tipo se transformaria em tal insanidade. Consegui arrancar apenas alguns monossílabos daquela moça tão bonitinha e tão simpática. Ela aparentava dormir de olhos abertos. Chegava a parecer tétrico, apesar da meiguice do sorriso incrustado no belo rosto. Já a outra mulher, falava pelos cotovelos. Xingou os pivetes, ...., e os enfermeiros do manicômio, que levaram Marcelo preso na camisa de força. Ela ainda mantinha as 12 bolas presas no cabelo. Seu Onofre não imaginava o que o esperava.

Quando Ana e Dona Eulália chegaram a Tabatinga, foram recebidas por uma multidão, alertada pelas chamadas extraordinárias do canal de televisão, que fazia intervenções ao vivo. Encontraram dificuldade para chegar ao salão principal do Centro Comunitário, onde cinco pinheiros idênticos esperavam pela decoração. Evidentemente, apenas dois seriam decorados com as bolas e as 1000 lâmpadas, que cada uma trazia. Os outros três ficariam pelados, pela eliminação de Alexandre, Carlos e Marcelo. Blender não decoraria pinheiro nenhum. Odiava festas não-pagãs.

Do nada, surgiram um deputado federal, um suplente de senador, três deputados estaduais, oito vereadores, 23 assistentes sociais, 47 líderes comunitários e 123 candidatos a conselheiros tutelares. Donaldo Trampa e os cinegrafistas fugiam deles como o Diabo foge da cruz. Falando em cruz, diversas igrejas enviaram representantes para prestigiar o evento. Na platéia estava Dona Bilboquê, vizinha e íntima amiga da Dona Eulália, que tinha acesso ao outro lado da mente, àquele que não vemos com os olhos normais. Ela fora torcer pela vizinha. Estranhara quando anunciaram que havia uma moça concorrendo com Dona Eulália. Algo ali não batia. Havia também um rapaz esquisito.

Quando Donaldo Trampa conseguiu chegar até os pinheiros, deixando para trás o batalhão de puxa-sacos de plantão, loucos por mais um minuto de fama, foi aberto o envelope com a última tarefa: Decorar um pinheiro colocando as bolas de Natal e 1000 lâmpadas chinesas. Dona Eulália conquistou uma torcida fanática, graças ao emblema do time de futebol pintado nas suas 12 bolas. Adaptaram o hino do clube, à situação, e o cantavam em coro. Pena que o Marcelo não estava mais lá, para comandar a ola.

Dispunham de 30 minutos para completar a tarefa. Raimundo achou pouco, em função do número de lâmpadas. Voltou no tempo, novamente, até o período do terceiro ano de casamento, quando o Velho resolvera montar o pinheiro no final de novembro. Muito tradicional, gostava de velas. Lâmpadas seriam coisas de japoneses, naquela época. Raimundo quase morria de calor nas noites de Natal. Fechavam todas as janelas da sala onde ficava o pinheiro, para evitar o vento, e acendiam umas 100 velas. Natal era sinônimo de suor. A tradição das velas naturais se encerrou naquele ano, no qual o Velho montou o pinheiro em novembro. Apesar de todos avisos de que o pinheiro secaria demasiadamente, em um mês, o Velho o encheu com velas. O crepitar das velas – velas crepitavam? –, durante a cantoria natalina, foi o anúncio de que Nero se tornara cristão e viera participar da festa, com sua harpa.

A gritaria de Donaldo Trampa, nos fones, o trouxe de volta à cena. Dona Eulália sentiu falta do desprezado Onofre, pela primeira vez na vida. Era ele quem sempre decorava o pinheiro em casa. Pinheiros picam, principalmente os brasileiros. Esquecera de trazer luvas. E de planejar a empreitada. Colocou as 12 bolas, deixando para colocar as lâmpadas depois. Todo mundo, que já montou um pinheiro, sabe que as lâmpadas devem ser colocadas antes, para não destruir o resto da decoração, com os fios. Dona Eulália cometeu mais dois erros primários: não restou as lâmpadas antes de instalá-las no pinheiro e as retirou do carretel no qual o fio estava enrolado. Enrolada ficou ela, no meio da maçaroca resultante. Iniciando pela parte inferior do pinheiro, iniciou um cabo de guerra contra o cordão de lâmpadas. Quando restavam apenas três minutos, ela deu a tarefa por encerrada, apesar dos evidentes problemas de distribuição das lâmpadas. E das 11 bolas quebradas. Dona Eulália enfiou o plugue na tomada e... nada, nada aconteceu. Desesperada, deu um puxão no cordel. Fiat lux! Algo aconteceu. Quinhentas lâmpadas ficaram acesas, estáticas. Outras quinhentas começaram a piscar em um ritmo que parecia o funk. Apesar do desespero de Dona Eulália, a galera delirou, começando a dançar no ritmo. Aí o tempo se esgotou. Nada mais poderia ser feito.

Ana observara quieta, sorrindo meigamente. Dona Bilboquê percebeu que o rapaz esquisito mexia na caixinha de controle das lâmpadas de Dona Eulália. Acreditou que ele estivesse tentando ajudar. Encerrado o prazo da primeira concorrente, Ana testou o cordão de lâmpadas, ainda no carretel, como manda a boa prática. Obteve uma combinação de piscadas em ritmo de valsa com salsa. Metade do cordão piscava em cada ritmo. Somente Dona Bilboquê viu o rapaz esquisito mexendo furiosamente na caixinha de controle e em algumas lâmpadas. Em quatro minutos, o cordão piscava uniformemente uma rumba, que não caiu no gosto da galera, pela sonora vaia. Ana levou mais 12 minutos para distribuir uniformemente as 1000 lâmpadas pelo pinheiro. Coisa de mestre. Em mais três minutos, as 12 bolas de Natal estavam colocadas. Quando Ana plugou novamente o cordão na tomada, seu pinheiro mostrava a perfeição da instalação, contrastando com o caos espasmódico do pinheiro da Dona Eulália.

Raimundo comentou com o Japa, que estava ao seu lado:

– A menina arrasou. Coitada da outra!

Mesmo antes do prazo se encerrar, Donaldo Trampa anunciou a vencedora: Ana. Não só cumprira com todas as exigências como fizera um trabalho irretocável, esteticamente falando. Pelo menos no gosto dele. A galera preferia o caos espasmódico da Dona Eulália. O administrador do Centro Comunitário já pensava em fazer um pedido de doação do pinheiro, para usá-lo como iluminação ritmada dos bailes funk. Quem não entendeu foi a Dona Bilboquê. E gritou:

– Como ela? Nem foi ela quem montou o pinheiro! Foi o esquisito ali!

Todos se viraram para o lugar onde Blender estava, nada vendo senão a meiga e sorridente Ana. Foi então que Dona Bilboquê entendeu tudo, pois apenas ela era capaz de vê-lo. Ele que agora a encarava, enfurecido pela descoberta. Dona Bilboquê apontou a sobrinha chinesa da Dona Eulália para o capeta e gritou a terrível frase secreta, muito poucas vezes ouvida em público:

Flare simul, sorbere simul, res ardua semper! - Com bochecha cheia de água ninguém sopra.

Somente o padre e Blender entenderam a frase. O primeiro por ter estudado latim. O segundo por temê-la desde sempre. O efeito foi instantâneo. A meiga e sorridente Ana começou a tremer compulsivamente, enquanto jogava os braços para o alto e girava os olhos nas órbitas. Seus cabelos se elevaram, como que eletrificados. Após um rugido gutural, lançou-se sobre uma árvore de Natal, de onde pulou para o lustre, findo pendurada pelos pés, enquanto babava e gritava frases em uma língua desconhecida. Ainda apontando a sombrinha para Ana, Dona Bilboquê gritou a frase derradeira:

- Dormiens nihil lucratur! – Raposa que dorme não apanha galinha!

Atingida mortalmente, Ana caiu do lustre, ficando estirada no chão. Blender sumira, voltando aos mais profundos calabouços da mente, de onde viera. Ninguém teve coragem para se aproximar de Ana, que jazia inerte. Foi Dona Eulália quem tomou a iniciativa. Achegou-se, ajoelhando-se ao lado da menina. Esta acordou lentamente, perguntando sobre o que acontecera. Donaldo Trampa chorava de emoção, narrando tudo com a voz embargada.

Ana sentou-se. Já não estampava o sorriso meigo no rosto. Parecia apenas uma moça normal, como todas as outras que querem estudar Parapsicologia Noturna.

Estava criado um enorme impasse. Quem havia vencido? Raimundo diria que ninguém havia vencido. Dona Eulália não conseguira fazer as lâmpadas piscarem em um só ritmo. E Ana, como diria, apelou para o imaginário, não sendo realmente a autora da façanha. O clamor da multidão que já lotava o Centro Comunitário, e os mais de sete mil telefonemas já recebidos pela emissora, antes mesmo da apresentação do programa, levaram à vitória, mesmo que questionável, da Dona Eulália. Moralmente era defensável. E Donaldo Trampa havia avisado, pelo monitor, que qualquer outro resultado resultaria numa calamidade de proporções nunca vistas no País. O dia da revolução passaria a ser o 15 de dezembro.

Assim, Dona Eulália recebeu o cheque gordo, com o qual abriu uma rede de tele-entrega de panos de prato bordados. Dona Bilboquê foi contratada pelo DJ Buldogue Gordo para gritar aquelas frases durante os bailes funk do Centro Comunitário. Ana voltou ao cursinho pré-vestibular, mas tem feito bicos, aos sábados, junto com Dona Bilboquê, nos bailes. Aquela performance impressionou muita gente. Já pensam em levar um show ao centro do País. Carlos ficou catatônico. Marcelo apaixonou-se pela médica do manicômio judiciário. Ela está se internando para viver com ele. Alexandre continua entregando coisas, desde que não sejam bolas de Natal ou placas de isopor.

Raimundo estava assistindo ao piloto da série, na sala do Conselho da Cotra, com o resto do pessoal. Todos assistiam incrédulos àquele espetáculo. Mesmo Raimundo, que já havia assistido ao vivo, ainda não acreditava que toda aquela loucura seria obra do acaso. Bem, não apenas do acaso, havia também a mão de Blender, em quase tudo.